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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Até aqui penso assim


Dizem os cientistas que o afeto explica o porquê de lembrarmos de certas cenas em detalhes pelo resto de nossas vidas, enquanto nos esquecermos em pouco tempo de quase tudo que se passa conosco. Cenas carregadas de emoção e significado ficam tatuadas em nossa lembrança e acabam por moldar o rumo que damos a nossas vidas. Algumas passagens me vieram à mente hoje, como que encadeadas.

Eu devia ter uns quatorze ou quinze anos. Cresci em uma família sem nenhum engajamento religioso, mas numa noite, sozinho em meu quarto, me veio um questionamento, ou melhor, uma quase certeza: a de que amar o próximo como a mim mesmo seria uma noção fundamental. Pode parecer uma coisa banal para quem nasceu e cresceu em uma família religiosa, mas não era o meu caso. Aquilo me pareceu uma revelação. Eu, que tenho um pai que acredita até hoje que diferenças devem ser resolvidas através de confrontação, bravatas e  ameaças, vi naquela afirmação uma alternativa que poderia se encaixar melhor com meu temperamento pacífico e naturalmente conciliador. Talvez naquele momento fosse apenas isso, uma alternativa menos penosa. Pelo menos a princípio.

Por volta dos dezoito anos, iniciei uma grande amizade, que perdura até hoje, com alguém de uma família batista. Como é costume entre eles, o batismo se dá quando do ingresso na vida adulta, e esse meu amigo foi batizado um pouco depois de travarmos amizade. Nessa época, meus pais estavam atravessando o penoso processo de separação, e aquela família bem estruturada de meu amigo me recebeu de forma calorosa, compensando um pouco o vácuo criado pela desagregação da minha própria. O sentido religioso e a ética passaram a ser assunto freqüente nas conversas entre eu e este meu amigo, e a visão ética e cristã do mundo começou a orientar minhas tentativas de entender o que se passava à minha volta, uma tentativa de acender alguma luz que diminuísse minha perplexidade em relação ao que eu via ocorrer à minha volta. Meu amigo e sua família mudaram-se para Brasília, e eu acabei por me integrar a um grupo de jovens na igreja católica. Ali, onde fiz grandes amigos, continuei fazendo perguntas. Com o tempo percebi que nem todas as respostas me eram satisfatórias. Embora tivesse avaliado as respostas católicas com o coração aberto, nunca consegui concordar que um filho de Deus pudesse dizer que uma determinada religião, fosse ela qual fosse, tivesse o monopólio da verdade e a única chave da porta da salvação. Se é que foi realmente Jesus quem disse isso. Tenho minhas dúvidas.

Aos trinta e poucos, trazendo ainda muitos assombros e incertezas, buscava maneiras de lidar melhor com minhas emoções através da psicoterapia. Lembro-me bem de duas sessões em que consegui sintetizar quais eram minhas expectativas. Primeiro, que via todos no mundo, eu inclusive, como que em meio a um turbilhão, como se a vida fosse uma ressaca nos dando seguidas socas, sem que pudéssemos distinguir em que direção está a praia e se o céu está acima ou abaixo de nossas cabeças, todos se debatendo em total desorientação. “Quero por a cabeça acima das ondas e parar de me debater”, eu disse, “quero saber em que direção nadar.” Talvez pudesse ter dito: “Quero surfar essas ondas, e não morrer afogado me debatendo.” Num segundo momento, já bem mais tarde, disse que meu desejo maior era estar sinceramente aberto e sem reservas para as outras pessoas, superando minhas próprias defesas e desconfianças.

Hoje abandonei qualquer pretensão de vir a saber a razão de ser da vida. Só sei que ela é curta e preciosa. E vivo sem nenhuma expectativa de que ela venha a se estender depois de minha morte, pelo menos não como esta minha identidade individual. Recebi diversas coisas boas, outras nem tanto. Quero deixar para os que me sucederem mais coisas boas e menos coisas ruins, e nisso, apenas nisso, consistirá minha imortalidade.

Algumas coisas úteis eu aprendi. Se as coisas não vão bem, devo tentar fazer diferente. Se não deram certo até aqui agindo de uma determinada forma, elas vão continuar não dando certo se eu continuar agindo dessa mesma forma. Tenho sempre a liberdade de me reinventar nos aspectos que não estão funcionando. Afinal, não posso mudar os outros, só a mim mesmo. Aprendi e sei que eu e todos temos uma liberdade enorme e insuspeita de recriarmos nossa realidade. Tenho a liberdade de não me aborrecer cada vez que minhas expectativas são frustradas pelos outros ou pelas circunstâncias. Tenho a liberdade de tentar continuar em frente, mas também de mudar radicalmente de direção a qualquer momento. Tenho a liberdade de parar de arrastar noções inúteis como vitória, honra e prestígio e de tentar dominar minhas relações com os outros. Em vez de lutar, posso optar por entregar a vitória a quem hoje identifico como adversário, se passar a vê-lo de outra forma. Tenho a liberdade de abandonar aquilo que me acostumei ver como sendo minha identidade até aqui. A fé nessa liberdade tem me permitido ousar mudanças de rumo algumas vezes ao longo da vida. Arrasto ainda muitos pesos, mas tenho procurado aliviar a carga pelo caminho. Assim, mais leve, posso dançar mais e melhor enquanto me for permitido participar da festa.

Um comentário:

  1. Ralph, impressionante o quanto eu me identifiquei com o seu texto!!! Neste momento, estou na fase da psicoterapia...

    Espero conseguir passar por estas fases com tanta sabedoria! Parabéns pelo texto! Fiquei realmente emocionada!

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