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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Crônicas Brasilienses IV: A Corrida

"Uhuuu, vem cá, meu bem..."

A morte é inescapável. Viver não só é perigoso, como fatal, já disseram. Tudo bem, a senhora magra que veste preto vai acabar nos conquistando um dia. Ela não cansa de tentar nos envolver o quanto antes em seus braços esquálidos e nos beijar a boca com seu hálito de terra. De minha parte, vou escapulindo enquanto posso. Já a vi de perto umas três ou quatro vezes, ela valendo-se de enxame de abelha africana, tiroteio na Praça XV e ressaca em Itacoatiara para tentar me conquistar precocemente. Como um gato, vou gastando minhas sete vidas e desconversando a dona.

Algumas pessoas, porém, parecem dizer “vem que eu sou facinho”, e flertam abertamente com a morte. Como bem observou Leandro Hassum, basta verificar que algo tem tudo para dar errado que surge logo um corajoso disposto a contrariar as leis da física. Lembrei-me agora do infeliz padre que se ergueu pelos ares no litoral do Paraná pendurado em mil bexigas de borracha, daquelas de festa infantil, planejando aterrissar vinte horas depois em Mato Grosso do Sul. Esqueceu-se de combinar a rota com o vento, que cismou de soprá-lo em direção contrária, mar adentro ou afora. O padre (ou o que restou dele) só foi encontrado meses depois por um rebocador no litoral de Maricá. 

Por falta de tempo para me dedicar à tarefa de pesquisa, deixo aqui uma ideia que pode render uma boa grana a alguém metódico: compilar exemplos como este e publicá-los em livro, “Duzentas Maneiras Idiotas de Morrer”, já deixo até o título pronto.

Também eu, que tenho a firme intenção de morrer de velho, já quase morri de maneira idiota. 

Saindo de um compromisso num hospital na cidade satélite de Taguatinga com destino ao Ministério da Saúde em Brasília, peguei o primeiro táxi que se apresentou, um Kadett branco, lembro-me bem. Hora do almoço, dia claro, pegamos a autoestrada que liga Taguatinga à capital federal, uns vinte quilômetros a serem percorridos em pista dupla, a oitenta, cem por hora. Do banco de trás, como  faço habitualmente, puxei assunto:

“Bacana o som do seu carro”.

Engatamos falação sobre autofalantes, rock’n roll, entradas USB e coisas afins. Num suspiro da conversa, o motorista, rapaz de uns trinta anos, atravessou a pergunta:

“O Senhor é médico?” Apesar de ter-me visto saindo de um hospital, eu vestia terno e gravata; fiquei imaginando como ele teria adivinhado. Confirmei seu palpite.

“O Senhor me desculpe, mas eu venho tendo uns desmaios de uns tempos para cá, o Senhor tem ideia do que possa ser?”

Fez-se uma pausa. O velocímetro marcava cem por hora. Houvesse outro passageiro no táxi  eu teria lhe dirigido um olhar arregalado. Conduzi uma anamnese rápida e sugeri-lhe procurar um neurologista com urgência, na sua profissão pode ser perigoso. Depois procurei me distrair do sobressalto com a paisagem sem graça que desfilava rápida pela janela.

Chegando ao Plano Piloto, ele reduziu a velocidade enquanto descíamos pela passagem subterrânea da rodoviária. Um sinal fechado com vários carros parados à frente era o último obstáculo entre nós e a Esplanada dos Ministérios. Já tínhamos diminuído bastante quando senti o motorista aliviar a pressão no pedal do freio. Ainda imaginei que ele pretendesse trocar para a pista à nossa direita, que tinha menos carros, mas não. A traseira do carro adiante foi crescendo, crescendo, até que a atingimos violentamente. Pelo retrovisor interno, olhei nos olhos arregalados do motorista.

“O que aconteceu, rapaz?”

“Não sei...”

O motorista do carro da frente desceu, examinou a traseira destruída, as lanternas quebradas e caminhou em nossa direção com aquela cara misto de raiva e incredulidade. Chegou bem a tempo de presenciar o início dos espasmos e da salivação. Bem à minha frente, o corpo do coitado esticava-se em arrancos de cachorro atropelado, diria Nelson Rodrigues, levantando-se como uma taboa rígida do assento. Ao dar-se conta de que não teria como ressarcir-se do prejuízo, pelo menos naquelas circunstâncias, o outro motorista deu um suspiro e foi-se embora, largando pelo asfalto pedaços do que fora seu belo veículo. Desci para socorrer o epilético com a ajuda do motorista de um Ômega placa branca que havia parado ao nosso lado e assistira tudo. Puxamos o meu motorista já aquietado para o banco do carona. Depois sentei-me ao volante e tentei ligar o motor, que respondeu. Depois de agradecer a ajuda, dirigi até a emergência do Hospital de Base de Brasília, onde meu desacordado condutor, agora passageiro, foi colocado em uma maca e levado para a sala de atendimento. Estacionei o Kadett, puxei do rádio da cooperativa e comuniquei o acontecido à Central, dando o nome que constava no crachá afixado no pára-sol e pedindo que avisassem a família. Depois fui ao posto policial do hospital, onde fiz registro do ocorrido e pedi  que cuidassem das chaves e do veículo. Tomadas essas providências, retornei à sala de emergência. Reencontrei-o bem na hora em que recobrava os sentidos.

“Tudo bem? Sabe onde você está? Lembra-se do que aconteceu? Lembra-se de mim?”

Olhar apalermado, ele não se lembrava de nada.

“Fui eu quem lhe trouxe de táxi até aqui. Vim cobrar a corrida.”

3 comentários:

  1. Ralph, mais uma vez você encanta. Adoro ler seus contos, crônicas e ver o colorido de suas aquarelas. Parabéns! Avante! Rosário

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  2. Quanta história, hein rapaz? Adorei! Um abraço!

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  3. Nossa, que história! Essa vc não tinha me contado... estava guardando para uma crônica, né?! rs Olha, imagino que deva ter sido apavorante viver a situação, mas, sinto muito, ela só poderia ter acontecido com vc, que conseguiria aproveitá-la tão bem numa crônica!

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