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segunda-feira, 21 de maio de 2012

A Guerrilha no Campo do Medíocre


A arte como um todo sempre se ocupou dos extremos da condição humana: o mal absoluto e o bem absoluto. Da luta entre o lado negro e o lado luminoso da força, entre Deus e o diabo, entre céu e inferno, entre o herói e o vilão, o mocinho e o bandido. Cinema, teatro, literatura, artes plásticas exibem estes extremos da situação humana para deleite das grandes platéias desde sempre. A nós, os reles mortais, caberia o papel de meros espectadores dessas batalhas épicas, torcendo sempre, claro, pela vitória do Bem, o que quase sempre acontece no fim (pelo menos na arte costuma acontecer). Findo o espetáculo, saindo do cinema, do museu ou fechando o livro, retornamos à nossa vida ordinária, raramente fazendo um paralelo entre a obra que nos deleitou e nosso dia a dia.

Há não mais que um par de séculos, porém, a literatura começou a se ocupar não das grandes batalhas entre a luz e as trevas, mas da guerrilha travada na intimidade de cada alma, no corriqueiro, no dia a dia da rotina na aldeia humana. No conto “Bola de Sebo”, Maupassant, retrata até certo ponto essa batalha secreta, surda e sem glória. Nele, aristocratas são forçados a dividir uma carruagem com uma mulher da vida, a heroína Bola de Sebo. Os esnobes abrem mão do preconceito quando a necessidade, ou melhor, a conveniência de matar a fome se faz presente. Aceitam de bom grado e fartam-se com parte do farnel que lhes é generosamente oferecido pela previdente cortesã. Poucos dias depois, sacrificam sem nenhum remorso a dignidade da moça quando a situação exige. Mas ainda ali, os campos ideológicos estão bem delimitados, pois existe por trás da história a crítica social à burguesia.

Assisti pela segunda vez, meio por acaso, ao filme “Queime Depois de Ler”. Nele, os irmãos Coen, dirigem John Malkovich, Brad Pitt e George Clooney, elenco de peso para compor um palco de personagens sem charme, sem glória e de convicções, digamos, flexíveis. A diferença aqui é que não se identifica ninguém por quem torcer nem qualquer motivação ideológica dos autores. Quem foi assistir ao filme esperando que a orquestra de violinos atacasse num crescendo no momento em que o Herói enfrentasse o Mal na batalha final em defesa da honra e da virtude se frustrou. Deveriam ter empregado melhor seu precioso tempo e ido assistir um filme de Mel Gibson. Os irmãos diretores, como já haviam feito em “Fargo” e em “Um Homem Sério”, especializaram-se em retratar de maneira cômica, quase carinhosa, as pequenezas dos medíocres, que somos quase todos nós.

Temos todos empatia imediata pelos heróis. Quando eles aparecem na telona, lotam as grandes salas de projeção e têm garantida a nossa torcida. Um pouco mais difícil é nos identificarmos com os anti-heróis que Joel e Ethan Coen nos apresentam. Eles são parecidos demais conosco em suas covardias e mesquinharias. Mas, no fundo, se abrirmos mão dos julgamentos morais e conseguirmos ter alguma identificação com eles, talvez estejamos conseguindo enxergar nossas próprias limitações com mais objetividade e, até, compaixão. Não é tarefa fácil. Talvez por isso seus filmes sejam exibidos quase sempre nas pequenas salas de filmes cult.

domingo, 13 de maio de 2012

Everest, Culpa e Outras Divagações Dominicais


Li a crítica positiva na Veja – sim caro leitor, sou assinante da Veja; aviso logo de cara para que você, que posta aqueles quadrinhos pré-fabricados contra a revista no seu Facebook interrompa já aqui sua leitura e vá ocupar seu precioso tempo em coisa mais de acordo com suas crenças - sobre o novo livro de Luiz Felipe Pondé. Não sosseguei enquanto não o comprei o “Guia Politicamente Incorreto da Filosofia – Um Ensaio de Ironia”, recém lançado. Aliás, o fato dele estar encabeçando a lista dos mais vendidos de “não ficção” me dá esperanças de que exista uma parcela significativa de pessoas incomodadas com essa ditadura do politicamente correto, ou “praga do PC” como diz Pondé. Pelo menos na parcela da população que lê e, provavelmente, pensa de forma crítica. Li-o em pouco mais de um dia. Independente de se concordar com seus pontos de vista, Pondé sobressai como excelente frasista. Exemplos? “A Bahia é uma terra devastada pela alegria”; ou “Em mim, o amor é raro como a virtude de uma mulher louca de desejo”. Só pelas contundentes frases de efeito, artigo raro hoje em dia, já vale a leitura.

