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domingo, 3 de fevereiro de 2013

Crônicas Brasilienses II: Uma Força Estranha no Ar

O Vale do Amanhecer fica próximo de Brasília.

Não sei se por conta da profecia do padroeiro Dom Bosco, que ainda no século 19 sonhou com uma civilização de bem e abundância que brotaria dali a 120 anos onde hoje está Brasília; não sei se é consequência dos cristais, que são abundantes no Planalto Central. O fato é que Brasília parece atrair, se não fatos inexplicáveis, pelo menos pessoas em busca de explicações para o inexplicável.

Minha passagem profissional por Brasília se deu em um momento de mudanças em minha vida. Recém-separado, morava sozinho em Niterói, ou melhor, com a única companhia de meu pastor alemão, Argos. A casa ficava de segunda a quinta aos cuidados de minha empregada Andreci, supervisão de minha mãe e vigilância de Argos.

Numa sexta feira, no Rio, eu folheava aleatoriamente alguns volumes na Livraria da Travessa, a original do centro, em busca de novas leituras. Acabei lendo um trecho de um livro do Amyr Klink  recém lançado sobre sua viagem solitária de circunavegação do continente Antártico. O trecho que li relatava o incêndio em seu veleiro causado por um aquecedor defeituoso, por sorte acontecido quando ele estava na base brasileira na Antártica, o barco ancorado em frente. Com a imediata atuação da guarnição da base, o incêndio foi rapidamente controlado e os danos pequenos. Se as coisas acontecessem durante um cochilo em alto mar, talvez o barco sofresse danos bem mais sérios e o Amyr não pudesse ter contado a história.

Comprei o livro e, retornando a Brasília, falei dele para meus colegas de Ministério da Saúde. Iracema, uma simpática nordestina de meia idade, funcionária de carreira do Ministério, que chamava carinhosamente os colegas de “meu bichinho”, ouviu-me com atenção e disse que soube em primeira mão da história, pois seu marido, capitão de mar e guerra, era o comandante da base na ocasião. E que, por acaso, ele acabara de retornar da Antártica depois de uma missão de seis meses. “Nossa, que coincidência”, eu falei. Falei também que essas coincidências eram assunto que me interessava muito na época. Talvez pela minha situação de então, eu estivesse mais atento a eventuais sinais, a alguma sincronicidade que me indicasse que rumo minha vida tomaria a partir daquela desarrumação momentânea. Pois Iracema me disse:

“Meu bichinho, meu marido sempre leva muitos livros para ler na Antártica, e, entre os que ele trouxe de volta, tem um que é justamente sobre essa tal de sincronicidade.”

Ora que coisa. Vendo meu interesse, ela ficou de me trazer o livro emprestado.

Mal eu havia chegado ao Ministério na manhã seguinte, recebi uma ligação de Niterói. Minha mãe me dava conta de que, por causa de uma falha na bóia da caixa d’água, a empregada havia encontrado a casa inundada naquela manhã. Por sorte, muito por conta da separação recente, minha “decoração” na época era espartana, para dizer o mínimo, e os prejuízos foram insignificantes. Dadas as orientações e refeito do susto, fiquei esperando a chegada de Iracema e do livro. Mas Iracema não apareceu naquele dia. Só depois da hora do almoço fomos comunicados do motivo: um cano havia rompido em seu apartamento, molhando os tapetes e inundando tudo. 

Sincronicidades.

                                                              xxxxxxxx

Dr. Ilídio passou a integrar nossa equipe no Departamento de Saúde Suplementar do Ministério vindo de uma grande operadora de planos de saúde, de onde acabara de sair por força de aposentadoria. Beirando os setenta, era inteligente, de pensamento ágil e de extrema simpatia. Com sua figura elegante, sempre levemente bronzeada e com seu bigode grisalho muito bem aparado, conquistou a amizade de todos em pouco tempo. Era muito galante com o sexo oposto e não perdia oportunidade para dirigir-se a toda mulher mais ou menos interessante pelo predicado de “poderosa, energética e vitaminada”, galanteio que ele despejava com tal habilidade que sempre arrancava sorrisos de moças e balzaquianas. O toque de seu celular era um trecho de uma peça de Bach, e o anúncio de sua caixa postal começava com “Que bom que você ligou; que pena, agora não posso atender...”. Ficamos amigos. Soube do próprio que mantinha um consultório muito concorrido, onde políticos influentes e outras personalidades brasilienses buscavam tratamentos de rejuvenescimento. Não sei se a expressão anti-aging já existia na época, mas ele certamente foi um precursor.

