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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Onça e o Ócio

É preciso que eu me habitue aos sons. Estou sozinho à noite, em Rio Bonito de Cima, e o tempo parece que vai virar. O vento balança os gerânios da varanda, que vejo logo atrás do vidro, iluminados pela luz do abajur da sala. Ouço o agitar-se das folhas e ramos, e um ramo partido que bate contra a clarabóia. Uma grande mariposa se debate contra a janela, farfalhando a intervalos. Nunca entendi porque insetos noturnos, tendo a vastidão do breu para exercitarem seus instintos em liberdade, pelejam a noite toda contra uma vidraça ou ao redor de uma lâmpada, seduzidos por um falso sol noturno. Os sapos, mais pragmáticos, ajuntam-se sob as lâmpadas e enchem a barriga com os anjos decaídos.

Ouço o vento como ondas que se aproximam, e depois falam de perto nas árvores em torno da casa. Deixo as cortinas abertas, e, através do vidro, a escuridão me vê. Penso na possibilidade da onça que, dizem, arrastou para a mata algumas ovelhas do Lizardo, o vizinho. Não acredito que tenha sido onça, mas gosto da idéia de uma onça rondando a casa, meu tio Iuaretê olhando-me com olhos de onça de dentro da escuridão. Apago todas as luzes e fico sentado imóvel na varanda, vendo o vento e imaginando a onça.

O fim do inverno é seco e traz ventos mornos que antecedem a volta das chuvas. A horta está em seu apogeu, os brócolis, a mostarda e a cebolinha lançam seus pendões floridos, anunciando o fim de seu ciclo. A salsa, o manjericão e a hortelã estão uns viços, melhores que nunca. As chuvas ainda não vieram, mas, depois de despirem-se para o frio, os caquizeiros revestiram-se de verde. A jabuticabeira que nasceu à sombra de um “pé de madeira” (como diz o Batista), cresce agora furiosa, depois que infligimos violenta poda na vizinha que lhe sombreava. E, pela primeira vez, seus troncos estão recobertos com florzinhas brancas, promessas de bolotas pretas. Hoje comi nêsperas doces de enjoar, que adiaram a fome do almoço por mais de hora.

Retiro de silêncio, a companhia do vento e dos insetos batendo no vidro. Ninguém com quem conversar. Um Porto, Henry Miller falando de seu Big Sur. Longas e deliciosas páginas sobre a luz e a incapacidade de enquadrar a luz em aquarelas. E sobre pessoas, todas as gradações entre o encontro com a simplicidade sincera e a busca tateante e angustiada por esta mesma simplicidade por almas imaturas para o encontro. Colocar-se no lugar perfeito, algum paraíso na Terra, ou colocar-se diante da mulher perfeita, e descobrir-se indigno e despreparado para paz e para o amor. Aborrecer-se com o silêncio, com os insetos, com o vento, com a falta de vento, com o frio e com o calor, com a solidão e com a companhia. Ou ver a perfeita sabedoria em todos os ciclos, estações do ano, nossos próprios ciclos. No engarrafamento, no escritório, em Big Sur ou em Rio Bonito de Cima.

Que venha a onça e me devore. Definitivamente, vai chover antes de o dia clarear.

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