Pondé é médico nascido numa família de médicos. Numa aula do curso de medicina sobre câncer, perguntou ao professor como se sentiria um paciente diante da certeza da morte. “Meu filho, você está no curso errado, deveria estar cursando filosofia.” Ainda tentou conciliar as coisas direcionando seu curso para a psicanálise. Buscando aperfeiçoamento psicanalítico, enveredou pela Filosofia e nunca mais a largou. No embalo da leitura, assisti alguns vídeos com entrevistas e aulas dadas por ele. Contrariando o meu receio, pareceu-me uma pessoa desprovida de agressividade ou rancor. Apenas um homem honesto consigo mesmo, casado e pai de família, que se diferencia da maioria de nós pela curiosidade e perplexidade diante da fragilidade da condição humana, suas grandezas e misérias e de nossa  pequenez diante da Natureza. Que ousa encarar essa angústia, ao invés de tentar afogá-la com cerveja e churrasco. Coragem para poucos.

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Falando em Natureza. Comprei no mesmo dia o livro “Na Natureza Selvagem" – "Into the Wild” , do jornalista Jon Krakauer. O livro, que virou um ótimo filme, narra a saga de Chris MacCandless, rapaz de família rica que, assim que se formou, entregou seu diploma aos pais, vendeu seu carro, doou todo seu dinheiro e sumiu sem destino e sem dar notícias. Seu cadáver decomposto foi localizado por caçadores de alces dois anos depois, dentro de um ônibus abandonado na imensidão erma e gelada do Alasca. Krakauer, jornalista que publica regularmente na National Geographic Magazine, no Washington Post e no New York Times, já havia ganho projeção ao escrever “No Ar Rarefeito”, onde narrou sua experiência pessoal escalando o Everest na temporada mais fatídica daquela montanha, e a mercantilização do alpinismo, onde empresas lideradas por veteranos do Everest se propõem a levar qualquer um que não seja doente ou aleijado ao topo de mundo. Muito mais fascinante do que a análise crítica desse aspecto comercial do alpinismo radical é a tentativa de entender o que leva o ser humano, ou alguns deles, a testar seus limites diante da Natureza desafiando a morte. Existe um aspecto universalmente humano nesse desafio. Não é apenas testar os limites físicos, ou ver a paisagem lá do alto, nem mesmo tentar afirmar-se como mais poderoso e corajoso que a maioria dos mortais. Trata-se da busca de um encontro com uma instância mais profunda de si mesmo que a proximidade da morte proporcionaria. Era isso que buscava MacCandless, é isso que buscam os alpinistas de grandes altitudes, e o jornalista Krakauer identifica em si as sementes da mesma “loucura”.

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Ultimamente ouve-se muito sobre a responsabilidade do homem em salvar a Natureza. Depois de “matar” Deus e de tentar ressuscitá-lo, o homem, em arrogância pré-galileica, tem se arvorado como aquele que vai “salvar” ou “destruir” a Natureza. No máximo, estamos tentando prolongar um pouco mais o capítulo, ou melhor, a vírgula que a humanidade representa no grande livro da Natureza. Ela vai continuar existindo depois do homem, depois da vida sobre a Terra, depois que o Sol explodir. Não conosco, mas “sem nosco”. A Natureza não é boa nem má, tanto engorda quanto mata. Tanto fornece água limpa que alivia a sede quanto despeja a enxurrada que arrasa. Câncer é tão natural quanto beija-flor. Mesmo assim, e talvez justamente por sua impessoalidade majestosa, a Natureza é fascinante. Nós apenas tentamos agradar e barganhar com o deus ou os deuses naturais, para que ela nos mostre mais o seu lado favorável que o destrutivo.

