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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Svetlana


Mikhail era novo na empresa e aquela seria a primeira vez em que participaria da Reunião Estratégica, como representante do Departamento Comercial.  Passara os últimos dias e algumas noites levantando dados, montando planilhas e criando gráficos para fazer bonito diante dos novos colegas e de seus superiores. “Só se tem uma oportunidade de causar uma boa primeira impressão”, a frase clichê ressoava na sua cabeça desde que a data da reunião fora anunciada. No dia D teve cuidados adicionais ao escolher o que vestiria depois do banho matinal. Depois de pronto, olhou-se no espelho grande do banheiro: cabelos alinhados, que mandara cortar estrategicamente uma semana antes, para que não estivessem nem muito grandes nem com aparência de terem sido cortados especialmente na véspera. Não era bonito de rosto nem tinha porte atlético, mas sua altura acima da média e o olhar direto e inteligente, como ele supunha ter, teriam de ser suficientes para fazer boa figura física diante da plateia. Plateia essa que não se furtaria ao prazer de emitir julgamentos, diretos ou velados, sobre aquele novo funcionário de médio escalão da empresa. As cartas certas para ganhar a oportunidade de uma futura promoção tinham de ser postas na mesa desde o início do jogo.

Dez da manhã, último andar do prédio. Na antessala do anfiteatro onde se daria a reunião, funcionários e gerentes tomavam café, conferiam seus relatórios e conversavam assuntos aleatórios. Alguns menos precavidos esbravejavam discretamente pelo celular com alguma secretária ou subalterno, reclamando do atraso na entrega de alguma pasta ou pen drive. Mikhail esforçava-se mentalmente para ficar à vontade e participar da conversa, sem demonstrar o quanto ainda se sentia deslocado. Então a porta do elevador se abriu, o que, casualmente, atraiu o olhar de Mikhail. Por ela saíram dois diretores e Svetlana. A xícara que Mikhail segurava ficou suspensa no ar em algum lugar entre seus lábios e o pires que segurava com a mão esquerda. Uma mulher esguia, cabelos longos parcialmente presos, vestindo um tailleur grená atravessou a antessala com passos ao mesmo tempo elegantes e decididos e dirigiu-se para a primeira fila, cadeira do canto esquerdo, do anfiteatro.

Convocados todos para entrar. Mikhail apalpou pela décima vez o pen drive no bolso de cima do paletó e abriu mais uma vez a pasta com os relatórios. 

Durante as muitas apresentações, teve dificuldade em se ater aos números e gráficos, seu olhar constantemente escapando para a primeira fila à esquerda.

“Mulherão, não é não?”

“Como?”

Era o Luiz Cláudio, seu colega de departamento quem lhe falava ao ouvido.

“Como o quê, cara? Até parece que você não está olhando.”

“Ah, ela.” Não sabia exatamente por que, mas se viu tentando fingir um ar blasée e desinteressado. “Quem é?”

“Não conhece ainda? É a Svetlana, assessora do Departamento Jurídico. Dra. Svetlana. Ah, se eu não fosse noivo...”

“Ah, sim. Já tinha ouvido falar, não fui apresentado ainda. Realmente, mulherão.”

Mais tarde, no coffee break, Mikhail avaliava mentalmente seu desempenho. Passara de forma clara informações relevantes baseadas nas quais, inclusive, arriscara fazer algumas previsões sobre os rumos futuros do mercado, fato que atraiu o interesse e algumas perguntas adicionais de um dos diretores. Mas recriminava-se por ter gaguejado um pouco mais que o habitual e por quase ter perdido o rumo na exposição de um argumento técnico particularmente complicado. Enquanto esteve de pé diante de todos, viu seu olhar ser atraído mais de uma vez para a assessora jurídica. O Mulherão. Svetlana. Aquele belo par de pernas insinuando-se, esbelto e musculoso, por sob a pasta de relatórios jurídicos o havia desconcentrado por uma ou duas vezes. O olhar de Svetlana fitara-o fixamente durante toda a exposição, certamente em sinal de atenção estritamente profissional. Certamente.

Durante o coffee break, tapinhas estalaram em suas costas. “Gostei de sua exposição. Se bem que você poderia ter enfatizado mais a questão da margem de lucros, como eu tinha lhe falado.” Era o Carvalho, seu gerente imediato. “Mas, para primeira vez, até que não foi mal, garoto.”

