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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Pagode do Fim do Mundo

Não é falta de assunto, mas como essa poderia ser a última publicação deste Blog, achei oportuno republicar o "Pagode do Fim do Mundo".

Até dia 22, se Deus quiser!









Apareceu-me um anjo num sonho


Me disse que o mundo já ia acabar.

Caí da cama num susto medonho

E achei que o melhor era me preparar.


Tomei uma branquinha, beijei a vizinha,

Soltei o cachorro, comi vatapá.

Mandei ver no torresmo, cerveja e picanha.

A consulta com o doutor eu mandei desmarcar.


(Refrão)

Por quê?

Porque vai se acabar!

Porque vai se acabar!

Deixa de ser mesquinho, aproveita o restinho,

E senta pra ver o mundo se acabar.


Pensei em ligar pro patrão e avisar

Mas o tempo era pouco pra tanto, afinal.

Torrei a poupança, gastei em brinquedo,

E fiz pra molecada um segundo Natal.

Falei: não precisa seguir pra escola

Comprei bala, pipoca, doce e guaraná.

Organizei uma pelada na praça

É chutando uma bola que eu vou me esbaldar.


(Refrão)


Depois tomei banho e botei um perfume,

Chamei minha nega pra gente deitar.

Não dormi de touca, eu beijei na boca,

Namoramos como antes de a gente casar.

Quando ela dormiu, levantei de mansinho

E fui para a lage assistir o luar.

Peguei o cavaco e fiz esse pagode,

Se amanhã vai dar bode, hoje eu vou caprichar.


(Refrão)

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Prêmio UFF de Literatura 2012

Leitores do Blog,

O conto aí abaixo, "O Contador de Histórias", recebeu hoje o Prêmio UFF de Literatura 2012. Quero compartilhar minha alegria com vocês, que são meu maior incentivo para continuar escrevendo. 

Obrigado pela torcida!

Acesse O Contador de Histórias

domingo, 16 de dezembro de 2012

O Contador de Histórias


Este conto é finalista do Prêmio UFF de Literatura 2012. O resultado sai amanhã, 17 de dezembro.

Seriam alguns dias de viagem ente Paragominas e Altamira. Bem no início, eu abastecendo a carreta num posto à beira da estrada, achegou-se o cabra. Cabeça quadrada, pescoço curto e forte, os cabelos encaracolados escapando por baixo do boné encardido, a malinha castigada e um jeito que, descrevendo só assim, poderia servir para qualquer tipo perigoso, assaltante ou mesmo matador, mas tinha um quê nos olhos escuros que brilhavam um brilho de inocência quase infantil, contradizendo as rugas precoces na testa e sobressaindo por entre as pálpebras apertadas e as sobrancelhas grossas que quase se irmanavam acima do nariz. Anunciou-se Leovaldo, maranhense, com sua licença, vou para a obra da usina grande, não for incômodo, concederia a gentileza, eu ajudo, amarro a carga se soltar, sei trocar pneu, já fui ajudante de caminhão. Nessas estradas temos precisão de confiar e desconfiar, confiando que o Divino ouça nosso rogo para saber a hora certa de uma coisa e de outra. Confiei: “Sobe aí, homem.” Tinha muito chão pela frente e eu andava mesmo desassossegado de cismar sozinho tanto tempo, o pensamento empacado em umas idéias que eu queria não pensar, mas que me rodeavam a cabeça feito enxame de mosca incomodativa. Uma prosa bem que me poderia puxar a atenção de dentro e virá-la para o lado de fora.

De início, asfalto e trânsito livre, tempo bom, conversa leve e pouca, só amenidades. De meu lado, só queria ouvir. Ele aos poucos foi soltando a falação. Ganhara semana de licença para o enterro da mãe. Um segundo derrame depois de ter sido derrubada na cama durante dois anos pelo primeiro. Nesses dois anos só lhe restara na boca uma palavra, que ela repetia e a ela se agarrava como única que lhe restara para se dirigir ao mundo: “tatu, tatu, tatu”.  Era tatu para toda serventia: obrigado, até logo, fome, banheiro, saudade, dor. Só os olhos davam sentidos a cada tatu daqueles. Seis irmãos. O pai deixara a casa, volto pra buscar, as cartas rareadas e o silêncio. O mais velho foi ainda a São Paulo, cidade muito grande, engole um homem sem deixar sinal, voltou sem notícia. Não sabe se tem pai ainda. Falou das cabras, da vez que apanhou de vara porque deixou uma sumir, era ainda moleque. Só acharam a carcaça três dias depois, os urubus terminando a faina começada por maracajá ou suçuarana. A roça de feijão e milho tocada pelos irmãos mais ele, à mercê da dádiva de São José conquistada a custa de muita reza e ladainha no mês de março.

De vez em quando ele cansava de falar, me passava a bola, e tu, homem? Eu falava de estrada, de carga, de caminhão e de patrão, de causos de estrada, deixando uma cerca bem fincada no rumo da prosa, daí não passe.

Já na chegada em Marabá, parada para banho e jantar, cerveja dividida, mais histórias, eu lhe dando linha na pipa. E ela subia alto no céu das lembranças, onde algumas se desmancham, fiapo de nuvem, e outras são tempestade, ou sol e lua, sempre lá. Coisas na história de cada um que passam a fazer parte do que se é, vão moldando esse barro mole, imprimindo cicatrizes, rugas de choro, de dor e de perplexidade, mas também algumas de riso, de saudades de venturas antigas, o que também é uma qualidade de dor.

