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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Notícias da Serra

Tatá e Titi saindo para a night.
Acabo de voltar de uma semana na serra, no distrito de Rio Bonito de Cima em Nova Friburgo. Por desígnios do insondável, a região não sofreu nenhum dano durante o cataclismo que se abateu sobre outros distritos do município. Exceção para a falta de luz e de telefone por dez dias, e a conseqüente aflição dos habitantes de lá em relação aos seus amigos e parentes que moram nos bairros atingidos na cidade.

Voltei com aquela marca em forma de V no dorso de cada pé, feita a sol e sandálias Havaianas, atestado irrefutável de uma temporada de ócio. Dos sete dias, cinco foram desfrutados sozinho no sítio, período em que, tirando os "bons dias" e "boas tardes", não conversei com mais do que meia dúzia de pessoas: com a Ângela, dona do restaurante simples de comida caseira, daquele tipo com feijão e arroz que, como café com leite e pão com manteiga, você pode comer o ano inteiro sem enjoar; com o Niltinho, caixa e gerente do mercadinho, a pessoa mais indicada para a gente se inteirar dos acontecimentos recentes do lugar; com o Batista, nosso caseiro, e mais uns poucos vizinhos.

Batista é a pessoa que eu vou querer ter ao meu lado se um dia a civilização entrar em colapso, quando a energia elétrica, a internet, o sistema bancário, os SACs, os 0800, a telefonia e o abastecimento de bens industrializados pifarem. Batista está chegando aos 40 de idade e nasceu por ali mesmo, onde há menos de 10 anos atrás não havia luz elétrica, telefone, nem linha de ônibus. As estradas eram péssimas, e uma ida à cidade era uma odisséia. Dinheiro circulante era pouco ou nenhum. Sem eletricidade, não havia televisão, e o contato de mão única com o resto do mundo era via rádio de pilha. Não havia emprego e trabalho era só na roça de subsistência. Segundo ele, a vida era dura antes da chegada dos sitiantes da cidade grande, mas, apesar da pindaíba, ninguém passava fome. Comia-se angu, inhame, mandioca e alguma verdura pouca. Quando não havia um frango no ponto de ir para a panela, a carne era de caça: um tatu, um gambá, um lagarto, uma paca ou um jacu. Assim Batista aprendeu “com os antigos” a se virar na mata com o que ela oferecia e ainda oferece. Ele sabe dar nome aos paus da floresta e sabe a utilidade de cada um. Este aqui é bom para cabo de enxada, aquele para mourão de cerca. Sabe qual erva serve para cada mal do corpo e qual fruta ou raiz é comestível e qual não. Enxerga na floresta um supermercado e uma loja de materiais de construção.  Sabe fazer arapucas, armadilhas e outras engenhosidades simples e utilíssimas para a sobrevivência sem as facilidades da civilização. Talvez ele seja parte da última geração naquela região a deter estes conhecimentos. Suas filhas estudam no ginásio da cidade, sabem o que é internet e computador, sonham com um  iPod e têm TV e luz elétrica em casa. O pai delas tem salário certo e carteira assinada e o arraial agora tem médico de família duas vezes por semana e ônibus três vezes ao dia. A vida ficou bem mais fácil e mais parecida com a vida na cidade.

Apesar do passado de caçador, Batista é dos mais entusiasmados com a volta gradual dos bichos da mata aos arredores de Rio Bonito de Cima. Agora que quase ninguém mais caça e depois que o Ibama deu algumas duras em alguns caçadores recalcitrantes, sagüis, esquilos, iraras, tatus e passarinhos vários estão reaparecendo nos quintais e na borda da mata, que no nosso sítio, são a mesma coisa. Inteligente, ele adora assistir documentários sobre a vida selvagem e me pergunta com interesse sobre mudanças climáticas, aquecimento global, demografia e ecologia. Vem me avisar animado quando avista um bando de tucanos ou um casal de martim-pescadores na beira do rio. Um caçador convertido em ecologista.

