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domingo, 3 de novembro de 2013

Um Trato Quase Perfeito

O sorriso cativante de Cicila
tinha um je ne sais quoi de simpatia
e distinção.
Olavo Bonifácio Magalhães e Otacília Magalhães, nascida Paes Leme (ou née Paes Leme, como preferiam os colunistas sociais da época) eram um casal figurinha carimbada na high society paulistana. Ele bisneto de senador do império e filho de ministro de Getúlio, ela de família paulista de quatrocentos anos, Olavinho e Cicila eram presença obrigatória nos jantares das mais elegantes residências do Jardim Paulista, em recepções nas mansões do Morumbi e nas vernissages mais concorridas de São Paulo. A bem da verdade, eram convidados principalmente, se não exclusivamente, em função da personalidade carismática, da silhueta sempre esbelta e do sorriso cativante de Cicila, que aliava sem esforço simpatia e aquele je ne sais quoi de distinção e fidalguia. Já Olavinho, bem, digamos que era um apêndice que não podia ser amputado quando se queria a presença de Cicila para abrilhantar um evento. Alguns centímetros mais baixo do que ela, barriga proeminente, cavanhaque grisalho sempre bem aparado, ele vivia feliz à sombra de Cicila, como uma avenca à sombra de uma árvore frondosa e florida. Advogado, nunca precisou ser brilhante na profissão. Os bens herdados, dezenas de imóveis alugados em alguns dos melhores pontos comerciais de São Paulo, garantiam uma vida tranquila e mais do que confortável. Caçula de cinco irmãos, era um tímido amante das artes em geral, em especial de música clássica. Não fosse pelo prazer que sentia em ver a esposa brilhar em sociedade, talvez não a frequentasse tanto. Sua maior alegria era o amor sincero que lhe devotava sua amada Cicila e as muitas qualidades que ele tanto admirava nela, entre as quais seus dotes como pianista. Cicila era exímia ao teclado, com talento especial para interpretar as sutilezas de Debussy. Teria sido uma concertista de renome, não tivesse se apaixonado por Olavinho aos 22 aninhos de idade. “Um desperdício!”, diziam muitos com mal disfarçada inveja. Abastados, cosmopolitas, sem filhos, muito bem relacionados e apaixonados um pelo outro, o fato é que eram felizes.

Os maiores amigos do casal eram Hipólito Jaguaribe e sua esposa Maria Júlia. Polito, como era mais conhecido, era, em muitos aspectos, o inverso de Olavinho. Herdeiro de barões do açúcar de Pernambuco, Polito era expansivo, galanteador e amante do bom scotch whisky, que consumia em quantidades industriais. Assíduo frequentador de Mônaco, Las Vegas e onde mais houvesse uma roleta e um carteado, tinha cavalos no Jockey Club, um dos quais já vencera um Grande Prêmio Cidade de São Paulo. Apesar das diferenças, e talvez até por causa delas, admiravam mutuamente as qualidades que faltavam em um e sobravam no outro, como sempre acontece entre os sensatos e tímidos e os amantes da vida intensa. Já Maria Júlia, segunda esposa de Polito, tinha origem, digamos, menos nobre. Polito a conhecera duas décadas antes e enlouquecera um pouco mais do que de costume com o lindo rosto e o corpo escultural. Nunca ficou muito claro qual era a profissão de Julinha anteriormente, não faltando hipóteses maldosas para o mistério. O fato é que Polito arcou com um desquite caríssimo para poder desfilar a nova esposa em meio a seus pares, causando um misto de censura velada por parte das madames e inveja mal disfarçada por parte dos amigos. Julinha acabou descendo goela abaixo da pauliceia e em poucos anos, a bem da justiça também em função de sua rápida adaptação ao novo meio social, não se falava mais nisso.

Até que um dia Cicila faleceu. A doença galopante a levou em dois meses, apesar dos esforços dos melhores especialistas do Albert Einstein. Isso se deu apenas algumas semanas antes de também falecer Polito em um hotel em Las Vegas, as circunstâncias nunca bem esclarecidas.

Olavinho viu-se privado de seu chão, de seu norte, de sua razão de viver. Afastou-se das frivolidades e relutava em atender os apelos de seus poucos amigos para deixar a reclusão. A vida deixou de lhe fazer sentido. Já Julinha Jaguaribe também perdeu o chão, mas em sentido menos figurado. Perdeu o teto também. Polito conseguira paulatinamente dilapidar toda a sua herança, inclusive hipotecando sua cobertura de 370 metros quadrados na Alameda Santos. Para sobreviver, Julinha arriscou-se no comércio de antiguidades e joias, a maioria das quais ela mesmo fornecia. Depois de algum tempo, viu-se em situação de penúria indisfarçável.

Foi então que alguns amigos bem intencionados tiveram uma ideia brilhante e de obviedade incontestável: porque não se casavam Olavinho e Julinha? Já eram tão íntimos, já tinham viajado juntos tantas vezes ao exterior, cada um com seu cônjuge, frequentavam os mesmos amigos, os mesmos ambientes. Tudo bem, Cicila era insubstituível, não se tratava disso, mas Olavinho não tinha herdeiros e Julinha, embora já na faixa dos cinquenta, era ainda muito bonita e jovial, uma injeção de vida na existência sombria que ele vinha experimentando como viúvo profissional. Convencer Julinha a agarrar aquele bote salva-vidas foi um pouco menos difícil. Acabaram se casando.

Mas o que não ficara bem esclarecido era até que ponto o casamento era à vera. Olavinho, já pelos setenta e muitos, não era ainda propriamente um defunto e, com toda razão, entendera que teria algumas vantagens adicionais além de companhia à mesa de refeições. Julinha, que se fizera de desentendida até então, ficou horrorizada. Já tinha se conformado com a aposentadoria carnal, tornara-se católica praticante e frequentava as obras sociais da diocese. Alegou que nada disso tinha sido combinado, o que era verdade, mas nem precisava, alegou Olavinho com toda a razão. A coisa ficou nesse impasse. O clima em cada refeição era tenso, Olavinho tendo acessos ocasionais de fúria depois do jantar. Mas eles continuavam dormindo em quartos separados, Julinha tendo o cuidado de trancar a porta por dentro.


Recentemente, a conselho de amigas, Julinha decidiu que o apartamento precisava de uma empregada que dormisse no emprego. Depois de algumas entrevistas, foi contratada Jaciara, cozinheira razoável mas bastante ambiciosa, com vontade de aprender e de subir na vida. Desde então, o clima naquele lar parece um pouco mais calmo. Não que a jovem Jaciara seja exímia na cozinha, realmente não é o caso. Mas Julinha tem estado cada vez mais ocupada com as obras sociais, o que demanda reuniões e mais reuniões, inclusive à noite. E Jaciara é muito simpática e atenciosa, além de bem feitinha de corpo.

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