Lá pelo fim do segundo dia, a carreta sacolejando já no barro, a chuva caía dando medo que a estação seca se findava, arriscado amolecer o chão e nos prender na estrada que nem rato engolido no ventre daquela cobra vermelha riscada na mata. Conseguimos chegar à margem do Tocantins sem precisão de trator de esteira. Estacionei na fila da balsa e desliguei o motor. Toquei a imagem de Nossa Senhora colada em cima do painel, agradecido pela bênção. Só mais dois dias, Mainha, não me falte ainda. Saltamos, ficamos os dois ali, olhando o mundão de água, apertando os olhos para enxergar o outro lado e a balsa ainda longe. Acendi um cigarro virando de costas para o vento e estendi um cigarro, depois o lume para Leovaldo. Ficamos ali, olhando o nada, o pensamento longe, soprando a fumaça para cima de quando em quando. Meu parceiro pareceu desassossegado, coçava muito a barba rala. Reparei uns fios brancos junto às têmporas.

“A gente cresce achando que na vida as coisas são assim, o certo ali, o errado lá, o céu em cima e a terra embaixo, onde é água e onde é chão. O que é de Deus e o que é do cão. Aí a vida vem e embaralha tudo.”

Puxei o último trago e atirei longe a guimba. O dito prenunciava, na certeza, confidência de maior importância. Me aprumei em respeito, procurei esvaziamento de julgar e virei os olhos para Leovaldo.

“Você já foi casado?” Ele forçava a cerca. Concluiu com acerto sobre meu estado de homem sem mulher pela falta de aliança, pelo silêncio, pelo celular sempre desligado. “Digo assim, mesmo sem casar, já teve mulher, já teve casa montada pra modo de viver com ela, ter filho com ela, criar junto?”

Eu não disse nada, mas era como se tivesse dito. “Pois é, eu também já tive, ou tenho, não sei mais. Em Igarapé Grande, terra de meus pais. A gente se gostava desde antes de saber o nome do amor. Desde criança. Nunca pensei em outra, não carecia. E foi para finalmente poder fazer para ela, com ela, um lar, família, essas coisas, que estudei, fiz supletivo de noite, terminei o segundo grau. Fiz curso técnico. Comecei na construção civil, me cadastrei para uma vaga na obra da usina grande. Depois de uns meses me chamaram. Me deu uma alegria misturada com saudade, mas com fé em ganhar dinheiro, montar casa, me fazer um cabra de respeito, e não mais um menino aos olhos dela. Quando voltei para enterrar minha mãe, vinha com uma mistura de sentimento, o luto e uma alegria quase desrespeitosa, que não combinava com a ocasião. E como foi bom estarmos juntos de novo, o futuro ali mais perto, quase que dava pra tocar com a mão. Ela estava carinhosa meio que demais, tive que ralhar pra ela parar com a beijação. Até no velório ela quis me puxar pros fundos da capela, as comadres reparando. Dia seguinte me vem o compadre de meu irmão e me diz umas coisas. Que era para eu abrir o olho, que ficasse por  lá ou levasse Maria da Glória comigo. Que é isso, homem? Me explica, que isso é coisa séria, que não se pode dizer assim como quem conta uma coisa acontecida nos antigamente. Exigi nome, dia, detalhe. Agarrei pelo colarinho, quase bati no cabra enviado do Demo. Tinha um quase sorriso quando me falou, mal conseguia esconder o gosto que tem um infeliz de ver se quebrar a felicidade alheia.

Saí desarvorado, sem rumo, até que me vi na casa da minha finada mãezinha. Por obra do acaso ou de Deus, meu irmão chegou no momento em que eu carregava a garrucha que fora de meu pai, que encontrei ainda enrolada num pano em cima do armário do quarto. Eu tinha um gosto de sangue na boca, meus olhos só viam desgraça no porvir. Não me pergunte quem eu ia matar primeiro, eu só sei que a morte tinha mando no meu coração. Meu irmão quis saber o que era aquilo, gritava para me chamar ao juízo, mas eu não ouvia. Ele então se atracou comigo, ‘não quero ver irmão meu na cadeia’. Caímos os dois e a garrucha disparou. Só então me voltou a presença e eu parei, meu irmão por cima de mim. A bala furou a camisa dele, riscou-lhe a pele e foi bater no meio do quadro do Coração de Maria que minha mãezinha tinha no altar com a vela sempre acesa.”

Um suor grosso brotava nas têmporas de Leovaldo, o peito arquejando um pouco. Os olhos perderam-se por um instante, abertos para fora, mas sem visão no presente. Fiquei ali, mudo, misturando na cabeça a cena contada com cenas de minha própria lembrança, colocando rostos meus nas personagens dele. Pediu-me outro cigarro. Deu umas três baforadas, ficou um tempo para se recompor, e continuou.

“Aquilo me freou os ímpetos, me alargou as vistas, como se me tirassem antolhos. Meu irmão então me tirou, sem resistência, a garrucha da mão. Eu fiquei ali pelo chão, tremendo e chorando de soluço que nem criança. Só bem depois me pus de gatinhas e fui até o altar, sem ousar erguer a vista pro coração furado da Virgem. Pedi perdão e agradeci pra ela e pra mãezinha, que foram as duas que me valeram e me livraram de fazer desgraça. Fiquei uns dias atordoado e sem rumo. Evitei de estar com ela, depois saí escondido da cidade e fui para o rancho de um primo pensar uns dias.  Aí, peguei minhas tralhas, pus na mala e vim para a estrada, no rumo da usina. Não consigo parar de pensar. Meus irmãos e primos se dividiram. Uns dizem pra eu esquecer da Glorinha, que tem muita mulher no mundo. Outros me garantem que foi fraqueza rápida que ela teve, uns goles a mais de cerveja depois da festa do Santo, que era um cabra de passagem, foram só uns beijos, e que ela não pára de chorar desde que eu sumi. Não sei ainda meu rumo. Um homem às vezes descobre que tem que escolher entre a honra e a felicidade, e que não pode ter as duas. Ainda não decidi.