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Voltando a L. F. Pondé. No livro ele aborda uma questão básica da filosofia: o homem é originalmente bom ou originalmente mau? Para Hobes, o ser humano é essencialmente mau e egoísta, e as coisas só não funcionam pior e conseguimos conviver em razoável harmonia porque a sociedade, em nome da convivência, tolhe e pune os impulsos egoístas individuais. Já para Rousseau, que no momento está ganhando de goleada no meio acadêmico "politicamente correto", o homem é essencialmente bom, mas é corrompido pelo meio, pela Sociedade. Caberia aí também confrontar a visão judaico-cristã do pecado original (nascemos maus) com o conceito budista de que somos essencialmente budas (nascemos bons) e apenas não permitiríamos, ou não saberíamos como fazer com que esse buda se manifeste. Ressalve-se que o budismo estimula (cobra) do indivíduo o esforço inalienável de retirar o entulho que encobriria esse buda original em cada um de nós. A ênfase na culpa pode desanimar e deprimir espíritos menos corajosos (ou com baixa auto-estima, para usar um termo mais em voga). A vertente defendida por Rousseau, por sua vez, pode retirar da esfera do individual a “culpa”, ou a responsabilidade por seus atos e pelo resultado de seus atos. O culpado seria sempre "O Outro": a mãe, o vizinho, o cunhado, a sociedade, o Estado, o "Capitalismo Selvagem" que me impedem de manifestar plenamente o ser virtuoso que eu seria. No entanto, sabemos que só avançam na psicanálise aqueles que têm a coragem de assumir a responsabilidade (culpa) pelo que não vem funcionando bem em suas vidas, independente das circunstâncias mais ou menos favoráveis que cabem a cada um. Colocar a culpa no outro é a desculpa dos que não querem ou não têm coragem moral para mudar. A falta total de culpa gera monstros morais. Ou, no mínimo, gera pessoas preguiçosas, que não arrumam o quarto, deixam o capim crescer no quintal e culpam o chefe por não subirem na carreira.

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Ainda sobre a responsabilidade moral. É fácil para nós, dessa distância segura,  jogar pedras naqueles que, pautados pelas questões práticas de sobrevivência própria e de seus familiares, foram colaboradores dos nazistas durante a ocupação da França, ou daqueles que, pelas mesmas razões, fecharam os olhos para o holocausto. Isso quando não denunciaram ativamente judeus escondidos no porão do vizinho na Alemanha do Terceiro Reich. À distância, todos transbordamos das nobres virtudes da coragem e da compaixão. Eu, humildemente, sou perseguido pela dúvida em relação às minhas eventuais qualidades morais. Tenho dúvidas se agiria como colaborador ou se me engajaria na resistência. Estatisticamente apenas, as chances são de que eu seria um colaborador. Esse fantasma (essa culpa), me assombra. Acho mais saudável assim.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Ausentes


Quando ela entrou, todo mundo olhou. Todo mundo é modo de dizer. Aqui em São José dos Ausentes, todo mundo em geral não passa de meia dúzia. O campo de futebol, quando não serve de pasto para meia dúzia de ovelhas, só é usado quando vem time de fora. Casados e solteiros não rola. Vivos contra mortos, teriam que convocar o Borja, que tem uma perna mais curta, para completar o time dos que ainda não foram. No caso em questão, todo mundo éramos eu, o Borja e o Palhaço. O Borja nasceu por aqui e, raridade, está aqui até hoje. Talvez por causa da perna mais curta, que o touro imprensou no curral. É o gerente do posto e da lanchonete do posto. E o Palhaço é o frentista. Quando a caravana do circo parou para abastecer, faz uns dez anos, ele, de porre, foi urinar no banheiro dos fundos e dormiu por lá. Foram embora e parece que até hoje não deram falta. Nunca vi ele rir. É o único palhaço de bigodão ruivo que eu conheço. Quanto a mim, não interessa porque eu vim parar aqui. Eu mesmo já quase estava conseguindo esquecer. Até que aquela mulher apareceu para atrapalhar meu esquecimento.

