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domingo, 30 de outubro de 2011

Um Corpo no Escuro


Conhecemo-nos na faculdade de medicina. Mário era filho de um fazendeiro de café no interior de São Paulo e, a princípio, seu modo caipira de pronunciar os erres me divertia muito.  Lembro-me de termos sido colocados diante do mesmo defunto recendendo a formol em nossa primeira aula prática de anatomia. Os risos nervosos e as piadas mal colocadas tentando atenuar o incômodo causado por aquelas peças – era assim que nos referíamos aos defuntos ou partes deles: peças – escancaradas, com suas vísceras impudicamente espalhadas sobre a mesa de aço.

Depois de poucas semanas estávamos bem mais à vontade naquelas aulas, alguns chegando a trazer os últimos bocados do lanche ou os últimos goles de refrigerante para a sala de dissecção.  Havia muitos colegas vindos do interior do estado, outros da cidade do Rio de Janeiro e ainda do Estado de São Paulo, estes em sua maioria descendentes de italianos. A lista de chamada era recheada de Zanovellis, Scarantos, Materassis, Polletis e outros oriundi, e Mário era mais um deles. Camaradagens se estabeleceram durante o curso de seis anos e algumas preciosas amizades persistem até hoje. O Mário é uma delas.

O fim do primeiro ano de matérias básicas chegava ao fim. Mário, que diversas vezes havia dito que me levaria um dia para conhecer sua família na distante São José do Rio Preto sem que eu o levasse o assunto muito a sério, decidiu que o feriadão de Finados, que se estenderia de sábado a terça feira, seria a oportunidade ideal. Feito o convite, levantei o dinheiro da passagem e embarcamos num ônibus noturno para a capital paulista, onde pegamos um segundo ônibus rumo ao nosso destino final.

Lá, esperava-nos na rodoviária um dos irmãos de meu colega com uma picape. Sérgio era seu nome, se bem me lembro. Depois de passarmos rapidamente pelo centro da cidade e para que se comprasse alguns mantimentos, pegamos novamente a estrada, primeiro pelo asfalto, depois por terra batida, atravessando canaviais e cafezais a perder de vista. Adentramos uma alameda de mulungus vermelhos, que nos levou ao terreiro da fazenda. O casarão antigo e imponente se estendia em dois andares e muitas janelas à direita e à esquerda de uma escadaria de pedra ladeada por duas palmeiras centenárias.  Enquanto ajudava na retirada da bagagem e dos outros volumes da caçamba, uma mulher que adivinhei ser a mãe de Mário desceu as escadas quase aos saltos para abraçá-lo, três meses que não via o filho. Tinha a pele muito clara e os olhos verdes como os de meu amigo, e reparei que seus prováveis quarenta e tantos anos tinham lhe poupado a maior parte da sua beleza. Cumprimentou-me afetuosamente, aquele amigo de quem o filho tanto lhe falava, e me guiou pela escada acima para conhecer a sede. Quando ergui os olhos, tive uma visão que me encheu de esperanças de que aquele seria um feriado para não esquecer. Quatro garotas me olhavam com curiosidade. Fui apresentado a Liliane e Teresa, as duas irmãs de Mário, pouco mais velhas do que ele, e mais duas primas, Marcela e Mônica, que também tinham vindo para o feriado. Não consegui decidir qual a mais interessante: todas de pele bem clara e rostos delicados, os cabelos variando de louro escuro ao castanho quase preto.

Ofereceram-me o “quarto da caixa d’água”, um cômodo pequeno no extremo do corredor à esquerda. A mobília resumia-se a uma pequena cômoda bem antiga, uma cadeira simples e uma cama de viúvo, ladeada por uma mesinha com um lampião a gás. Acima da cabeceira, junto ao teto, uma pequena porta dava acesso ao forro da casa e à caixa d’água, que se anunciava por um gotejar monótono.

Acomodadas as bagagens, e enquanto não era servido o almoço, fui levado a conhecer os demais cômodos do casarão, cada qual com sua história e móveis que remetiam a antepassados da família. Um dos quartos, o único com as janelas fechadas, era o “quarto da santa”. Ali, uma serena imagem de Santa Terezinha apoiava-se sobre uma cômoda, ladeada por uma jarra de copos de leite e uma vela votiva acesa, a cena naturalmente despertando um sentimento de contrição e fazendo descer um ponto a altura de todas as vozes.

A chegada do velho Mário, o pai, foi a senha para que fosse servido o almoço: pernil e costelinhas suínas acompanhados de polenta e precedidos por uma prova da pinga destilada ali mesmo. Só então se juntou a nós Dona Célia, mãe de Marcela e Mônica. Muito parecida com a irmã, inclusive na beleza, trazia um quê de tristeza nos olhos, que mais tarde soube ser por conta de uma viuvez recente, um acidente de carro na estrada. Via-se que se esforçava sem muito sucesso em participar da conversa. Fomos perguntados sobre as aulas de medicina e sobre Niterói e suas praias, assunto que interessou as quatro moças do interior e serviu para quebrar o gelo com elas, que até então conversavam entre si aos cochichos entrecortados por risadinhas. “Quem sabe um dia o Mário não leva vocês lá e eu lhes apresento Itacoatiara, minha praia favorita?”, arrisquei enquanto piscava suplicante para meu amigo, que me sorriu cúmplice.