Disse aí em cima que fiquei sozinho no sítio. Maneira de dizer apenas, pois lá nunca estou sozinho. Tem o tatu que se entoca embaixo da casa, os gambás que moram no forro, as andorinhas que fazem ninho sob o telhado, os morcegos (que já foram despejados da casa), as lagartixas nas paredes e os calangos pegando sol na varanda, fora os inúmeros insetos que diariamente entram em casa e nem sempre conseguem achar a saída. Tinha um gambá que, na nossa ausência, decidiu que o melhor lugar para fazer seu ninho de folhas secas era o espaço entre as telhas de vidro do telhado e vidro da clarabóia no teto da cozinha. Ficava ali o dia inteiro imóvel, curtindo o calorzinho do sol, mostrando suas patinhas, seu rabo pelado e seu focinho colados ao vidro. Só depois do por do sol dava sinais de vida: primeiro espreguiçava-se intermitentemente e mais tarde passava a se lamber, embelezando-se antes de cair na night. Lá pelas nove da noite saía de casa, mas nem sempre estava de volta pela manhã. Talvez dormisse na casa da namorada ou de um amigo, nunca soubemos. Ficávamos sempre preocupados quando ele não estava em sua cama de manhã. E o seu celular nunca estava ligado. Um belo dia ele cruzou a linha da boa vizinhança: fez xixi na cama. Decretou o fim da tolerância e sua expulsão do abrigo de nosso teto. Tentou voltar umas duas vezes, mas acabou por se convencer de que não era mais bem-vindo.

Parece, porém, que correu a notícia na comunidade gambazística de Rio Bonito de Cima: havia vagas disponíveis na casa. Acomodações novas, bem iluminadas, localizadas a meio caminho entre a mata e um pomar sortido, e a única exigência do senhorio era comportamento discreto. Pouco tempo depois daquele primeiro gambá ter sido despejado, diversos outros se candidataram para ocupar outros recantos não menos aprazíveis de nosso telhado. Houve um que ocupou o espaço sobre o forro de nosso quarto, outros dois o teto da sala junto à lareira, um completo abuso. Dispensamos a formalidade de um mandado judicial de despejo e convocamos o Batista e suas arapucas. Em duas semanas foram três gambás adultos, sendo uma mãe com sete filhotes. Batista afirma não ser apreciador de gambá guisado, que, dizem, sabendo tirar a bolsa de cheiro, é muito saboroso. Eu mesmo não tive ainda o prazer. Já o Justino, primo do Batista, adora a iguaria, e tem sido ele o beneficiado pelas recentes capturas. Restam ainda Tatá e Titi, os dois irmãos gêmeos que moram junto à lareira. Espertos, eles têm driblado as arapucas até onde se tem notícia. Até já posaram para fotografia. Fotogênicos os dois, não acham?

5 comentários:

  1. é cumpanheiro aqui em casa caontecia isso,e quem saboreava os gambas eram meus cachorros. Mas ai veio a tar da GLOBALISAÇÂO e acabou com tudo, até os fantasmas que circundavama cidade de Aguas da Prata sumiram.Pois digo e vi um (alma penada) na estação de trem da Prata, esperando o trem rumo a Póços. Acabou tudo até o sossego da cidade.

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  2. Não conhecia seu blog , Caro Ralph e gostei. Muito interessante sua narrativa sobre os Gambás, que aqui no nordeste chamam de Timbú... Lá em casa , no onego tem uma família e vou tentar fechar as entradas com telas. Vamos ver se funciona.. Vou estar em Friburgo entre 03/03 e 06/03. Se estiver por lá de um toque pra nos encontramos. Grande abraço. Vicente

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  3. Grande Ralph, ótima cronica, e melhor ainda saber que o Chateau Antunes sobreviveu incólume as enchentes.
    Abraco,
    Marcus

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  4. Saboroso texto, embora pouco fale de comida... E muito simpáticos seus inquilinos, já famosos. Adorei esta crônica! Bjs

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  5. Tenho que discordar de você e da Fabiana, Ralph: fotogênicos? Simpáticos? Cadê? Ô, bichinhos feios!!!! Hahahahahaha... Adorei o texto, como sempre...

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