Olhei pela vidraça para ver com que carro ela tinha chegado assim sozinha no meio da noite. Para abastecer, com certeza. Não sei se por causa da neblina ou por causa da lâmpada queimada do poste, não vi carro nenhum. Nem moto, nem caminhão, nem montaria. Nem bicicleta tinha lá fora.

“Banheiro?”, ela disse. O Palhaço esticou o beiço inferior por debaixo do bigode, apontando o corredor do canto. Ficamos os três calados, olhando um para a cara do outro, tentando adivinhar se o outro estava pensando alguma besteira parecida com a que cada um estava pensando.

O toc-toc das botas de salto que ela usava, calça justa de jeans por dentro do cano alto, voltando. Continuei sentado no canto ao lado da geladeira de refrigerantes, com os braços cruzados por baixo do poncho e equilibrando a cadeira nos dois pés de trás, as costas contra a parede. O motor da geladeira é meio barulhento, mas emite um calorzinho bom. Ela sentou-se junto ao balcão e pediu um maço de cigarros para o Borja. Sacou um, pôs na boca e fez aquela cara de “acende o meu fogo”. Ele puxou o isqueiro dos bêbados pelo barbante, levou-o o mais perto que pôde da ponta apagada e apertou três vezes até ele acender. Como o barbante era curto, ela teve que se curvar sobre o balcão. Eu e o Palhaço trocamos um olhar, imaginando o ângulo de visão que o Borja teria dos peitos dela.

“Obrigada”, ela disse depois de uma baforada para o alto.

Fiquei olhando a dona por debaixo da aba do boné. Ela parecia... Mas não podia ser. Ficou ali, sem pressa, fumando e olhando o pôster do Internacional por cima da prateleira de bebidas. Fazia biquinho, soltava a fumaça devagar, com gosto, estufando só um pouquinho as bochechas queimadas de frio, com uns pelinhos louros bem fininhos. De onde eu estava não dava para ver os pelinhos louros, mas dava para imaginar direitinho. Depois amassou a bituca no cinzeiro e levou as mãos à nuca, puxando um rabo de cavalo comprido de dentro do casaco de couro. Soltou os cabelos claros do elástico e eles foram se espalhando, se abrindo à medida que ela balançava a cabeça bem devagar, como as pétalas de uma flor que se abre naqueles filmes em que passam a imagem bem acelerada, para parecer que a flor se abriu assim, na cara da gente. Cabelo lustroso, bonito, parecia anúncio de xampu. Eu já tinha visto cabelos como aqueles, se soltando daquele jeito, há muito tempo atrás. Depois ela pediu um conhaque. “Frio lá fora”, justificou.

A essa altura, eu já estava sentindo umas coisas que há muito tempo não sentia. Fiquei olhando para a dona, até ela sentir aquela sensação na nuca que a gente sente quando estão nos olhando por detrás. Então ela se virou e me viu. Cravou os olhos em mim e eu fiquei firme olhando nos olhos dela. Senti um arrepio que foi das costas até a base da nuca e gotas de suor brotando nas têmporas, por baixo do boné. Instintivamente conferi a pressão que a bainha da faca de caça fazia na minha perna direita, por baixo da calça larga. Sem tirar os olhos de mim ela se levantou e veio para o meu lado.

“Posso?” Arrastou uma cadeira de plástico azul de uma mesa próxima, que tinha uma estampa de uma marca de cerveja no tampo, e sentou-se perto de mim. Levantei um pouco a aba do boné para olhá-la melhor. Devo ter ficado quase um minuto sem piscar.

“Tu continuas bonita, apesar dos anos. Um pouco mais pálida, mas bonita”, falei. E gostosa, pensei.

“E tu ainda sabes como cortejar uma mulher."

“Achei que nunca mais ia te ver, a não ser nos sonhos.”

“Tu sonhas comigo ainda?”

“Só de vez em quando”, menti.

“E essa barba? Usas há muito tempo?”

“Desde que tu te foste.”

“Até que te caiu bem. E esses fios brancos, as ruguinhas no canto dos olhos, te dão um ar maduro, bem charmoso, que tu não tinhas.”