Ficamos ali, olhando o rio e a balsa que surgia agora no horizonte em meio à água do rio e a água que voltava a cair do céu. Foi ficando tudo misturado no mesmo cinza: a água, o céu, a outra margem. Tentei engolir o nó que me apertava a garganta, mas ele ficou ali, teimoso. O desassossego me brotava de novo no peito, feito tiririca brava que renasce sempre, por mais que a gente arranque. Se minha mãezinha não tivesse morrido pra me trazer à luz, se eu tivesse tido um irmão que se atracasse comigo, se a Virgem me valesse na hora que o Tisnado me fechou o coração. Mas eu só tivera instrução de zelar pela honra.

conto transamazônica prêmio UFF de literatura 2012

sábado, 24 de novembro de 2012

Mulheres de Cinza


Vinha eu acompanhando e saboreando as mudanças sociais dos últimos cinquenta anos no que se refere aos avanços da posição da mulher na sociedade, acreditando que elas (vocês) vinham galgando degrau após degrau a escada da igualdade de direitos, quando, de repente, a trilogia “Cinquenta Tons de Cinza” surge como um fenômeno literário neste início de milênio. Como assim, senhorita? Como assim, minha senhora?

Há cinquenta e poucos anos, quando nasci, não existia ainda a pílula anticoncepcional, que veio a libertar a sexualidade feminina da obrigatoriedade da procriação  e desencadeou todo o processo que alterou completamente o des(equilíbrio) de poder entre os sexos. No Iêmen os pais continuam vendendo suas filhas de 12 anos em casamento, e no Afeganistão as adúlteras ainda são apedrejadas. Mas, pelo menos em nosso mundo classe média-alta ocidental, a situação feminina na sociedade vem evoluindo aceleradamente, se não na direção à igualdade de papéis (na qual não acredito), pelo menos na direção da igualdade de direitos (à qual sou plenamente favorável, e nem poderia deixar de ser). Nossa presidente é mulher e não vejo nenhuma necessidade de chamá-la de presidenta, pois não será a única nem a última (acabei de descobrir que o Word não grifou de vermelho a presidenta, o que acaba sendo uma contradição cromo-político-ortográfica). Temos duas ministras mulheres no STF e acaba de ser promovida a primeira oficial-general de nossas Forças Armadas. As mulheres brasileiras têm hoje autonomia sobre a própria natalidade e geram, em média, menos de dois filhos cada; chefiam sozinhas mais de um terço dos lares e contribuem financeiramente em três quartos deles. Elas caminham rapidamente em direção à igualdade salarial e ocupam inúmeros cargos de chefia em todos os escalões. Fatos.

A dificuldade que muitos homens esclarecidos demonstram em reconhecer, ou, quem sabe, admitir essas mudanças na nossa sociedade me causa espanto. Já ouvi homens dizerem, não totalmente como piada, que, se não fosse pelo órgão sexual, não dariam nem bom dia às mulheres. Há ainda homens incapazes de se relacionar com uma mulher como apenas dois seres humanos, sem conotação erótica, como amigos, como companheiros ombro a ombro no trabalho. Acho isso um espanto. No fundo, enxergo o receio masculino de que os homens venham a ter seu papel relegado apenas a abrir potes de conserva e matar baratas.

Eu, particularmente, nunca tive problemas em ter amizades com mulheres, mas admito que, na minha geração, isso era uma exceção. E não sei se hoje as coisas estão muito diferentes. Há ainda quem acredite que homem que é homem tem amigo homem, que mulher em idade reprodutiva, ou é da família (tabu) ou deve sempre ser olhada como uma potencial parceira sexual. Não que eu ache que uma amizade intergenérica não possa nunca vir a assumir tons coloridos. Já cheguei a namorar uma amiga, o que acabou com a amizade, diga-se de passagem. Tinha e tenho boas, novas e antigas, amizades com mulheres. Ouvir o ponto de vista feminino sobre determinado assunto é mais do que apenas a opinião de outra pessoa. Muitas vezes é como a visão de alguém do outro lado de uma fronteira, de outro planeta talvez, o que sempre enriquece a conversa e acrescenta ingredientes novos numa discussão.

E então vem a Sra. E. L. James e nos apresenta a inocente Anastasia Steele, jovem e inexperiente (nunca tivera namorado). Uma estudante de Literatura Inglesa completamente iletrada nas artes do sexo e do amor. A inocente mocinha entrega seu corpo vestido de tênis e calça jeans aos caprichos sadomasoquistas do misterioso Christian Grey, homem poderoso e de hábitos sofisticados (além de rico e lindo, claro). Desequilíbrio maior impossível. Submissão total. Parece que, lá pelo terceiro volume da trilogia, a mocinha cresce emocionalmente e resgata seu amante-algoz de sofrimentos íntimos oriundos de seu passado. Mas não é por esse desfecho edificante, que acaba convergindo para os das novelas de Jane Austen por caminhos muito (põe muito nisso) distintos, que as mulheres estão lendo o livro. Claro que não.