“Que bom que o senhor gostou.”

Varreu a sala com o olhar em busca de Luiz Cláudio. Encontrou-o ao celular perto dos banheiros e andou até lá. Ele fechou o aparelho e sorriu: “Mandou bem, Mika!”

“O Carvalho veio me disser que ‘para primeira vez, até que não foi mal’. Que filho da puta.”

“Relaxa, cara, ele deve estar temendo uma futura concorrência pelo cargo dele. Vai se acostumando que empresa grande é assim mesmo. Ninguém tem amizade, só interesse. Menos eu, claro, que sou seu amigo desinteressado. Para provar, vou te fazer um favor, você vai ficar me devendo essa. Vem comigo.”

Atravessou o recinto arrastando-o pelo braço. Quando deu por si, Mikhail estava postado diante dela.

“Doutora, este é o novo membro do Comercial, não sei se já foram apresentados, meu amigo Mikhail.”

“Muito prazer, Mikhail. Svetlana, do Jurídico.” Estendeu-lhe a mão muito branca sem deixar de bebericar o suco de laranja.

“O prazer é meu, Dra.”

“Interessante esse seu nome, ‘Mikhail’, de onde ele saiu?”

“Minha mãe era professora de dança, dava aulas de balé na escola. É Miguel em russo. O nome veio do Baryshnikov, imagino eu. Ela era fã de balé clássico.”

“E você, gosta de dança?”

“Mais ou menos. Entendo um pouquinho, tinha muitos livros sobre balé lá em casa, Lago dos Cisnes na vitrola no domingo, umas duas idas ao Municipal, essas coisas, mas não passa disso.”

“Que pena. Eu adoro dança, adoro balé.”

“Nunca pensou em ser dançarina?”

“Pensei, pensei a sério até, estudei balé desde a infância. Mas, aos quatorze, rompi um ligamento do tornozelo, fiquei dois meses engessada e perdi o pique. Acabei advogada.”

“Que pena, a Sra. tem porte de bailarina.” (Que ridículo eu fui, censurou-se internamente, chamei-a de senhora, vai pensar que eu a acho velha. E ela deve ter ouvido essa de ‘porte de bailarina’ milhares de vezes).

“É, as pessoas dizem isso, às vezes. Mas me chame de Svetlana, OK Mikhail?”

“OK, Svetlana.”

“Bem, a reunião já vai recomeçar. Melhor entrarmos.”

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Durante uma semana, aquele minuto de conversa foi passado e repassado na cabeça de Mikhail milhares de vezes. Como o replay de uma jogada na grande área, que os comentaristas de futebol discutem exaustivamente tentando decidir se foi ou não foi pênalti. Pênalti que ele, certamente, havia chutado para fora. Sentia-se um idiota, poderia ter dito que adorava dança, mas o fato é que seu interesse por balé era mesmo periférico, quase que apenas cultura geral.

Sonhou inúmeras vezes, durante o banho ou no metrô, a caminho de casa ou do trabalho, com uma segunda oportunidade, onde só falaria coisas inteligentes e espirituosas, de deixar com inveja Humphrey Bogart em Casablanca. Imaginou várias vezes ter visto Svetlana nos corredores dos shoppings, nos cinemas, correndo no Ibirapuera no domingo de manhã, mas o fato é que nunca conseguiu vê-la fora do ambiente de trabalho.

Pesquisou, fingindo a maneira mais desinteressada possível, sobre ela na empresa. Surpreendeu-se em descobrir que aquela beleza que o arrebatara, aquele rosto de camponesa ucraniana, aqueles olhos cor de mel ligeiramente melancólicos não eram uma unanimidade entre seus colegas homens, e que ela frequentemente despertava antipatia entre as mulheres. Inveja, certamente, ele imaginava. Mas Svetlana realmente não era do tipo comunicativo no trabalho. Teria um namorado, que ninguém nunca vira nem sabia quem era, e não parecia receptiva às eventuais cantadas mais ou menos diretas que, não raro, recebia. Mas, aos poucos, Mikhail foi pensando menos e menos nela, e começou até a lançar uns olhares gulosos para a Adriana, a estagiária do Marketing morena e gostosinha.

