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domingo, 13 de fevereiro de 2011

O Olho de Evilásio


Jaciara, o amor de sua vida, prestes a se entregar a outro homem e ele ali, sobre a cômoda, assistindo tudo sem poder piscar.

Uma pedrada numa guerra de estilingues aos nove anos, e o olho esquerdo de Evilásio foi vazado e depois secou. Virou Evilásio, o Caolho. Só quase aos quarenta um oftalmologista o convenceu a usar prótese. Confeccionou-se uma, no mesmo belo tom entre o mel e o verde do olho direito. Sentiu sua confiança avultar-se. Tornou-se mais sociável, mais falante. Os encontros amorosos, até ali raros e frustrantes, tornaram-se mais freqüentes. Então conheceu Jaciara. Apaixonou-se e, contra suas próprias expectativas, foi correspondido pela jovem e bela viúva, apesar dos quase vinte anos que separavam suas idades. O casamento veio rápido, e os filhos, que não tinham vindo no primeiro casamento de Jaciara, também não vieram no segundo. Não pareciam lamentar, pois o amor que tinham um pelo outro como que exigia uma dedicação absoluta, que os dois, no fundo, não ansiavam em dividir com mais ninguém. Por doze anos viveram numa felicidade que parecia irreal.

Até que veio o câncer, que se abateu sobre Evilásio violento e rápido. No leito do hospital seguravam-se as mãos e olhavam-se nos olhos, nutrindo-se um com o olhar do outro, mal acreditando que os dele em breve se fechariam para sempre. Quando finalmente a hora chegou e os enfermeiros vieram com a maca fria buscar o corpo, ela, que chorava no desespero da súbita solidão, os deteve: “Quero o olho de vidro. Quero olhar o olho de meu marido pelo resto de minha vida.”

Assim, o olho de Evilásio foi colocado sobre a cômoda do quarto do casal, em um frasco de cristal cheio de soro fisiológico, que Jaciara trocava diariamente.

Quando chegou ao outro mundo e abriu os olhos para o infinito e a eternidade, Evilásio percebeu que voltara a enxergar com os dois, mas só o direito via as maravilhas do Paraíso: o esquerdo via seu antigo quarto, e, no quarto, via Jaciara. Via-a quando ela se vestia e quando ela se despia, via-a lançar para ele olhares longos, como que sabendo que era observada. Na penumbra da noite, Evilásio via Jaciara chorar baixinho, abraçada ao travesseiro que fora dele.

Mas o tempo tem o poder de aliviar as maiores dores. Num fim de tarde, Evilásio viu Jaciara enfeitar-se e perfumar-se como nunca mais fizera, e depois sair. Com a serenidade que a eternidade confere às almas que mereceram o Paraíso, ele entendeu e esforçou-se por aceitar que o corpo jovem e bem feito de sua viúva mais dia menos dia seria assediado pela ânsia de novos afagos e carícias. Com a alma partida, tentou conformar-se com o inevitável.

Uma noite, ela voltou acompanhada. Coração aos pulos, ele viu Jaciara ser despida e desejou poder fechar aquele olho que penava no mundo dos vivos. Mas então, por cima do abraço do outro, ela mirou fixa e demoradamente o olho do falecido. Depois, num arranco, rechaçou o avanço dos beijos em direção a seus lábios e Evilásio pode vê-la dizer: “Na boca, não!” Ela, então, colocou o despertador entre o frasco de cristal e a cama, obstruindo a visão do olho de Evilásio.

No dia seguinte ela percebeu que o frasco havia transbordado.

2 comentários:

  1. Que ótimo conto! A medicina tem toda razão em enciumar-se da literatura. Um abraço,

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  2. Se o olho de vidro de Evilásio fosse míope como os meus, talvez ele não sofresse tanto... Concentre-se no Paraíso, Evilásio, concentre-se...

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