As feministas estão possessas. Andaram até convocando para uma queima pública dos ditos livros diante da editora, acrescentando mais alguns tons de cinza à trilogia. Particularmente, acho queimar livro, seja ele qual for, uma prática obscurantista. Mas a bronca delas é legítima. Como, depois de tantas passeatas, de tantas mártires, de tantos sutiãs queimados, depois da lei Maria da Penha e da tipificação do assédio sexual como crime, as maiores beneficiárias das conquistas femininas, as mulheres letradas e endinheiradas o suficiente para comprarem e lerem um romance suspiram e gemem imaginando-se na pele da indefesa mocinha voluntariamente entregue ao macho poderoso e distante emocionalmente? Soa a traição.

Claro, pode ser que as mulheres estejam apenas se dando o direito de ler um texto picante, que as deixa excitadas e assumindo isso em público: no metrô, na sala de espera do doutor ou na praia, e nada além disso. Muito justo, mais um direito conquistado. Mas haverá algo mais por baixo dessa interpretação simplista? Será que as coisas andaram rápido demais para elas? Estarão inseguras sem um macho que as respalde na reunião de condomínio quando o clima esquenta? Não querem tanta igualdade assim? Não sei a resposta. O que me parece é que, mesmo que hoje elas tenham conseguido que a sociedade aceite (ou pelo menos admita) que elas troquem beijos com um desconhecido na balada sem emitir julgamentos de caráter, as mulheres, ou boa parte delas, não abriram mão do mito do príncipe encantado. Apenas substituíram o cavalo branco pelo carrão branco do ano. Querem alguém que as proteja, que as excite, que as trate como rainhas na vida e tenha pegada firme na cama. Alguém que ganhe tanto ou mais que elas, que assuma as despesas da casa se ela resolver ficar mais um tempo cuidando do bebê. Alguém que as faça felizes. Não são todas, friso bem, mas acho que ainda é uma grande parcela. Arrisco dizer que é a maioria. Tudo bem, as coisas caminham em ritmos diferentes em diferentes partes das sociedades, em diferentes cabeças. Mas delegar a outro alguém a responsabilidade pela própria felicidade é e será sempre uma roubada. Seja você homem ou mulher. O que é, para todos os efeitos práticos, muito diferente de querer compartilhar e multiplicar a própria felicidade com alguém com qualidades e defeitos.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Amanhecer em Veneza

Depois da chuva, os primeiros raios de sol iluminam a Chiesa di Sta. Maria della Salute. As gôndolas, ainda cobertas, aguardam seus condutores para mais um dia de trabalho.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Svetlana


Mikhail era novo na empresa e aquela seria a primeira vez em que participaria da Reunião Estratégica, como representante do Departamento Comercial.  Passara os últimos dias e algumas noites levantando dados, montando planilhas e criando gráficos para fazer bonito diante dos novos colegas e de seus superiores. “Só se tem uma oportunidade de causar uma boa primeira impressão”, a frase clichê ressoava na sua cabeça desde que a data da reunião fora anunciada. No dia D teve cuidados adicionais ao escolher o que vestiria depois do banho matinal. Depois de pronto, olhou-se no espelho grande do banheiro: cabelos alinhados, que mandara cortar estrategicamente uma semana antes, para que não estivessem nem muito grandes nem com aparência de terem sido cortados especialmente na véspera. Não era bonito de rosto nem tinha porte atlético, mas sua altura acima da média e o olhar direto e inteligente, como ele supunha ter, teriam de ser suficientes para fazer boa figura física diante da plateia. Plateia essa que não se furtaria ao prazer de emitir julgamentos, diretos ou velados, sobre aquele novo funcionário de médio escalão da empresa. As cartas certas para ganhar a oportunidade de uma futura promoção tinham de ser postas na mesa desde o início do jogo.

Dez da manhã, último andar do prédio. Na antessala do anfiteatro onde se daria a reunião, funcionários e gerentes tomavam café, conferiam seus relatórios e conversavam assuntos aleatórios. Alguns menos precavidos esbravejavam discretamente pelo celular com alguma secretária ou subalterno, reclamando do atraso na entrega de alguma pasta ou pen drive. Mikhail esforçava-se mentalmente para ficar à vontade e participar da conversa, sem demonstrar o quanto ainda se sentia deslocado. Então a porta do elevador se abriu, o que, casualmente, atraiu o olhar de Mikhail. Por ela saíram dois diretores e Svetlana. A xícara que Mikhail segurava ficou suspensa no ar em algum lugar entre seus lábios e o pires que segurava com a mão esquerda. Uma mulher esguia, cabelos longos parcialmente presos, vestindo um tailleur grená atravessou a antessala com passos ao mesmo tempo elegantes e decididos e dirigiu-se para a primeira fila, cadeira do canto esquerdo, do anfiteatro.

Convocados todos para entrar. Mikhail apalpou pela décima vez o pen drive no bolso de cima do paletó e abriu mais uma vez a pasta com os relatórios. 

Durante as muitas apresentações, teve dificuldade em se ater aos números e gráficos, seu olhar constantemente escapando para a primeira fila à esquerda.

“Mulherão, não é não?”

“Como?”

Era o Luiz Cláudio, seu colega de departamento quem lhe falava ao ouvido.

“Como o quê, cara? Até parece que você não está olhando.”

“Ah, ela.” Não sabia exatamente por que, mas se viu tentando fingir um ar blasée e desinteressado. “Quem é?”