Fora marcada uma nova reunião entre todos os departamentos. Naquela manhã, Mikhail surpreendeu-se demorando mais que o habitual na escolha da melhor combinação entre a camisa e a gravata, decidindo se iria com o terno claro e sapatos marrons ou com terno escuro e sapatos pretos. Deu-se conta de que ansiava por uma nova oportunidade de conversar, um pouco que fosse, com Svetlana. Dessa vez, agiria com mais segurança, com mais firmeza, com mais pegada.

Cumprimentaram-se quase que formalmente à entrada da reunião, um mau começo.  Dessa vez, Mikhail não havia sido o escalado para falar em nome do departamento, o próprio Carvalho incumbiu-se da tarefa, numa apresentação burocrática e sem imaginação. Então, a diretoria convocou Dra. Svetlana para expor a todos o andamento da disputa judicial sobre a propriedade de uma marca e sobre a nova política de patentes da empresa. Mikhail ajeitou-se na poltrona e não perdeu uma palavra da exposição, que ele achou competente e clara. Houve aplausos entusiasmados e olhares de aprovação dos diretores.

No intervalo, quando desligava o celular onde acabara de dar orientações para um dos funcionários de seu departamento, Mikhail viu-se frente a frente com Svetlana.

“Como vai, Mikhail?”

“Bem, e você?” (‘Você’, boa garoto, dessa vez não pisou na bola.)

“No próximo fim de semana vai acontecer o festival de dança de Curitiba, você sabe, não?”
“Sim, claro”, mentiu. “O festival é ótimo, tem grupos do mundo inteiro”, chutou de forma arriscada, mas certeira.

“Você vai?”

“Ah, acho que não vai dar. Vai ser o casamento da minha irmã, eu não tenho como faltar.” Isso era verdade, infelizmente.

“Que pena. Pensei que talvez a gente pudesse se encontrar por lá. Mas eu entendo.”

“Puxa, que pena mesmo.”

“Eu vou todo ano, adoro. Este ano vem o balé da Ópera de Viena, vão dançar Giselle.”

“Nossa, que ótimo. Giselle é lindo! É Justamente o nome da minha irmã que vai se casar.”

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Mikhail chegou a pensar loucuras, em inventar uma desculpa para não ir ao casamento da irmã, mas ele era padrinho e teve que admitir que não havia escapatória. Durante as bodas parecia distante, chegaram a lhe perguntar se estava passando bem. Bebeu mais do que deveria e saiu antes do fim da festa.

Poucas semanas depois ouviu boatos na empresa de que Svetlana fora vista mais de uma vez saindo com um dos diretores, homem bem mais velho do que ela, casado.

Mikhail passou a folhear livros sobre balé nas livrarias, chegando a comprar alguns. No fim de semana alugava vídeos do Lago dos Cisnes, do Quebra Nozes e outros. Aos poucos foi tornando-se mais entendido no assunto. Fez uma assinatura do Teatro Municipal, aonde ia sozinho. Uma noite viu-se em lágrimas ao fim de uma apresentação de Giselle. Matriculou-se em um curso de dança de salão. Descobriu que levava jeito para a coisa. Passou a frequentar gafieiras com seus novos colegas, a convite dos professores de dança. Uma vez, em viagem de trabalho ao Rio, conheceu Ritinha na Estudantina. Dançaram juntos a noite inteira. Passaram a se falar com frequência pelo telefone. Em pouco tempo os dois se alternavam nos fins de semana entre Rio e São Paulo. Ritinha, uma dentista alegre e desinibida, tinha molas nos quadris e sabia fazê-lo rir. Em pouco mais de um ano estavam casados, tendo ele, pouco antes, assumido a gerência da filial do Rio.

Porém, nas vezes em que tinha que participar das reuniões em São Paulo e via Svetlana, ficava mexido. Acabavam sempre conversando, frequentemente sobre dança. Mikhail contou-lhe que tinha até ganho um prêmio na Estudantina dançando bolero com Ritinha. Svetlana pareceu muito entusiasmada com a notícia. “Veja só, quem acabou tornando-se um bailarino de verdade!”

