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sexta-feira, 1 de março de 2013

O Ódio de Margot


Margot tem ódio de Rogério. Gostaria de odiá-lo sem culpa, mas, como católica praticante, tem certeza que o ódio que nutre por Rogério vai levá-la inexoravelmente ao inferno. Convicção que só serve para aumentar seu ódio por ele, o culpado por sua futura danação. Margot e Rogério são casados. A bem da verdade, hoje são casados só no papel, pois não exercem as prerrogativas matrimoniais há muitos anos. Não dividem a mesma cama nem o mesmo sofá. Raramente dividem a mesa, embora compartilhem o mesmo teto. Margot faz questão de deixar bem explícito seu rancor, como um animal morto no tapete da sala, mas Rogério parece não perceber, ou finge não perceber. Não discute, não responde os desaforos, dá palpites na roupa dela e nas conversas que ela tem ao telefone. O que só aumenta o ódio de Margot.

Mas que barbaridade teria cometido Rogério, que atitude ignóbil justificaria tamanho ressentimento?, decerto estará pensando a senhorita, a senhora ou o senhor leitor. O grande pecado de Rogério foi ter-se casado com Margot, ou, melhor dizendo, vice-versa. Não entendeu? Explico.

Margot era noiva de Abelardo. Digo mais, Margot era louca por Abelardo e em breve casar-se-ia com o objeto de sua paixão. Abelardo era belo, forte (“um Adônis”, diziam), além de sedutor e atencioso; tratava-a como princesa e quando a beijava fazia-a agradecer ao Céu por ter nascido mulher. Comentava-se também que Abelardo não era confiável, para dizer o mínimo. Ou que não valia nada, para ser mais exato. Margot, de seu lado, fazia-se de desentendida: nunca vira nada desabonador na conduta de seu noivo e não daria ouvidos a fuxicos de gente invejosa de sua felicidade. Mas alguém trouxe provas e convenceu a até então feliz noivinha a dar um flagrante no rapaz. Confrontada com os fatos, Margot, tida como geniosa, não poderia deixar barato. Abelardo merecia uma lição e ela não fez por menos: desmanchou o noivado.

Depois ficou esperando pelas desculpas, ele que se humilhasse a seus pés implorando perdão. Mas o tempo passava, e nada. Nisso, surge Rogério, colega de trabalho. Margot não era de se jogar fora, muito pelo contrário, e Rogério começou a cortejá-la insistentemente, mas foi esnobado pela moça orgulhosa. Um ano se passou, Rogério ali firme. Até que ela concluiu que talvez não fosse má ideia começar um namoro só para acender os ciúmes do ex-noivo. Cedeu aos apelos de Rogério e pensou: agora vai. E nada. Noivar com o outro talvez funcionasse. Nada ainda. Quando deu por si, estava casada com Rogério.

Bem, dirão vocês, é nisso que dá o orgulho, ela poderia ter sido feliz ao lado de Abelardo e não foi. Armadilhas do destino, e a felicidade fugiu-lhe por entre os dedos. 

Margot ainda tem notícias de Abelardo. Teria ele se casado e feito outra feliz? Nutriria ainda um secreto amor por Margot? Nada disso. Ele era mesmo um devasso. Teve filhos com mais de uma mulher, mas não se casou com nenhuma. Bebia demais e ainda bebe muito. E fuma. A bebida encharcou sua beleza, que murchou e se esvaiu, diluída em álcool. Está um caco. E pobre.

Já Rogério, seu marido, sempre foi fiel. Amealhou um belo patrimônio a custa de muito trabalho honesto. Margot já pensou em separar-se, mas para isso teria de abrir mão de sua bela cobertura de frente para o mar. Pior, se depois de separados Rogério falecesse antes dela (imaginar a morte de Rogério, aliás, é um exercício que a excita intensamente, mas reforça sua certeza de que irá para os porões de Lúcifer), perderia a pensão para a sirigaita que certamente ele logo arranjaria. Por falar nisso, há uns três anos Rogério teve um infarto, mas foi atendido a tempo e está ótimo, melhor do que antes. Corre na praia diariamente e é tido como um coroa enxuto.

Mas nada disso vem ao caso, e Margot consome seus dias imaginando formas mais intensas de odiar. Seu ódio adquiriu vida própria, corporificou-se em um mascote gordo, que ela afaga enquanto assiste TV, que ela mima com biscoitos e salgadinhos, que  compartilha sua cama e deforma seu colchão. Mais que isso, ele talvez seja o mastro principal do seu circo, em torno do qual ela desempenha sua vida infeliz. Muito complicado, muito desconfortável de mudar. Se o objeto de seu ódio se for antes dela, desconfio, o teto cairá.

E assim “la nave va”. Eu, daqui, penso nos versos daquela canção: “Meu amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus”. E que o inferno não é um lugar, é uma atitude.

4 comentários:

  1. Ótimo texto - e melhor ainda a frase final: "o inferno não é um lugar, é uma atitude". Texto bom pra pensar na vida, viu...

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  2. Meio dark, e talvez injusto com a maioria das mulheres, mas certamente um bom texto. Concordo com a Fabiana no final da cronica.

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  3. Bravo, bravo!!! Soturno e irretocável...

    E a maravilhosa frase final, já destacada pela Fabiana, está martelando aqui nos meus pensamentos...

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