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quinta-feira, 7 de julho de 2011

Adeus, Dona Stella

Dona Stella no aniversário de cem anos
Dona Stella já tinha 94 anos de idade quando a conheci. Acompanhada de sua filha, adentrou o consultório com passos firmes, os cabelos brancos bem penteados em ondas suaves, que emolduravam um sorriso simpático e firme num rosto maquiado com elegância. Como sempre acontece quando atendo nonagenários, foi uma consulta de mão dupla: busco sempre desvendar os segredos da longevidade saudável. Não é novidade que as pessoas que chegam com saúde aos oitenta dificilmente vão necessitar de internação hospitalar nos anos que ainda têm pela frente. A predisposição genética é importante, mas, no caso de Dona Stella, acrescentava-se a ingestão diárias de várias porções de frutas, intercaladas com visitas freqüentes ao restaurante de comida mineira próximo de sua casa. Rabada, cozido, costela de porco, pastéis e bobó de camarão listavam entre seus quitutes favoritos. O mais significativo, porém, era sua leveza interior e a persistente curiosidade pela vida. Assistia novelas, mas também o noticiário. Tinha opiniões sobre os mais recentes fatos políticos nacionais e internacionais, que ela acompanhava na imprensa escrita e nos telejornais.  Não tinha qualquer queixa da velhice, nem física nem emocional. Ao fim daquela consulta, fiz o que sempre faço com esses veteranos da existência: dei-lhe um beijo onde se misturavam reverência e esperança nada científica de ser contaminado com o vírus da longevidade.

Aos 98, Dona Stella sofreu um AVC logo após o Natal, o que lhe restringiu gravemente os movimentos do lado direito do corpo. Nem isso, porém, lhe abateu o espírito. Continuou alerta, jovial e bem humorada. Uma vez, quando ela andava com dificuldade amparada por uma cuidadora, gingando o corpo para fazer avançar a perna preguiçosa, alguém começou a cantar “Na Boquinha da Garrafa”. A filha gravou a cena na câmara do celular. Dona Stella adorou o filme e pediu que fosse enviado para toda a família e amigos pela internet.

Tive a honra de ser convidado para a festa de seu centésimo aniversário. Na ocasião, os familiares se cotizaram para uma bela celebração com direito a bufê, garçons e discurso da estrela da noite. Guardo com carinho a fotografia em que eu e minha mulher estamos a seu lado – ela, como sempre, sorrindo com elegância. Brinquei na ocasião que, se tivesse sido avisado com antecedência, bancaria a festa, desde que ela usasse uma camiseta com os dizeres “manutenção feita pelo Dr. Ralph”.

Acompanhei a saúde de Dona Stella por treze anos desde aquela primeira consulta, passando a atendê-la em sua residência após o AVC. Sua figura nunca me suscitou pena. Mais que a fragilidade de seu corpo, sobressaía a força serena e altiva de seu espírito, que se conservava firme e jovial. Em todo esse tempo, ela nunca deixou de passar pelo menos uma temporada por ano na casa de sua juventude em Barra do Furado. Teve uma única passagem por hospital quando, durante uma temporada de férias, sofreu dores no peito, o que se revelou depois ser um alarme falso. Nessa internação, quando uma enfermeira lhe pediu que tirasse a dentadura ela protestou: “Que dentadura, minha filha? Estes dentes são meus!”.

Dona Stella tinha um único medo: que um de seus filhos partisse antes dela. Os temores tinham fundamento, pois, afinal, seus filhos aproximavam-se dos oitenta, e nem todos tinham boa saúde.

Então, veio uma gripe forte da qual ela custava a recuperar-se. Chamou a filha com quem morava e, muito séria, pediu o telefone: queria falar com o filho que mora no interior. “Lá vem você com bobagem”, pressentiu a filha. E ela séria: “Você vai me trazer o telefone ou não?” Falou então ao filho mais velho que sabia que sua hora estava próxima, fazendo ele prometer que não deixaria a irmã, que é solteira, desamparada. Que estava serena, sem qualquer medo da passagem que ela sabia próxima.

O quadro clínico, dessa vez, não evoluía bem, e insisti que fosse levada ao hospital. Uma vez internada, ela melhorou um pouco. Numa manhã, convidou a filha para cantarem juntas “lata d’água na cabeça, lá vai Maria...”. Riu um bocado, almoçou bem, pediu sobremesa e depois sorriu demoradamente. Então fechou os olhos e, serena, partiu.

Adeus Dona Stella. Foi um privilégio conhecê-la e conviver com a senhora. Se o céu existe, a senhora está lá.

Um comentário:

  1. Com lágrimas nos olhos lhe dou os parabéns por ter conhecido dela o que tinha de melhor, foi o que nos passou sempre.
    Estive com ela um dia antes e serenamente me presenteou com o sorriso de sempre.
    Não tenho dúvida, ela foi muito bem cuidada.
    Obrigada doutor pelo carinho.
    Terezinha Aragão, como ela costumava dizer: a nora número 02.

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