Quando voltava para o Rio, ficava como que enfeitiçado, sentindo-se culpado por não conseguir deixar de pensar em Svetlana. Isso durava uns três ou quatro dias, acabou se acostumando, depois passava e ele deixava de pensar nela quase que completamente. Às vezes, aos domingos, colocava um CD de Tchaikovsky para tocar bem alto e ficava olhando o teto por um longo tempo.

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Num dia de dezembro, Mikhail soube da fatalidade. Svetlana, de férias, tinha viajado para Moscou, onde assistiria o Bolshoi ao vivo, o sonho de toda uma existência. Havia uma violenta nevasca. O avião da conexão partiu de Paris, mas nunca chegou à Rússia. O enterro já havia acontecido, mas Mikhail não deixaria de ir à missa de sétimo dia.

Na igreja ortodoxa, depois da missa, foi apresentado à mãe da falecida colega. Diante daquela imigrante ucraniana de pele envelhecida pelo sol tropical e olhos muito azuis agora avermelhados pelas lágrimas, apresentou-se:

“Sou Mikhail, era colega de sua filha na empresa. Sinto muitíssimo. Minhas condolências.”

Os olhos sofridos da velha senhora se acenderam: “Então o senhor é o Mikhail! O “Misha”! Minha filha falava muito do senhor, sempre com muito carinho.” E segurava com força as mãos de Mikhail entre as suas.

Svetlana...

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Praia Depois da Chuva

Fiquei frustrado porque, ao escanear a aquarela, perderam-se todas as sutilezas das nuvens e do céu. Mas segue assim mesmo. Se quiserem, vejam ao vivo...

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Toscana 3 - À Sombra das Oliveiras

Mesmo que estejamos "Sob o Sol da Toscana", uma sombra às vezes é bem-vinda. Estas oliveiras centenárias fazem parte do cenário atemporal dos arredores da inspiradora Abadia de Sant' Antimo, próxima a Montalcino.

sábado, 6 de outubro de 2012

Diários de Viagem: Veneza


Como toda grande cidade turística, Veneza tem seu lado público e seu lado íntimo. O lado público todos conhecem, de perto ou de longe: a Praça de São Marcos, com seus pombos e sua Basílica, a Ponte dos Suspiros, o Palácio Ducalle, as gôndolas e o Grande Canal. Já o lado íntimo é aquele que os moradores conhecem bem e que o turista observador tenta descobrir no pouco tempo de que dispõe. Num pequeno punhado de dias, trava um jogo de sedução, para merecer da cidade a revelação de intimidades, detalhes e mesmo defeitos que normalmente só se mostram nas relações antigas e sem pressa.

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Veneza não tem árvores. Melhor dizendo, quase não as tem. Consequentemente, é um grande e monótono deserto para amantes e observadores de pássaros, uma vez que pássaros precisam delas para alimento, pouso e abrigo. Não avistei um mísero pardal. A exceção são os pombos, claro, e uma ou outra gaivota nas grandes rivas que margeiam a laguna. Os pombos são onipresentes. A maior parte dos possíveis locais de pouso para os incontinentes columbídeos nos prédios importantes de Veneza são guarnecidos com longos espetos de aço de ponta afiada. Em meio a toda essa monotonia ornitológica fiz um flagrante surpreendente: um pombo colorido, em diversos tons de verde, se destacava em meio às monótonas nuances de preto e branco de seus semelhantes. Intrigado, saí perguntando a razão daquelas penas tropicais aos demais pombos da praça. Os pombos arrulhavam com evidente desdém, mas nenhum se dispôs a esclarecer o caso. Uma gaivota me chamou para um canto da praça e decifrou o mistério: dois anos antes, num programa de intercâmbio entre as duas cidades carnavalescas, uma pomba veneziana pousou no Rio de Janeiro. Veio ela, por obra de cupido, a atrair a simpatia de um papagaio, que se prontificou a apresentar-lhe as muitas maravilhas cariocas, programa esse que incluía uma passada em seu cafofo com vista para os Arcos da Lapa. Ah bom.

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Observei com atenção as janelas das casas de Veneza, fotografando muitas, inclusive. Não vi nenhuma que fosse guarnecida de ripinhas paralelas e inclinadas. As únicas venezianas que vi nas janelas eram as de carne e osso.

