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quinta-feira, 17 de março de 2011

A Escova - Pequena Peça em Dois Atos

Ato 1:
Sala de um apartamento, sol da manhã entrando oblíquo pela janela. Uma mulher nos seus trinta e poucos anos, de vestido leve e sandálias de salto alto, confere os cabelos no espelho da parede. Uma pequena bolsa de viagem está junto à porta de saída. Ele, descalço e de bermudas, chega do interior do apartamento:

“Vevê, você esqueceu a escova.”

“Qual escova, Fê?”

“A de dentes, você esqueceu a escova de dentes na pia do banheiro.”

“Ah, a de dentes. Pode deixar lá.”

“Leva a escova.”

“Pode deixar, eu comprei essa para deixar aqui.”

“Você não entendeu, Vê: eu não quero que você deixe a escova aqui”

“Qual é benzinho? Eu deixei o xampu no banheiro também.”

“O xampu, sem problema.”

“E deixei a calcinha pendurada no box.”

“Calcinha, na boa.”

“Eu não estou te entendendo, Felipe. Está implicando com a minha escova?”

“Olha, Verônica, está sendo difícil dizer isso para você, mas eu não quero que você deixe a escova. Você não acha que a gente deve ir devagar, sem atropelar as coisas? Vamos só deixar acontecer, ou não acontecer, sei lá.”

“Mas o que é que a escova tem a ver com isso?”

“É o valor simbólico da coisa, entende? A gente se conhece há menos de dois meses, acho que nós estamos indo bem, eu gosto de estar com você. Mas está muito cedo para esse lance de escova. Escova de dentes é coisa muito séria.”

“Mas é só uma escova! Você está fazendo esse drama por causa de uma escova de dentes? Eu não acredito que a gente vai estragar esse dia ótimo que nós passamos juntos por causa de uma droga de uma escova de dentes.”

“Mas não é a escova em si, não finge que não sabe do que eu estou falando. Ninguém fala em ‘juntar os pares de meia’ ou ‘juntar os travesseiros’. Escova é uma marcação de território, e eu, no momento, não estou querendo nenhum território marcado aqui em casa, vê se me entende."

"Olha, Felipe, sinceridade, eu estou tentando, mas está me parecendo um absurdo. Não tem essa de "território", é uma escova apenas, para eu não ter que ficar trazendo e levando, esquecendo de trazer."

"Verônica, meu amor: entenda esse gato escaldado. Escova é um pé na porta. Fica ali, sobre a pia, de dentes arreganhados, olhando para mim com aquela cara de cobrança, de exigência, não tem leveza que resista. E só o que cabe agora é leveza, chega de peso. A gente estava conseguindo essa leveza, então não estraga. Vamos viver um dia de cada vez, enquanto estiver bom viver assim, nada de território, por favor."

“Eu sou uma idiota, mesmo. Estava saindo daqui tão feliz, achando que a gente estava se entendendo bem, sei lá.”

“Mas nós estamos bem, só não quero delimitação, cobrança, será que é difícil de entender?"

“Eu acho que você não está querendo me ver mais, é isso, não é?”

“Claro que não é isso, você não está me entendendo.”

“Vou pensar se eu quero voltar a te ver, viu?”

“Para com isso Vê, chorar não vale, é apelação. Eu estou tentando conversar como duas pessoas racionais.”

Ato 2:
Mesa de café da manhã, Felipe lendo o caderno esportivo e Verônica lendo o caderno de decoração. Ela larga o jornal e dá um leve suspiro enquanto brinca com os farelos de pão sobre a toalha.

“Fê...”

“Hmmmmmm”

“Eu estava pensando...”

“Hmmpf”

“A gente tem dois filhos...”

“Sei.”

“A gente mora junto há oito anos.”

“Mora.”

“Mamãe já mora com a gente há dois.”

Ele baixa o jornal: “Você sabe que eu adoro sua mãe. Desembucha logo, vai”

“Pois é. Será que já não estava na hora de eu ter minha escova de dentes na pia?”

3 comentários:

  1. Grande Ralph ficou bom, vai dar pano pra manga!!!
    Abração!

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  2. Muito boaaaaaaaaaaaa!!! Mandou benzão! ;-) rs!

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  3. kkkkkkkkk... Muito boa! Me identifiquei com o negócio da escova.

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