“Não conhece ainda? É a Svetlana, assessora do Departamento Jurídico. Dra. Svetlana. Ah, se eu não fosse noivo...”

“Ah, sim. Já tinha ouvido falar, não fui apresentado ainda. Realmente, mulherão.”

Mais tarde, no coffee break, Mikhail avaliava mentalmente seu desempenho. Passara de forma clara informações relevantes baseadas nas quais, inclusive, arriscara fazer algumas previsões sobre os rumos futuros do mercado, fato que atraiu o interesse e algumas perguntas adicionais de um dos diretores. Mas recriminava-se por ter gaguejado um pouco mais que o habitual e por quase ter perdido o rumo na exposição de um argumento técnico particularmente complicado. Enquanto esteve de pé diante de todos, viu seu olhar ser atraído mais de uma vez para a assessora jurídica. O Mulherão. Svetlana. Aquele belo par de pernas insinuando-se, esbelto e musculoso, por sob a pasta de relatórios jurídicos o havia desconcentrado por uma ou duas vezes. O olhar de Svetlana fitara-o fixamente durante toda a exposição, certamente em sinal de atenção estritamente profissional. Certamente.

Durante o coffee break, tapinhas estalaram em suas costas. “Gostei de sua exposição. Se bem que você poderia ter enfatizado mais a questão da margem de lucros, como eu tinha lhe falado.” Era o Carvalho, seu gerente imediato. “Mas, para primeira vez, até que não foi mal, garoto.”

“Que bom que o senhor gostou.”

Varreu a sala com o olhar em busca de Luiz Cláudio. Encontrou-o ao celular perto dos banheiros e andou até lá. Ele fechou o aparelho e sorriu: “Mandou bem, Mika!”

“O Carvalho veio me disser que ‘para primeira vez, até que não foi mal’. Que filho da puta.”

“Relaxa, cara, ele deve estar temendo uma futura concorrência pelo cargo dele. Vai se acostumando que empresa grande é assim mesmo. Ninguém tem amizade, só interesse. Menos eu, claro, que sou seu amigo desinteressado. Para provar, vou te fazer um favor, você vai ficar me devendo essa. Vem comigo.”

Atravessou o recinto arrastando-o pelo braço. Quando deu por si, Mikhail estava postado diante dela.

“Doutora, este é o novo membro do Comercial, não sei se já foram apresentados, meu amigo Mikhail.”

“Muito prazer, Mikhail. Svetlana, do Jurídico.” Estendeu-lhe a mão muito branca sem deixar de bebericar o suco de laranja.

“O prazer é meu, Dra.”

“Interessante esse seu nome, ‘Mikhail’, de onde ele saiu?”

“Minha mãe era professora de dança, dava aulas de balé na escola. É Miguel em russo. O nome veio do Baryshnikov, imagino eu. Ela era fã de balé clássico.”

“E você, gosta de dança?”

“Mais ou menos. Entendo um pouquinho, tinha muitos livros sobre balé lá em casa, Lago dos Cisnes na vitrola no domingo, umas duas idas ao Municipal, essas coisas, mas não passa disso.”

“Que pena. Eu adoro dança, adoro balé.”

“Nunca pensou em ser dançarina?”

“Pensei, pensei a sério até, estudei balé desde a infância. Mas, aos quatorze, rompi um ligamento do tornozelo, fiquei dois meses engessada e perdi o pique. Acabei advogada.”

“Que pena, a Sra. tem porte de bailarina.” (Que ridículo eu fui, censurou-se internamente, chamei-a de senhora, vai pensar que eu a acho velha. E ela deve ter ouvido essa de ‘porte de bailarina’ milhares de vezes).

“É, as pessoas dizem isso, às vezes. Mas me chame de Svetlana, OK Mikhail?”

“OK, Svetlana.”

“Bem, a reunião já vai recomeçar. Melhor entrarmos.”

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Durante uma semana, aquele minuto de conversa foi passado e repassado na cabeça de Mikhail milhares de vezes. Como o replay de uma jogada na grande área, que os comentaristas de futebol discutem exaustivamente tentando decidir se foi ou não foi pênalti. Pênalti que ele, certamente, havia chutado para fora. Sentia-se um idiota, poderia ter dito que adorava dança, mas o fato é que seu interesse por balé era mesmo periférico, quase que apenas cultura geral.

Sonhou inúmeras vezes, durante o banho ou no metrô, a caminho de casa ou do trabalho, com uma segunda oportunidade, onde só falaria coisas inteligentes e espirituosas, de deixar com inveja Humphrey Bogart em Casablanca. Imaginou várias vezes ter visto Svetlana nos corredores dos shoppings, nos cinemas, correndo no Ibirapuera no domingo de manhã, mas o fato é que nunca conseguiu vê-la fora do ambiente de trabalho.

Pesquisou, fingindo a maneira mais desinteressada possível, sobre ela na empresa. Surpreendeu-se em descobrir que aquela beleza que o arrebatara, aquele rosto de camponesa ucraniana, aqueles olhos cor de mel ligeiramente melancólicos não eram uma unanimidade entre seus colegas homens, e que ela frequentemente despertava antipatia entre as mulheres. Inveja, certamente, ele imaginava. Mas Svetlana realmente não era do tipo comunicativo no trabalho. Teria um namorado, que ninguém nunca vira nem sabia quem era, e não parecia receptiva às eventuais cantadas mais ou menos diretas que, não raro, recebia. Mas, aos poucos, Mikhail foi pensando menos e menos nela, e começou até a lançar uns olhares gulosos para a Adriana, a estagiária do Marketing morena e gostosinha.

