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sábado, 19 de fevereiro de 2011

Quatro reais

Laura, uma amiga que mora no Rio, nos liga num domingo e pede a indicação de um bom restaurante de frutos do mar em Niterói. Ela, uma amiga e o marido desta iam atravessar a ponte para um passeio nessa terra, minha e de Araribóia. Pergunto se eles se importariam em ter nossa companhia, seria um bom programa naquela clara manhã de outono. Tudo bem, ótima idéia, e ficamos aguardando que passassem em nossa casa para apresentarmos Jurujuba aos cariocas.

Uma hora mais tarde, chegam Laura, sua amiga Leninha com seu marido, o Fred, e, além dos três, a mãe de Leninha e a filha do casal, de uns dez anos de idade. Apresentações de praxe. Já conhecíamos Leninha da casa da Laura, moça simpática, jeito delicado. Fred pareceu-me econômico nos sorrisos e nas palavras, ar ligeiramente contrariado, ou então era minha imaginação fértil. Primeiras impressões podem ser enganosas, melhor não julgar e dar uma chance ao rapaz. Seguimos de carro pela orla de São Francisco e Charitas, as praias cheias tendo como fundo o Rio visto de longe, paisagem inédita para muitos cariocas. Chegamos ao bairro de pescadores, onde uma providencial vaga na sombra nos aguardava. Depois descobrimos tratar-se da sombra de um pé de jamelão carregado. Se você gosta do carro coberto de manchinhas roxas, tudo bem, nada que uma boa lavada não resolva.

Todos elogiaram a decoração rústica do restaurante, cheia de modelos de traineiras e motivos náuticos, e a vista para a enseada bucólica. Ordenamos uma entrada e as bebidas. Eu e minha mulher pedimos caipirinhas e Fred pediu um chope. Hora de deixar a conversa fluir e conhecermos melhor os amigos de nossa boa amiga. Logo o garçom, um senhor de óculos nos seus sessenta e poucos, traz as bebidas. Aqui, começa a história: Fred diz ao garçom que mudou de idéia, que não vai mais querer o chope, e sim uma cerveja. Uma luz amarela pisca na minha cabeça: aí vem coisa. O garçom, educado, explica o óbvio: poderia trazer a cerveja quando o freguês quisesse, mas o chope, uma vez tirado, não poderia ser devolvido. Fred insiste, deixando o pobre garçom constrangido, e talvez pensando: ”Essa é inédita.” Será que alguém ficou intrigado, ou teria sido só eu? Chegam os tira gosto de frutos do mar para nos distrair enquanto esperamos os pratos principais. Esforço-me em acompanhar a conversa, mas meus sentidos estão definitivamente voltados para o cara. Ele, então, pega um pedaço de limão e o espreme no chope. Lembro-me de que, quando as cervejas mexicanas chegaram ao Brasil, era comum enfiar um pedaço de limão gargalo abaixo naquelas garrafinhas transparentes, mas no chope? Para mim era novidade. Então, depois de um gole, nosso comensal chama o garçom: “Meu amigo, tem umas coisas estranhas no meu chope, acho que o copo estava mal lavado. Dá pra devolver e trazer aquela cerveja e outro copo?”

Não me lembro de mais uma única palavra dita naquela tarde. Minha mulher, que não tinha notado nada, ficou de boca aberta quando, mais tarde, lhe contei o acontecido. Não sei se alguém mais percebeu. Se perceberam, disfarçaram heroicamente, conseguindo impedir que aquela tarde fosse para o ralo. Fiquei com pena da Leninha e da filha dos dois. Não consegui deixar de pensar, de forma preconceituosa, que algumas mulheres, para não ficar a pé, pegam até ônibus errado. Fiquei imaginando o conceito que a sogra teria daquele genro, e na mala sem alça que Laura tinha que aturar de vez em quando para estar com a amiga.

Algumas pessoas me surpreendem, outras me surpreendem muito. Até hoje, quando penso nessa história, fico tentando imaginar as motivações daquele sujeito. Seria algum tipo de jogo que ele gosta de ganhar, algo do tipo “Agora Te Peguei, Seu FDP”, o prazer simples em humilhar alguém que ele nunca tinha visto antes, ou a motivação mesquinha de economizar a merreca do preço do chope, vai saber? Com certeza, uma estratégia bizarra que, ele acredita, vai deixá-lo mais próximo da felicidade. Quem tiver outras hipóteses, por favor, cartas para esta redação.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

O Olho de Evilásio


Jaciara, o amor de sua vida, prestes a se entregar a outro homem e ele ali, sobre a cômoda, assistindo tudo sem poder piscar.

