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sábado, 26 de junho de 2010

Dormir, acordar

Acordei. Abri os olhos, só um pouco: uma pálida luz além das cortinas. Decidi que era ainda muito cedo para levantar-me e fechei os olhos novamente. Pensei que dormiria de imediato, mas não foi o que ocorreu. Permaneci desperto por trás das pálpebras fechadas, mas, embora acordado, nenhum pensamento passou por minha mente, chamando minha atenção para correr por campos, examinar estratos bancários ou admirar um belo corpo imaginário de mulher. Minha atenção era como alguém de pé no ponto de ônibus à beira de uma rua deserta, em que não passa nada nem ninguém, esperando uma condução que nunca chega.

Abri os olhos. Busquei o habitual som dos bem-te-vis e sabiás madrugadores, mas pareceu-me que eles haviam deixado para acordar mais tarde. Decidi levantar-me. Coloquei meus pés nos chinelos e virei-me em direção a Isabel. Seu corpo inflava e desinflava-se suavemente sob o lençol, de costas para mim. No outro quarto, as crianças ressonavam baixinho. Paz. Um forte cheiro de terra, como o que recende aos primeiros pingos de chuva, permeava os cômodos da casa, espesso como creme de leite.

Fui até o banheiro, mas não senti nenhuma vontade de urinar. Lavei, então, o rosto e comecei o ritual de barbear-me. Molhei o pincel e espalhei o creme em lentos movimentos circulares, fazendo surgir aos poucos a espuma grossa e agradável. Achei por bem começar a deslizar o barbeador primeiro pelo lado esquerdo do rosto. Dei-me conta de que sempre, até então, começara a barbear-me pelo lado direito. Intrigou-me a idéia de nunca até então, havia-me permitido, ou melhor, havia sequer cogitado a possibilidade de exercer a liberdade de começar a barbear-me primeiro pelo lado esquerdo.

Enxagüei o rosto, lavei o pincel e o aparelho e espalhei a loção no rosto. Senti a sensação de frescor na pele, mas não consegui sentir o perfume, só o cheiro de terra. Dei-me conta então que, apesar do lusco-fusco no banheiro, havia-me barbeado com perfeição sem sequer cogitar em acender a lâmpada sobre o espelho. Mirei meu rosto refletido. Ultimamente vinha reparando, a cada manhã, o surgimento de uma pequena mancha aqui, o aprofundamento de um sulco ali, a bolsa sob os olhos a cada dia mais visível, um novo pelo nascendo da orelha... Hoje não. Hoje me via diferente. Parecia ver no espelho meu verdadeiro rosto, nem jovem nem velho, nem ingênuo nem desiludido, nem alegre nem triste. Fiquei fitando meu próprio olhar por longos momentos. Fui despertado por uma sensação fria e úmida em minha coxa esquerda, seguida por um hálito quente e um resfolegar familiar. Olhei para baixo e agachei-me para acariciar e abraçar Argos, meu pastor alemão. Quanta saudade e alegria! Seu pelo estava perfumado e sedoso como nunca. Abracei-o com ternura, com não fazia havia trinta e poucos anos.

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