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domingo, 18 de julho de 2010

Saci 2

Seis e quinze da manhã, mês de julho. O despertador toca sobre a cômoda, fora do meu alcance. É um truque maligno que utilizo contra mim mesmo, e que me obriga a pensar com muita solenidade na hora de programar o despertador. Sem opção, levanto-me e escuto, em meio à escuridão, os pingos de uma chuva fininha descendo pela calha do telhado. Depois de escovar os dentes, sento-me na cama, acendo o abajur, e pego o Manual do Messias. Na verdade, uma fotocópia que Richard me deu, tirada do caderninho espiral original de Donald Shimoda, o Messias. Tem até as manchas e digitais de graxa. Digitais de Richard, claro; o original estava imaculado quando ele o ganhou de Donald. Abro aleatoriamente o caderno, e leio:

“Fé é uma coisa que você precisa carregar enquanto suas convicções dizem uma coisa e as emoções dizem outra. Quando elas se entenderem, a fé é peso morto: jogue-a no lixo.”

Tenho fé que vou me arrepender se não sair para caminhar. Visto-me, calço os tênis e saio na garoa fria. Atravesso o bairro ainda silencioso até o início da subida para o Parque da Cidade, a cabeça girando entre as várias pendências de minha agenda mental. Começo a subida, e a respiração vai ficando mais profunda e rápida, ritmada pelas passadas vigorosas morro acima. A parte alta do Morro da Viração está imersa em névoa, e, depois da última curva, depois da última casa, eu também penetro nas nuvens: primeiro a cabeça, depois os pés. Um forte cheiro de eucalipto, intensificado pela umidade, me acaricia os brônquios. Em meio a um silêncio de catedral, pássaros cantam: cambaxirras rasteiras, sabiás ensaiando para a primavera, dois inhambus conversando com seus pios lúgubres, um gavião que passa gritando lá no alto, e outros pios que eu não identifico. O escuro mantém acesa a iluminação dos postes, formando halos amarelos em volta de cada lâmpada. Umas pererecas se animam a esticar o expediente, e piam escondidas na folhagem. Em meio à névoa, as árvores mais distantes parecem fantasmas que me observam enquanto se dissolvem em tons de cinza degradée. Gostaria de ter trazido a máquina fotográfica. Lembro-me que quando eu tinha uns dezoito anos, fotografei uma vez em preto e branco os eucaliptos em meio à névoa em Friburgo, com a velha Canonet que meu avô Newton me deu. Aspiro lentamente a névoa, o silêncio, os eucaliptos, os pios dos pássaros e das pererecas. Perto do topo, uma rolinha sai voando assustada na beira da estrada, enquanto um saci some pulando no meio do mato molhado.

Pra Ver Saci


A existência ou não existência de saci é assunto, para muitos, controverso. Os que afirmam a inexistência baseiam sua convicção no frágil argumento de nunca terem posto os olhos em um. Ora, se pensarmos um pouquinho só, vamos reparar que quase todos os que não acreditam são pessoas da cidade, daquelas que nunca passaram uma noite numa fazenda ou numa casa de roça. Ou, se passaram, ficaram o tempo todo reclamando justamente daquilo que a gente, que mora aqui, mais gosta e aprecia: o silêncio, o ar limpinho, a falta de pressa. Ficam contando as aranhas no teto, imaginando se de noite elas vão descer penduradas por um fio bem na cara deles. Dão pulos na cama com qualquer barulhinho de morcego no forro ou de gambá andando no telhado. Até de barulho de vento eles têm medo. Vêm pra roça de salto alto, com lapitopis e vinhos estrangeiros. Tá na cara que essas pessoas não vão ver nunca um saci. Por que qualquer um na roça sabe que pra ver um saci a gente não pode estar apressado nem nervoso.


Agora se, mesmo vindo da cidade, que é lugar onde saci não põe o pé de jeito nenhum, o sujeito chega na roça e consegue se aquietar, aí pode ser que um saci apareça para esse sujeito. Tem que acordar cedo, assim que a saracura começa a gritar na beira do rio, levantar, tomar um golezinho de café com rapadura e descer para o curral ver tirar o leite das vacas, sem medo de pisar em bosta. Depois de prosear com os campeiros encostado na cerca, subir pra cozinha pra comer um angu com leite ou uma broa com manteiga. Mais tarde, talvez, ir até o ribeirão pescar um bagrezinho ou um piau pra fazer pro almoço. Antes do almoço, tomar uma cachacinha, que saci adora o cheiro de uma cachacinha. Cheiro de vinho ele estranha, que vinho é coisa que ele não tá acostumado, e diante de coisa estranha ele não dá as caras, que o bichinho é arisco como ele só. Mas importante mesmo pro sujeito ter chance de ver um saci é tirar um ronquinho depois do almoço. Mas também não pode acabar de comer e já correr pra cama ou pra rede, que isso, além de não ser bom pra digestão, é de muita má educação. Depois do almoço tem que comer um docinho de goiaba ou um docinho de mamão verde, ou um pouquinho dos dois, pra não fazer desfeita pra dona da casa, e sem faltar o queijinho, que é de lei. Depois tomar um café e prosear com o dono da casa, contar e ouvir uns causos. Só depois ir botar o bucho pro alto. Ajuda também um bicho de pé. Não tem coisa melhor pra gente ver um saci que ficar coçando aquela coceirinha gostosa no dedo do pé. Aí o sujeito tá no ponto.