“Ponto para os anos, então. Pelo menos essa vantagem eles trazem.”

Ficamos em silêncio, olhando para os joelhos um do outro por um minuto ou dois.

“Por que resolveste vir atrás de mim agora?”, perguntei erguendo os olhos devagar. "Ou vais dizer que chegaste aqui por acaso, obra do destino?"

“Fiquei te devendo uma explicação.”

“Será que isso é possível, uma explicação?”

“Entenda, tu viajavas muito.”

“Eu já era caminhoneiro quando me conheceste. Ou não era?”

“Eras sim.”

“Tu te lembras daquela coisa de amá-lo e respeitá-lo na saúde e na doença e etc.? E acho que tinha na presença e na ausência também.”

“Não tinha não.”

“Mas devia ter, pombas. Respeitar tinha e tu juraste ali, na frente do padre e de todos, olhando nos meus olhos.”

“Na hora era verdade. Mas a solidão dói. Doía barbaridade. Quando tu voltavas, a dor cessava um pouco. Não de todo, porque já antecipava a próxima partida. E quando tu partias, de novo e de novo, a felicidade ainda persistia por um tempo, por uns dias. E depois a dor, a saudade, o vazio que tu deixavas, aquele vazio imenso latejando. Não era tédio, era dor. Uma dor pedindo por teu abraço, por teus beijos. Eu achei que outro abraço, outro beijo poderia me anestesiar da tua ausência. Pois saiba, então: não podiam. Não puderam.”

“Mas tinha que ser logo com o Jurandir? Meu amigo, meu mecânico, meu companheiro de pescaria? Quando me avisaram do acidente, eu já estava para lá de Belo Horizonte. Não me contaram a princípio que tu não estavas sozinha no carro. Só depois me disseram que ele estava também. E só no velório eu soube que a carreta atingiu nosso carro na saída do Motel Vênus. E eu ainda fiquei quase dois anos pagando por aquele troféu de corno feito de aço retorcido.”

“Eu fechava os olhos e imaginava que eras tu.”

“Perdi a mulher, o mecânico, o companheiro de pescaria, o respeito das pessoas. Tive que passar a levar o caminhão para consertar lá em Bento Gonçalves. E o que eu ganhei em troca?”

“Eu sempre exigia que se apagasse a luz.”

“Um par de chifres e cabelos brancos.”

“Eu nunca deixei de te amar.”

“E por que tu pensas que eu acreditaria em ti agora?”

“Eu não tenho por que mentir. Não agora.”

Ela passou suas mãos por baixo da lã do poncho e segurou meu braço, os dedos finos e frios. Um arrepio me subiu pelo braço até o pescoço, um arrepio bom e quente. Fui aos poucos relaxando a musculatura, como numa rendição. Ela deslizou os dedos até os meus e puxou-me com suavidade, fazendo a cadeira desencostar da parede e os quatro pés pousarem no chão.

“Você não imagina como foi difícil te encontrar aqui. Mas nunca desisti.”

Levantei os olhos até os olhos dela e fiquei olhando aquele azul pálido, as pupilas dilatadas, aquelas gotas que surgiam nos cantos. O compressor da geladeira deu um tranco e parou de fazer barulho. Quis ainda exercer algum direito de vingança, dizer algo que a ferisse profundamente, que nos deixasse quites:

“O Inter também foi campeão mundial de clubes, viu?”

“Eu vi o pôster.”

“Na final, o Ronaldinho estava no outro lado, no Barcelona, e perdeu.”

“É mesmo?” Ela não parecia nem um pouco atingida. Abriu um sorriso. “Seu bobo!” Então me beijou um beijo quente com seus lábios frios, um leve cheiro de terra como perfume. Depois me segurou as duas mãos, ergueu-se e me puxou.

“Tem uma lua linda lá fora. Vem.”

Levantei-me e deixei-me guiar. Senti no rosto o vento gelado quando a porta se abriu. Então olhei para trás, por cima do ombro, para o bigode ruivo do Palhaço. Tentei decorar aquela forma, aquela cor. Seria a última vez que eu o veria.