Aqui compartilho contos, crônicas, poesia, fotos e artes em geral. Escrevo o que penso, e quero saber o que você pensa também. Comentários são benvindos! (comente como ANÔNIMO e assine no fim do comentário). No "follow by E mail" você pode se cadastrar para ser avisado sempre que pintar novidade no blog.

sábado, 30 de julho de 2011

A Mão do Dono


“Oi, tudo bem?”, eles diriam, e ela ergueria os olhos surpresa, fingindo não ter-se afundado discretamente na cadeira do restaurante, naquela mesa do canto, de costas para a porta, os olhos escondidos na leitura desatenta do cardápio desde o momento em que percebera, com um calor incômodo nas orelhas, a entrada do casal de amigos, amigos dela, naquele restaurante pequeno e ridiculamente romântico. Ela se levantaria para a habitual troca de beijos, “Vocês conhecem o Afonso, não conhecem?”, o sorriso desconcertado imaginando a tragédia que seria se eles insinuassem repartir a mesa para saborear sua intimidade desnudada, rezando para que Afonso não sugerisse aquele constrangimento. Mas eles, educados e atentos ao embaraço da situação, certamente recusariam a oferta, sentariam a algumas mesas de distância, num ângulo que lhes permitisse observá-los, a ela e Afonso, com o canto dos olhos, ao mesmo tempo em que se deliciariam em comentários, talvez acusadores, dificilmente condescendentes, sem o perigo de serem ouvidos.
Afinal, tinha sido aquela a mesma amiga com quem se encontrara chorando convulsivamente depois de arrancá-la do trabalho, “Conta uma mentira ao chefe, um acidente com o seu filho na escola”, sugeriu. Mais tarde, dentro do carro, derramando-se ridícula, como se não soubesse antes, talvez até a amiga soubesse. Um telefonema do marido da amante de Afonso, “Estamos sendo traídos”, e não era mais possível fingir que não sabia. Não poderia mais esconder de si mesma as cartas agora atiradas todas na mesa, a ferida escancarada, a hemorragia não mais estancada a empapar o lençol, o tapete da sala, a toalha da mesa. Os soluços, admitia agora, eram mais por vergonha pela aceitação velada que pela raiva que sentira. A perspectiva do vazio, da solidão, das providências práticas a serem tomadas, da rearrumação financeira, o fim das viagens a dois e das com os filhos. E os filhos, como eles reagiriam? Viriam a se alinhar automaticamente com ela, afinal são meninos ainda, quase rapazes, Édipo ainda deve prevalecer, ou com o pai, ao perceberem, quem sabe, todos aqueles anos de conivência dela? Talvez já soubessem, “Como mamãe pode ser tão cega, meu Deus?” E, depois, o ano e meio sozinha, a terapia para tentar entender sua cumplicidade naquilo tudo, o curvar-se e o fechar dos olhos para não se ver levada a uma situação de decisão que ela vinha conseguindo driblar com sucesso todos aqueles anos. E, então, aquele maldito telefonema, a palidez, o sangue fugindo-lhe do cérebro, não se lembrava do que dissera nem se dissera alguma coisa. A vida dividindo-se em duas, o medo, o vazio, a incerteza do depois.
As poucas tentativas desajeitadas de novos encontros, no esforço de contrariar as estatísticas impiedosas que apontavam todas para a solidão irrevogável, afinal uma mulher de quarenta e poucos com dois filhos. Mais pelos empurrões dos amigos que por desejo. E ela sempre travada, sempre fora travada, Afonso acusava. O horror daquelas outras mãos tentando segurar as suas, que suavam. O desconforto incontornável daquelas situações a que se forçava, o alívio de chegar em casa e descer daqueles saltos e daquela maquiagem ridículos, uma personagem na qual ela não cabia mais.

 Os contatos protocolares um fim de semana sim, outro não, a que horas ele iria passar para pegar os garotos, a que horas viria trazê-los no domingo à tarde tão cedo, por certo ainda a tempo de sair com a outra à noite. O desprazer de vê-los de longe no shopping com os filhos que eram seus e não dela, que direito eles tinham de desfilar assim em público como se fossem uma família que não eram, e a fuga precipitada para o estacionamento com o nó estrangulando-lhe a garganta. E aí, meses depois, os telefonemas dele confessando o fracasso da convivência diária, “Pensa que o dia-a-dia é qualquer relação que resiste?, ele que se dane!”, diria mentindo à amiga, o coração aos pulos, não de vingança, mas de esperança envergonhada, cachorra espancada e maltratada pronta para lamber a mão do dono, como se fosse ela a responsável pelos desejos vagabundos de Afonso. Invejou a mãe que sofrera calada tantos anos, o marido advogado, sapatos sempre pretos, engraxados diariamente pela manhã, English Lavander que permanecia no hall do elevador quando ele saía a cada manhã para o escritório. A mãe e suas amigas, solidárias no amor que sentiam por seus maridos soltos no mundo enquanto elas ali, presas, mas livres de qualquer cobrança social, justificadas pelo álibi da dependência financeira, vítimas olhadas com pena e respeito. Sabiam dar-se o respeito, não desciam ao nível daquelazinhas que quase sempre eram inferiores. Manicures, balconistas, suburbanas sem escolaridade, sem sobrenome, que precisavam trabalhar enquanto sua mãe não: tinha marido que a sustentasse, que a levasse às claras às festas de família e às recepções de trabalho. Já ela não tinha à disposição aquele álibi, aquela desculpa social e financeira tão conveniente.
E quando Afonso apareceu para deixar o cheque da pensão que ele até então depositava de forma asséptica na conta bancária, o olhar dele se demorando na porta, causando uma mistura de desconforto, raiva, excitação e alegria em doses desiguais se agitando dentro dela, eu não presto mesmo, não tenho vergonha na cara. Deixando para traz qualquer respeito próprio, os amigos diriam. Que se danem todos, a vida é minha. “Você não quer um café?”

Nenhum comentário:

Postar um comentário