Agora mesmo, que eu estou aqui nessa rede falando essas instruções pra vocês, se vocês não fizerem barulho e olharem com o rabo do olho pros lados do terreiro, vão ver que ali, perto do galinheiro, junto do pé de limão galego, tem um rebuliçozinho de folhas rodando. Aquilo, não tem erro, é saci na certa. As galinhas ainda não estão arreliadas por que ainda não perceberam o danadinho. E ali do outro lado, no bambuzal junto da porteira, escuta só, tão ouvindo? É isso mesmo, esse tec tec tec, que o caboclo desavisado pode pensar que o bambu grosso está rangendo por causa da brisa. Mas quem conhece sabe que isso que ‘cês tão ouvindo são os sacizinhos que, pra quem não sabe, nascem nos ocos dos paus e dos bambus, e já estão crescidinhos e no ponto de sair de noite pra ganhar o mundo, passando por uns furinhos que eles fazem, que depois, quem quiser eu levo vocês lá pra mostrar.


Então, vocês que já estão aí mais ambientados, já viram que saci é coisa que não falta por aqui. Agora, faça-me o favor, vem um sujeito da cidade dizer que saci não existe? E ainda dizem que a gente aqui é que é bobo e acredita em tolice. A gente pode até ter cara de bobo, mas bobos são eles, que se acham muito espertos, mas não sabem o nome de um pé de árvore, não sabem reconhecer o canto de um passarinho nem um pé de couve na horta. O sujeito não sabe nada disso e ainda acha que pode saber se saci existe ou não existe. Tenha a santa paciência!

quarta-feira, 7 de julho de 2010

O Fim




Este conto foi escrito para o concurso “Contos de Rio” de O Globo, agora em 2010. Foi baseado neta foto de Marcelo Carnaval que era, até então, a mais votada pelos leitores para servir de base para os contos. Só que uma outra foto, de uma grande nuvem redonda sobre o Largo da Carioca, acabou sendo a mais votada, e tive que escrever outro conto.

Da janela de seu pequeno apartamento alugado no Catete, Margaret via a multidão caminhando em direção ao Centro, com velas acesas nas mãos e entoando cânticos. Muitas outras pessoas andavam a esmo, enquanto carros da polícia e ambulâncias tentavam abrir caminho com as sirenes ligadas.

Não se sabe ao certo como tudo começou. Dizem que foi um spam, desses que surgem e morrem periodicamente na rede. Contribuiu o fato de o América ter se sagrado bicampeão carioca, e o Flamengo estar há dois anos encalhado na terceira divisão. Ou talvez porque, desde o Natal, chovia diariamente no Rio de Janeiro, e já estávamos em fins de abril. O certo é que, aos poucos, todos foram se convencendo de que O Fim estava próximo. Na verdade, muito próximo. Não se sabia ao certo como seria, se pela água ou pelo fogo, se viria de cima ou de baixo, mas o mundo ia se acabar em 23 de abril, conforme cálculos seguros baseados no calendário maia. O que começou como motivo de piada passou a gerar risinhos amarelos e nervosos. Depois foi o caos e o pânico. Dívidas pararam de ser pagas, funcionários não compareciam mais a seus empregos, fornecedores só aceitavam pagamento à vista, e a economia parou. Os bares encheram-se de gente, mas a cerveja já havia se esgotado completamente em 19 de abril. Coincidência ou não, naquela mesma noite do dia 19, pessoas premidas pelo terror começaram a se jogar das janelas, se esborrachando nas calçadas como goiabas maduras. Na Nossa Sra. de Copacabana e na Rio Branco, ninguém se arriscava além da proteção das marquises. Disseram que uma civilização mais avançada, ou talvez o Messias em pessoa, viria resgatar uns poucos eleitos. Então, no dia 22, multidões se dirigiram a pé para a Central do Brasil, o Santos Dumont, o Galeão, a Catedral Metropolitana e o Sambódromo, iniciando uma vigília nos possíveis pontos de embarque, assunção ou abdução, conforme a crença de cada um nas diversas versões circulantes.

Já Margaret não tinha conseguido embarcar para Governador Valadares. Viu-se só, mais só do que nunca, se isso era possível. Não soube bem por que, mas achou, então, que era importante arrumar o apartamento. Encerou o chão, arrumou as gavetas e a estante, acertou o extrato bancário. Depois tomou banho, maquiou-se, perfumou-se, vestiu seu melhor vestido e sentou-se no sofá novo, na pequena sala do conjugado. Pagara a última prestação do sofá em março, e esta lembrança deixou-a estranhamente em paz. Suspirou de leve e ficou olhando para o bico dos sapatos por uns dez minutos. Pensou na solidão dos últimos anos. Pensou no namoro desmanchado na cidade natal, na tia que a criara depois da morte dos pais. Pensou no colega de trabalho que lhe era tão simpático, mas que ela repeliu quando ele a convidou para um cinema.

Então a campainha tocou. Pelo olho mágico, ela viu um homem desconhecido, forte e elegante, vestindo uma camisa justa de malha. Margaret pensou um pouco e decidiu que era hora de deixar para trás seus medos e escrúpulos. Resolveu abrir a porta, apesar do leve brilho azulado que aquele estranho emanava.