Aqui compartilho contos, crônicas, poesia, fotos e artes em geral. Escrevo o que penso, e quero saber o que você pensa também. Comentários são benvindos! (comente como ANÔNIMO e assine no fim do comentário). No "follow by E mail" você pode se cadastrar para ser avisado sempre que pintar novidade no blog.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Sobe?

Uma possível maneira de se contar a história da civilização seria através da história das profissões. Umas surgem, têm seu apogeu, duradouro ou fugaz, e depois declinam. Outras se mantêm firmes, sempre renovadas e necessárias, incluindo-se aí a mais antiga de todas. Passeador de cães e técnico de informática a domicílio são exemplos de profissionais surgidos recentemente que hoje se tornaram indispensáveis. Por outro lado, o comprador de garrafas de vidro, este pioneiro da reciclagem, desapareceu. Nunca mais vamos “saber quem tem mais garrafa vazia pra vender”, e a expressão vai talvez se extinguir junto com a profissão. Hoje vi um profissional que se encontra seriamente ameaçado: um amolador de facas. Talvez a profissão que mais vá deixar saudades, em especial nas esposas de maridos infiéis. Ainda mais uma vez ele me alegrou, exibindo seus dotes musicais e tirando melodias da lâmina de aço curvada com destreza contra a pedra de amolar - apesar de hino do Flamengo fazer parte de seu repertório.

Outra que parece encaminhar-se para existir apenas na lembrança dos mais velhos é a de ascensorista, essa profissão empolgante, feita de histórias cabeludas sem final e de piadas engraçadíssimas sem princípio. No prédio em que trabalho já suprimiram quase todos. Em alguns prédios, já se digita o andar antes mesmo de se entrar na fila do elevador. Nada de pigarrear na fila e empostar a voz para que “décimo terceiro” soe claro e másculo. Alguns elevadores falam com você, pedem para você liberar a porta, dão bom dia, mas a figura amiga do ascensorista vai deixar saudades. Muito embora sua presença nunca tenha sido suficiente para acalmar alguns radicais da claustrofobia. Conheço um senhor de 60 anos que vai ao cardiologista (eu, no caso) subindo 14 andares de escada. Semana passada ele me perguntou por que eu nunca lhe pedi um eletrocardiograma de esforço. Muitas de minhas pacientes idosas passaram a se sentir inseguras no transporte vertical sem a presença do ascensorista. Algumas me confidenciam que se sentiriam mais seguras na companhia tranqüilizadora deles em caso de pane entre dois andares, “apesar de ser mais um para consumir oxigênio”, ponderou uma. Sem falar no medo que sentem da porta automática. Estas, hoje, são deslizantes, mas já foram sanfonadas, algumas impecavelmente douradas e polidas com Silvo ou Kaol. Eram um terror! Amputaram muitos dedos distraídos, alguns narizes proeminentes e desencorajavam sexo no elevador.

Agora, me distraio vendo os passageiros tentando imaginar a que altura fica o sensor de presença que impede que a porta avance sobre seus ombros. As opiniões divergem. Meia altura? Na altura das orelhas? Toda a altura da porta? Aquele suave piiiii que soa baixinho quando estamos no limbo do elevador não transmite qualquer segurança à maioria dos passageiros, quando estes percebem a inquietante ausência do piloto no espaço defronte aos botões. Então, muitos deles tomam de assalto aquele cubo como um bando de sem terras invadindo um latifúndio, muitas vezes, sem esperar que os que estão dentro saiam primeiro. Tenho algumas teorias que explicam este comportamento aparentemente pouco civilizado:
Os ouvidos idosos não conseguem perceber o apito de altíssima freqüência do sensor, e, portanto, nem desconfiam da existência de um sensor;
Alguns passageiros sofrem de bursite aguda, que doeria de maneira inimaginável ao menor toque, e eles não estão dispostos a escorar uma porta de aço com o ombro;
Outros imaginam que serão triturados, cortados ao meio, ou pior, capturados vivos e arrastados prédio acima, deixando um membro ou uma víscera em cada andar;
Ou então é falta de educação pura e simples.

Percebi ainda que este comportamento nunca ocorre na presença do ascensorista. Então, vamos render nossas homenagens a este bravo profissional, nosso companheiro nos altos e baixos, depositário discreto das indiscrições humanas, exemplo de simpatia e da capacidade de se manter alerta em qualquer situação, que vai aos poucos nos deixando. Sua voz educada, que nos atualiza sobre os resultados da última rodada e nos alerta gentilmente “Olha o degrau!”, em breve não será mais ouvida.

Um comentário:

  1. O comprador de garrafas de vidro só mudou de especialidade:agora ele é catador de latinhas de alumínio!E em breve o passeador de cachorros vai ser o substituto das babás ,já que filhos, na nossa classe,estão se tornando cada vez menos comuns...

    ResponderExcluir