Quase despercebidos em meio ao mar de turistas, existem os moradores de Veneza. Os números são massacrantes: mais de 21 milhões de turistas em 2007 para uma população residente de 60 mil, e que vem reduzindo-se ano a ano. Os preços exorbitantes dos imóveis vêm afugentando os venezianos da gema, que resistem em casas herdadas há muitas gerações. Um pequeno estúdio de 36 m2 vale cerca de 260 mil euros, mais de um milhão de reais.

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Talvez a melhor coisa a se fazer em Veneza seja perder-se no labirinto de ruelas, cruzando canais secundários e terciários, subindo e descendo as centenas de pontezinhas. Não há automóveis, não há motocicletas nem mesmo bicicletas. Devem ser proibidas pela legislação local ou simplesmente os possíveis ciclistas são desencorajados pelo sobe e desce de degraus a cada ponte. Então, tudo é feito por via aquática. A ambulância, a viatura dos bombeiros, os taxis, os caminhões de mudança e os que abastecem de mercadorias o comércio da cidade, tudo existe e funciona em versão flutuante e motorizada. Afastando-se dos principais pontos turísticos, reparamos nas donas de casa abastecendo-se em mercearias, mães levando e trazendo suas crianças das escolas, profissionais indo e voltando do trabalho. As vielas vão se estreitando e em algumas delas pode-se tocar ao mesmo tempo as paredes dos dois lados da rua.  Uma charmosa favela medieval. Descobrimos por acaso uma oficina pequena de marcenaria náutica, onde um artesão dava retoques finais em remos de gôndolas. Fabricava também aquelas assombrosas obras de design que são as peças maciças de madeira onde os remos se apoiam.

(clique na foto para ampliar)
Não passeamos de gôndola. Muito caro. Pareceu-me que todas as gôndolas de Veneza haviam sido alugadas por turistas japoneses.

Ser carteiro em Veneza é uma proeza. As casas não seguem numeração sequencial ao longo das vias e as vias têm designações diferentes conforme seu porte. Fondamentas são as ruas que margeiam os canais; rivas são as grandes fondamentas, que geralmente dão para a laguna; calles são ruas; campo é uma praça e corte é um pátio; rio terra é um antigo canal aterrado; salizada é uma rua principal; ruga é uma rua comercial, enquanto sotoportigo é uma passagem coberta, por baixo de um imóvel, geralmente ligando duas calles. Vi dois carteiros discutindo vigorosamente, provavelmente sobre a provável localização de um endereço postal. Deve ser uma cena comum.

No final de uma tarde, depois de esperar em vão que a companhia aérea localizasse minha bagagem extraviada havia já três dias, perguntei ao gerente do hotel onde poderia comprar alguma roupa para sobreviver até que minha mala fosse entregue (o que só acabou acontecendo no sexto dia de viagem, quando eu já estava deixando Florença). Ele indicou-me a área no mapa: um pouco acima da ponte Rialto, na margem oriental do Grande Canal. Parti do hotel em passo acelerado para o local indicado. Talvez pelo caminhar decidido, despido da máquina fotográfica e sem mapa na mão, comecei a ter a ilusão de que era visto pelos passantes como um autêntico veneziano. Vi-me tentado a acenar aleatoriamente para conhecidos imaginários a destra e a sinistra, gritando alto “Ciao, Adamo! Ciao, Filomena!” Quando dei por mim, havia atravessado toda a cidade e estava em algum lugar da margem norte, de frente para a laguna, num corte tranquilo onde bambini brincavam sob o olhar de suas mamas e nonas. Deliciosamente perdido, quase um anônimo veneziano.

Mais fotos de Veneza:


De manhãzinha, a Chiesa di Santa Maria della Salute.

Equivalente veneziano do carro estacionado na porta de casa.

"Favelão medieval"

Sol nascente: sob a arcada do Palazzo Ducalle. (fotógrafos madrugam)

Clap, clap clap. As luvarias venezianas são tradicionais.

Acrescente barulho de pratos e talheres, um cheirinho de comida na panela e um bebê chorando: também mora gente em Veneza.

Pausa para um panini.

Numa vitrine, baralho ilustrado por Milo Manara, ícone italiano do quadrinho erótico.

Estado atual da obra deste artista depois de mais de um mês trabalhando no registro da fachada de seu próprio estudio em pátio (corte) escondido de Veneza.

O Grande Canal, com a Ponte Rialto ao fundo.

Sem legenda.