Uma pedrada numa guerra de estilingues aos nove anos, e o olho esquerdo de Evilásio foi vazado e depois secou. Virou Evilásio, o Caolho. Só quase aos quarenta um oftalmologista o convenceu a usar prótese. Confeccionou-se uma, no mesmo belo tom entre o mel e o verde do olho direito. Sentiu sua confiança avultar-se. Tornou-se mais sociável, mais falante. Os encontros amorosos, até ali raros e frustrantes, tornaram-se mais freqüentes. Então conheceu Jaciara. Apaixonou-se e, contra suas próprias expectativas, foi correspondido pela jovem e bela viúva, apesar dos quase vinte anos que separavam suas idades. O casamento veio rápido, e os filhos, que não tinham vindo no primeiro casamento de Jaciara, também não vieram no segundo. Não pareciam lamentar, pois o amor que tinham um pelo outro como que exigia uma dedicação absoluta, que os dois, no fundo, não ansiavam em dividir com mais ninguém. Por doze anos viveram numa felicidade que parecia irreal.

Até que veio o câncer, que se abateu sobre Evilásio violento e rápido. No leito do hospital seguravam-se as mãos e olhavam-se nos olhos, nutrindo-se um com o olhar do outro, mal acreditando que os dele em breve se fechariam para sempre. Quando finalmente a hora chegou e os enfermeiros vieram com a maca fria buscar o corpo, ela, que chorava no desespero da súbita solidão, os deteve: “Quero o olho de vidro. Quero olhar o olho de meu marido pelo resto de minha vida.”

Assim, o olho de Evilásio foi colocado sobre a cômoda do quarto do casal, em um frasco de cristal cheio de soro fisiológico, que Jaciara trocava diariamente.

Quando chegou ao outro mundo e abriu os olhos para o infinito e a eternidade, Evilásio percebeu que voltara a enxergar com os dois, mas só o direito via as maravilhas do Paraíso: o esquerdo via seu antigo quarto, e, no quarto, via Jaciara. Via-a quando ela se vestia e quando ela se despia, via-a lançar para ele olhares longos, como que sabendo que era observada. Na penumbra da noite, Evilásio via Jaciara chorar baixinho, abraçada ao travesseiro que fora dele.

Mas o tempo tem o poder de aliviar as maiores dores. Num fim de tarde, Evilásio viu Jaciara enfeitar-se e perfumar-se como nunca mais fizera, e depois sair. Com a serenidade que a eternidade confere às almas que mereceram o Paraíso, ele entendeu e esforçou-se por aceitar que o corpo jovem e bem feito de sua viúva mais dia menos dia seria assediado pela ânsia de novos afagos e carícias. Com a alma partida, tentou conformar-se com o inevitável.

Uma noite, ela voltou acompanhada. Coração aos pulos, ele viu Jaciara ser despida e desejou poder fechar aquele olho que penava no mundo dos vivos. Mas então, por cima do abraço do outro, ela mirou fixa e demoradamente o olho do falecido. Depois, num arranco, rechaçou o avanço dos beijos em direção a seus lábios e Evilásio pode vê-la dizer: “Na boca, não!” Ela, então, colocou o despertador entre o frasco de cristal e a cama, obstruindo a visão do olho de Evilásio.

No dia seguinte ela percebeu que o frasco havia transbordado.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Joaquín Sorolla

Retornávamos, o mestre e eu, pela trilha que serpenteia de vertente em vertente das colinas de Peñalara, cada um carregando sua caixa de pintura. Fixado por fora de cada caixa, um apunte a óleo, fruto ainda fresco do trabalho da manhã. Clotilde e Concepción, alguns passos à frente, carregam o cesto de vime coberto com um xale verde bordado, contendo os restos do almoço: queijos, frutas frescas e secas, pão e duas garrafas de vinho tinto que esvaziáramos à sombra de uma oliveira.

O sol forte castiga a relva curta e seca naquele fim de verão, ofuscando a vista e fazendo-nos cerrar os olhos. Então, vindas do norte, lufadas de vento enfunam as saias brancas das mulheres, quase arrancam nossas boinas e levantam a poeira da trilha, exigindo que apertemos ainda mais os olhos. O vento cala os poucos pássaros e domina todos os sentidos. Primeiro quente e seco, depois fresco e úmido, prenunciando a tempestade a caminho.

O mestre então toca meu ombro, como quem diz “acorde!”, mas poderia também significar “sonhe!”. Volto-me para o norte, olhos quase fechados, e vejo um mar de sonho. Os planos de cor se dividem por linhas quase paralelas e horizontais: a relva seca é a praia, as colinas mais e menos distantes se tornam ondas do mar, a água em movimento, subindo e descendo com as sombras das nuvens que avançam pelos vales em nossa direção. A montanha distante que recortava o horizonte vê-se encoberta por vagas de violetas, azuis e cinzas vindas do mar além, como se uma extensão deste avançasse terra adentro.

O mestre então se senta no chão, abre sua caixa e, em vinte minutos, captura em um novo apunte o vento, a água, o sol, o mar, a praia, a relva, a vida toda em movimento. Levanta-se. Em seus olhos sombreados pela pala da boina e no sorriso quase oculto pela barba, vejo um mago satisfeito com seu truque. Apertamos o passo e alcançamos a carroça junto com as primeiras gotas de chuva. Os charutos terão que esperar.

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