Fora marcada uma nova reunião entre todos os departamentos. Naquela manhã, Mikhail surpreendeu-se demorando mais que o habitual na escolha da melhor combinação entre a camisa e a gravata, decidindo se iria com o terno claro e sapatos marrons ou com terno escuro e sapatos pretos. Deu-se conta de que ansiava por uma nova oportunidade de conversar, um pouco que fosse, com Svetlana. Dessa vez, agiria com mais segurança, com mais firmeza, com mais pegada.

Cumprimentaram-se quase que formalmente à entrada da reunião, um mau começo.  Dessa vez, Mikhail não havia sido o escalado para falar em nome do departamento, o próprio Carvalho incumbiu-se da tarefa, numa apresentação burocrática e sem imaginação. Então, a diretoria convocou Dra. Svetlana para expor a todos o andamento da disputa judicial sobre a propriedade de uma marca e sobre a nova política de patentes da empresa. Mikhail ajeitou-se na poltrona e não perdeu uma palavra da exposição, que ele achou competente e clara. Houve aplausos entusiasmados e olhares de aprovação dos diretores.

No intervalo, quando desligava o celular onde acabara de dar orientações para um dos funcionários de seu departamento, Mikhail viu-se frente a frente com Svetlana.

“Como vai, Mikhail?”

“Bem, e você?” (‘Você’, boa garoto, dessa vez não pisou na bola.)

“No próximo fim de semana vai acontecer o festival de dança de Curitiba, você sabe, não?”
“Sim, claro”, mentiu. “O festival é ótimo, tem grupos do mundo inteiro”, chutou de forma arriscada, mas certeira.

“Você vai?”

“Ah, acho que não vai dar. Vai ser o casamento da minha irmã, eu não tenho como faltar.” Isso era verdade, infelizmente.

“Que pena. Pensei que talvez a gente pudesse se encontrar por lá. Mas eu entendo.”

“Puxa, que pena mesmo.”

“Eu vou todo ano, adoro. Este ano vem o balé da Ópera de Viena, vão dançar Giselle.”

“Nossa, que ótimo. Giselle é lindo! É Justamente o nome da minha irmã que vai se casar.”

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Mikhail chegou a pensar loucuras, em inventar uma desculpa para não ir ao casamento da irmã, mas ele era padrinho e teve que admitir que não havia escapatória. Durante as bodas parecia distante, chegaram a lhe perguntar se estava passando bem. Bebeu mais do que deveria e saiu antes do fim da festa.

Poucas semanas depois ouviu boatos na empresa de que Svetlana fora vista mais de uma vez saindo com um dos diretores, homem bem mais velho do que ela, casado.

Mikhail passou a folhear livros sobre balé nas livrarias, chegando a comprar alguns. No fim de semana alugava vídeos do Lago dos Cisnes, do Quebra Nozes e outros. Aos poucos foi tornando-se mais entendido no assunto. Fez uma assinatura do Teatro Municipal, aonde ia sozinho. Uma noite viu-se em lágrimas ao fim de uma apresentação de Giselle. Matriculou-se em um curso de dança de salão. Descobriu que levava jeito para a coisa. Passou a frequentar gafieiras com seus novos colegas, a convite dos professores de dança. Uma vez, em viagem de trabalho ao Rio, conheceu Ritinha na Estudantina. Dançaram juntos a noite inteira. Passaram a se falar com frequência pelo telefone. Em pouco tempo os dois se alternavam nos fins de semana entre Rio e São Paulo. Ritinha, uma dentista alegre e desinibida, tinha molas nos quadris e sabia fazê-lo rir. Em pouco mais de um ano estavam casados, tendo ele, pouco antes, assumido a gerência da filial do Rio.

Porém, nas vezes em que tinha que participar das reuniões em São Paulo e via Svetlana, ficava mexido. Acabavam sempre conversando, frequentemente sobre dança. Mikhail contou-lhe que tinha até ganho um prêmio na Estudantina dançando bolero com Ritinha. Svetlana pareceu muito entusiasmada com a notícia. “Veja só, quem acabou tornando-se um bailarino de verdade!”

Quando voltava para o Rio, ficava como que enfeitiçado, sentindo-se culpado por não conseguir deixar de pensar em Svetlana. Isso durava uns três ou quatro dias, acabou se acostumando, depois passava e ele deixava de pensar nela quase que completamente. Às vezes, aos domingos, colocava um CD de Tchaikovsky para tocar bem alto e ficava olhando o teto por um longo tempo.

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Num dia de dezembro, Mikhail soube da fatalidade. Svetlana, de férias, tinha viajado para Moscou, onde assistiria o Bolshoi ao vivo, o sonho de toda uma existência. Havia uma violenta nevasca. O avião da conexão partiu de Paris, mas nunca chegou à Rússia. O enterro já havia acontecido, mas Mikhail não deixaria de ir à missa de sétimo dia.

Na igreja ortodoxa, depois da missa, foi apresentado à mãe da falecida colega. Diante daquela imigrante ucraniana de pele envelhecida pelo sol tropical e olhos muito azuis agora avermelhados pelas lágrimas, apresentou-se:

“Sou Mikhail, era colega de sua filha na empresa. Sinto muitíssimo. Minhas condolências.”