Terminado o almoço, serviu-se café na varanda dos fundos, o que nos fez suar naquele calor de quase verão.

“Diz o rádio que vem chuva hoje ainda”, declarou o velho Mário.

“Finados sempre chove”, disse a empregada recolhendo o bule e as xícaras.

Meu amigo decretou: “Vamos agora arrear os cavalos para irmos até o açude. Se amanhã chove, não poderemos mais ir.”

Fomos vestir calções e biquínis por baixo das calças compridas, eu antecipando a visão de porções mais generosas da anatomia das garotas, e depois descemos para as baias, onde minha ignorância naquela função me deixou apenas observando a lida. Fiquei admirando a intimidade de Mário e seus três irmãos com os arreios, freios, selas e mantas, as fivelas sendo apertadas e os nós sendo dados nas tiras de couro. Distribuídas as montarias, coube-me um pangaré atarracado de nome Sabiá, que teimava em acompanhar o galope dos outros animais com um trote duro que me trouxe vivas lembranças da refeição recente e me fez motivo de chacota das meninas e de meu amigo:

“Na volta nós, trocamos”, consolou-me ele.

Chegando ao açude, pude conferir com deleite tudo o que vinha antecipando, e não me decepcionei. Nadamos, brincamos, inventamos disputas e rimos bastante. Depois, uma das primas tirou um cigarro de maconha da mochila, que foi aceso e passado de boca em boca em meio a risadas a princípio, e depois em silêncio.

Naquela noite, depois de anunciar-se com ventania e trovoadas, uma forte chuva caiu sobre a fazenda e a energia elétrica acabou no meio do jantar. Jogamos buraco à luz de velas e, por volta da meia noite, fomos todos dormir. Acendi o lampião e tentei ler um pouco do livro que havia levado, mas logo desisti e apaguei o lampião. O breu era total, e eu via ocasionalmente apenas alguma luz dos raios já distantes através das frestas das pesadas janelas de madeira. Fiquei imaginando no escuro qual das quatro garotas era a mais bonita e se alguma delas me havia dado atenção especial até adormecer ouvindo o pinga-pinga da caixa d’água.

Não sei quanto tempo depois acordei com o coração disparado e o sangue gelando nas veias: tinha ouvido passos no quarto. Arregalei em vão os olhos e agucei os ouvidos. Parecia haver alguém aos pés da cama.

“Quem está aí?”, perguntei. Ninguém respondeu. Ouvia-se apenas o som baixo de uma respiração rápida, quase ofegante. “É você, Mário?” O som de passos aproximou-se pelo lado esquerdo da cama e senti que o colchão cedia ao peso de um corpo a sentar-se. Tremi quando uma mão pousou sobre minha perna e instintivamente segurei-a. Era uma mão pequena, que num leve frêmito segurou também a minha. Dedos suaves e tateantes deslizaram pelo meu rosto e enfiaram-se por meus cabelos, descendo pela nuca e puxando-me para um beijo. Outros beijos seguiram-se num crescente de entrega e sofreguidão, enquanto eu tateava aquele corpo desconhecido vestido com uma camisola fina, buscando em vão sua identidade. Ela enfiou-se por debaixo das cobertas e passou a direcionar com segurança minhas mãos e meus beijos desajeitados por seus vales e por suas curvas. Entreguei-me submisso a seus comandos. Minha única preocupação era o ranger ritmado da velha cama.

Estava só quando acordei com os primeiros raios de sol que se infiltravam pelas frestas da janela. Um sonho, pensei a princípio. Mas minhas roupas perdidas sob as cobertas atestavam que tudo havia realmente acontecido. Instintivamente vesti apressado o pijama, como um criminoso que limpa o local de um crime. Depois, recuperando aos poucos a calma, fiquei mirando o teto, buscando em cada pedaço de meu corpo sentir de novo o contato daquele outro corpo desconhecido.

Quem seria? Não tinha a menor idéia. Sabia apenas tratar-se de alguém bem mais à vontade e experiente nas artes do amor do que eu. Fiquei tentando imaginar que, fosse quem fosse, se deixaria desmascarar quando cruzasse o olhar com o meu, encarando-me por um momento mais demorado ou desviando os olhos para não se deixar trair. Mas o café da manhã e o resto do dia transcorreram sem que qualquer das quatro moças transparecesse qualquer embaraço ou interesse especial quando se dirigiam a mim. Não podia tampouco contar o acontecido a meu amigo sem abrir-lhe a possibilidade de que tivesse sido uma de suas irmãs. Na véspera de voltarmos a Niterói, troquei alguns beijos furtivos com Marcela, a prima mais nova, que me deram a certeza de que não fora ela.

Até hoje repasso as lembranças daquela noite sem saber de quem era aquele corpo. Gostaria que aquelas lembranças tivessem um rosto, um nome. Mas, apesar de ainda intensas e vívidas, elas são apenas isso: um corpo de mulher, um corpo que se tem feito presente no corpo de todas as mulheres que amei desde então. Nunca contei essa história a ninguém. Pareceria a quem me ouvisse uma fantasia de um quase adolescente querendo contar vantagem. Faço-o agora, caro leitor, na confiança de que meus cabelos hoje grisalhos confiram-me alguma credibilidade. Talvez você tenha um palpite.

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