No aniversário de seus 70 anos, Dr. Ilídio convidou diversos colegas do Ministério para uma festa ambientada na varanda e nos jardins bem cuidados de sua elegante casa no Lago Sul. A certa altura, convidou a mim e mais um ou dois colegas mais chegados para conhecer o interior da casa. Guiou-nos escada acima até seu quarto, um ambiente amplo onde uma estante abrigava diversos livros religiosos e exotéricos. Ali, ele expunha-nos sua intimidade. Levou-nos a uma ampla varanda. Sobre uma estrutura de madeira, repousava uma grande caixa. Pela abertura voltada para diante, podia-se ver que o interior era forrado com uma folha de metal.

“Aqui, nesta, caixa, eu pratico meditação todas as manhãs”.

“Mas por que na caixa?”, perguntamos.

“As camadas de metal potencializam a energia e auxiliam no alcance de níveis mais elevados de concentração. Agora à noite, se vocês olharem com atenção, poderão ver a energia na forma de pequenas fagulhas azuis ou violeta.” E nos convidou para olhar o interior escuro da caixa. Tentei me despir de todo o ceticismo e olhei demoradamente dentro da caixa.

“Viu?”

“Acho que vi alguma coisa, sim,” menti.

Um dia, Dr. Ilídio me pegou pelo braço e, reservadamente, disse que tinha uma revelação crucial a fazer: em duas semanas, uma nave extraterrestre estaria aterrissando em algum lugar da Chapada dos Veadeiros para resgatar uns poucos terráqueos escolhidos, pois uma hecatombe era iminente. Eu e meu cão Argos estávamos formalmente convidados a integrar o grupo dos escolhidos para dar seguimento à saga da humanidade em algum outro ponto da galáxia. Li em seus olhos que fazia o convite com a maior seriedade. Fiquei legitimamente honrado com tamanha consideração. Porém, declinei do convite, não lembro que desculpa dei. Ele, preocupado, insistiu nos dias seguintes para que mudasse de ideia.

Ao retornar a Brasília depois do fim de semana que a profecia anunciara como sendo o derradeiro, senti-me um pouco constrangido em encarar Dr. Ilídio.

“E então, o que (não) houve?” perguntei meio sem jeito. Acho que ele se referiu a um ligeiro engano nos cálculos, e não se falou mais disso.

Depois que deixei aquele cargo no Ministério, tive alguns poucos contatos telefônicos com Dr. Ilídio. Esta semana um amigo comum, que manteve contato mais estreito com ele desde então, comunicou-me de sua partida para algum plano mais elevado, onde ele já deve estar conquistando a simpatia de todos.

Boa viagem, Dr. Ilídio.

3 comentários:

  1. Adorei esta sua nova crônica! Coisas parecidas já me ocorreram...
    Cláudia Mara

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  2. Muito boa crônica e muito bom assunto... agora escreva uma, por favor, sobre uma moça que conhece um moço de mesmo nome que o seu (no masculino, obviamente) e mesma data de aniversário - e, após um breve envolvimento, nada acontece... ;-) hehehe! Bjs!

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  3. Caso exista essa tal de sincronicidade, melhor que eu lhe conte que, ao terminar de ler sua crônica, uma música me veio à cabeça:

    "Força Estranha
    (Caetano Veloso)

    Eu vi um menino correndo
    eu vi o tempo brincando ao redor
    do caminho daquele menino,
    eu pus os meus pés no riacho.
    E acho que nunca os tirei.
    O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei.

    Eu vi a mulher preparando outra pessoa
    O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga.
    A vida é amiga da arte
    É a parte que o sol me ensinou.
    O sol que atravessa essa estrada que nunca passou.

    Por isso uma força me leva a cantar,
    por isso essa força estranha no ar.
    Por isso é que eu canto, não posso parar.
    Por isso essa voz tamanha.

    Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
    o tempo não pára no entanto ele nunca envelhece.
    Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são.
    É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão.

    Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos
    Estive no fundo de cada vontade encoberta,
    é a coisa mais certa de todas as coisas.
    Não vale um caminho sob o sol.
    É o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol.

    Por isso uma força me leva a cantar,
    por isso essa força estranha no ar.
    Por isso é que eu canto, não posso parar.
    Por isso essa voz tamanha."

    Vai que existe algum significado nisso (para o qual o meu ceticismo anda cego)? Melhor não arriscar...

    Parabéns pelo texto, mais uma vez, Ralph! Por favor, continue escrevendo. Eu, com certeza, continuarei lendo...

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