Os olhos sofridos da velha senhora se acenderam: “Então o senhor é o Mikhail! O “Misha”! Minha filha falava muito do senhor, sempre com muito carinho.” E segurava com força as mãos de Mikhail entre as suas.

Svetlana...

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Praia Depois da Chuva

Fiquei frustrado porque, ao escanear a aquarela, perderam-se todas as sutilezas das nuvens e do céu. Mas segue assim mesmo. Se quiserem, vejam ao vivo...

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Toscana 3 - À Sombra das Oliveiras

Mesmo que estejamos "Sob o Sol da Toscana", uma sombra às vezes é bem-vinda. Estas oliveiras centenárias fazem parte do cenário atemporal dos arredores da inspiradora Abadia de Sant' Antimo, próxima a Montalcino.

sábado, 6 de outubro de 2012

Diários de Viagem: Veneza


Como toda grande cidade turística, Veneza tem seu lado público e seu lado íntimo. O lado público todos conhecem, de perto ou de longe: a Praça de São Marcos, com seus pombos e sua Basílica, a Ponte dos Suspiros, o Palácio Ducalle, as gôndolas e o Grande Canal. Já o lado íntimo é aquele que os moradores conhecem bem e que o turista observador tenta descobrir no pouco tempo de que dispõe. Num pequeno punhado de dias, trava um jogo de sedução, para merecer da cidade a revelação de intimidades, detalhes e mesmo defeitos que normalmente só se mostram nas relações antigas e sem pressa.

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Veneza não tem árvores. Melhor dizendo, quase não as tem. Consequentemente, é um grande e monótono deserto para amantes e observadores de pássaros, uma vez que pássaros precisam delas para alimento, pouso e abrigo. Não avistei um mísero pardal. A exceção são os pombos, claro, e uma ou outra gaivota nas grandes rivas que margeiam a laguna. Os pombos são onipresentes. A maior parte dos possíveis locais de pouso para os incontinentes columbídeos nos prédios importantes de Veneza são guarnecidos com longos espetos de aço de ponta afiada. Em meio a toda essa monotonia ornitológica fiz um flagrante surpreendente: um pombo colorido, em diversos tons de verde, se destacava em meio às monótonas nuances de preto e branco de seus semelhantes. Intrigado, saí perguntando a razão daquelas penas tropicais aos demais pombos da praça. Os pombos arrulhavam com evidente desdém, mas nenhum se dispôs a esclarecer o caso. Uma gaivota me chamou para um canto da praça e decifrou o mistério: dois anos antes, num programa de intercâmbio entre as duas cidades carnavalescas, uma pomba veneziana pousou no Rio de Janeiro. Veio ela, por obra de cupido, a atrair a simpatia de um papagaio, que se prontificou a apresentar-lhe as muitas maravilhas cariocas, programa esse que incluía uma passada em seu cafofo com vista para os Arcos da Lapa. Ah bom.

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Observei com atenção as janelas das casas de Veneza, fotografando muitas, inclusive. Não vi nenhuma que fosse guarnecida de ripinhas paralelas e inclinadas. As únicas venezianas que vi nas janelas eram as de carne e osso.

Quase despercebidos em meio ao mar de turistas, existem os moradores de Veneza. Os números são massacrantes: mais de 21 milhões de turistas em 2007 para uma população residente de 60 mil, e que vem reduzindo-se ano a ano. Os preços exorbitantes dos imóveis vêm afugentando os venezianos da gema, que resistem em casas herdadas há muitas gerações. Um pequeno estúdio de 36 m2 vale cerca de 260 mil euros, mais de um milhão de reais.

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Talvez a melhor coisa a se fazer em Veneza seja perder-se no labirinto de ruelas, cruzando canais secundários e terciários, subindo e descendo as centenas de pontezinhas. Não há automóveis, não há motocicletas nem mesmo bicicletas. Devem ser proibidas pela legislação local ou simplesmente os possíveis ciclistas são desencorajados pelo sobe e desce de degraus a cada ponte. Então, tudo é feito por via aquática. A ambulância, a viatura dos bombeiros, os taxis, os caminhões de mudança e os que abastecem de mercadorias o comércio da cidade, tudo existe e funciona em versão flutuante e motorizada. Afastando-se dos principais pontos turísticos, reparamos nas donas de casa abastecendo-se em mercearias, mães levando e trazendo suas crianças das escolas, profissionais indo e voltando do trabalho. As vielas vão se estreitando e em algumas delas pode-se tocar ao mesmo tempo as paredes dos dois lados da rua.  Uma charmosa favela medieval. Descobrimos por acaso uma oficina pequena de marcenaria náutica, onde um artesão dava retoques finais em remos de gôndolas. Fabricava também aquelas assombrosas obras de design que são as peças maciças de madeira onde os remos se apoiam.

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Não passeamos de gôndola. Muito caro. Pareceu-me que todas as gôndolas de Veneza haviam sido alugadas por turistas japoneses.

Ser carteiro em Veneza é uma proeza. As casas não seguem numeração sequencial ao longo das vias e as vias têm designações diferentes conforme seu porte. Fondamentas são as ruas que margeiam os canais; rivas são as grandes fondamentas, que geralmente dão para a laguna; calles são ruas; campo é uma praça e corte é um pátio; rio terra é um antigo canal aterrado; salizada é uma rua principal; ruga é uma rua comercial, enquanto sotoportigo é uma passagem coberta, por baixo de um imóvel, geralmente ligando duas calles. Vi dois carteiros discutindo vigorosamente, provavelmente sobre a provável localização de um endereço postal. Deve ser uma cena comum.

No final de uma tarde, depois de esperar em vão que a companhia aérea localizasse minha bagagem extraviada havia já três dias, perguntei ao gerente do hotel onde poderia comprar alguma roupa para sobreviver até que minha mala fosse entregue (o que só acabou acontecendo no sexto dia de viagem, quando eu já estava deixando Florença). Ele indicou-me a área no mapa: um pouco acima da ponte Rialto, na margem oriental do Grande Canal. Parti do hotel em passo acelerado para o local indicado. Talvez pelo caminhar decidido, despido da máquina fotográfica e sem mapa na mão, comecei a ter a ilusão de que era visto pelos passantes como um autêntico veneziano. Vi-me tentado a acenar aleatoriamente para conhecidos imaginários a destra e a sinistra, gritando alto “Ciao, Adamo! Ciao, Filomena!” Quando dei por mim, havia atravessado toda a cidade e estava em algum lugar da margem norte, de frente para a laguna, num corte tranquilo onde bambini brincavam sob o olhar de suas mamas e nonas. Deliciosamente perdido, quase um anônimo veneziano.

Mais fotos de Veneza:


De manhãzinha, a Chiesa di Santa Maria della Salute.

Equivalente veneziano do carro estacionado na porta de casa.

"Favelão medieval"

Sol nascente: sob a arcada do Palazzo Ducalle. (fotógrafos madrugam)

Clap, clap clap. As luvarias venezianas são tradicionais.

Acrescente barulho de pratos e talheres, um cheirinho de comida na panela e um bebê chorando: também mora gente em Veneza.

Pausa para um panini.

Numa vitrine, baralho ilustrado por Milo Manara, ícone italiano do quadrinho erótico.

Estado atual da obra deste artista depois de mais de um mês trabalhando no registro da fachada de seu próprio estudio em pátio (corte) escondido de Veneza.

O Grande Canal, com a Ponte Rialto ao fundo.

Sem legenda.



sábado, 29 de setembro de 2012

Diários de Viagem: 1 - Pincel de Barba


Ia viajar. Achei que era hora de ter mais um pincel de barba, para deixar na bolsa de viagem e não correr o risco de me esquecer dele, como já aconteceu. O único que tinha  então era o segundo de minha vida. Pincéis de barba, quando bons, duram muito. O primeiro, me deu meu avô, assim que surgiram-me os primeiros pelos na cara (lembrei-me agora das vezes em que, nos últimos de seus 96 anos, barbeei meu avô). Era da marca Batil, que não sei se existe ainda, e fez-me pensar que todos os pincéis de barba eram assim macios. Depois de muito uso, já ralo em pelos, pediu descanso e substituição. Custei a encontrar outro da mesma qualidade, que uso até hoje.

Então, parti para a missão. Aproveito, pensei, e compro também um bom pente para meu enteado, que iniciou um estágio de Administração em uma multinacional e passou, pasmem, a sentir necessidade de ajeitar o cabelo no meio do dia. Entrei numa farmácia. Pincel de barba? Ali. Sessão de variedades: bobs de cabelo, pentes plásticos de tamanhos variados, buchas de banho, pinças, tesouras e alicates de unha pendurados em um display, embalados individualmente. Só havia um tipo de pincel, made in China, com cabo de madeira e pelos brancos. Abri a embalagem e testei-o contra o rosto. Devem ter usado como matéria prima pelos de porco espinho ou bigode de javali. Perguntei à mocinha se havia pentes de osso. Ela me olhou como se eu tivesse pedido equipamento para sangria, sanguessugas vivas talvez. Fui a uma segunda farmácia, uma terceira, umas sete ou oito. O pincel chinês dominou completamente o mercado (cadê o Cade que não vê isso?) e pentes de osso não existem mais.

Senti-me como um viajante do tempo em seu próprio tempo. Lembro-me, eu pequeno, de  assistir meu pai barbeando-se e engraxando os sapatos, sempre pretos, diariamente antes de sair para o trabalho. Men stuff, era assim que todo homem fazia e eu faria também quando me tornasse um homem. Tenho hoje uma caixa com graxa marrom, preta e incolor, três escovas pequenas para espalhar cada tipo de graxa e três escovas grandes e macias para dar brilho, além de uma flanela para o capricho. Engraxo meus próprios sapatos e, talvez por isso, eles duram muito. Faço a barba diariamente, fins de semana e férias inclusive, espalhando o creme de barbear com pincel e raspando com lâmina descartável. Depois, gel facial ou loção pós barba. Tenho dois pentes de osso, um em casa e outro na pasta de couro que levo para o trabalho. Ambos têm, cada um, mais de dez anos de uso: são indestrutíveis. Fiquei a me sentir um solitário, como alguém que ainda usa máquina de datilografar em tempos de computadores. Fiz uma pesquisa informal e rápida, nesses tempos de homens de barba eternamente de três dias, que é a que mais coça. Prevalecem a espuma em spray espalhada com os dedos ou o aparelho elétrico.

Na Itália existem pincéis de barba bonitos e elegantes, de pelos variados, cada um mais macio que o outro. Existem pentes de osso também. São vendidos em farmácias (que são muito diferentes desses supermercados da saúde e da beleza feminina daqui), ou em lojas que vendem também relógios, prendedores de gravata, charutos e cachimbos. Men stuff. São caros, mas valem o preço. Trouxe um pincel que o vendedor disse ser de pelos de texugo. Outro pincel, pelo andar da carruagem, só aos 75, 80 anos de idade, se precisar.