Aqui compartilho contos, crônicas, poesia, fotos e artes em geral. Escrevo o que penso, e quero saber o que você pensa também. Comentários são benvindos! (comente como ANÔNIMO e assine no fim do comentário). No "follow by E mail" você pode se cadastrar para ser avisado sempre que pintar novidade no blog.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Diários de Viagem I: Mildred e Suas Coleguinhas

Depois de quatro dias em Londres, havíamos planejado um giro pela região de Cotswold, onde nasceu William Shakespeare. Tínhamos esperanças vagas de encontrar Mr Darcy e as irmãs Bronté, pelo menos nos sonhos. Reserváramos um automóvel na locadora, e eu estava disposto e confiante para encarar o desafio de inverter meus neurônios e dirigir pelo lado esquerdo da estrada. Já havia buscado saber se a disposição das marchas, que seriam trocadas com a mão esquerda, eram invertidas ou não. Não, não são invertidas, e os pedais também não. Menos mal. Nossa intenção era alugar um GPS para aliviar o stress adicional de tentarmos nos orientar usando mapas, mas o simpático recepcionista somali da locadora nos disse que não havia nenhum disponível. Isso não chegava a ser uma desvantagem, confidenciou-nos, uma vez que o custo do aluguel seria 60% do valor de um aparelho novo, e, sim, a poucas quadras dali eu poderia achar um à venda. Partimos céleres pela Oxford Sreet até uma loja de eletrônicos, estilo muvuca, gerida por paquistaneses muito prestativos. De volta à locadora, instruções rápidas para o uso do GPS, e partimos, não antes de orarmos um terço para São Cristóvão.

Começamos a tentar nos entender com nosso brinquedinho afixado no vidro acima do painel. Uma voz feminina, com perfeita dicção inglesa nos orientava: “In two hundred yards, turn right, then turn left”. Eu, sem nenhuma noção de onde era o limite à esquerda de meu novo corpo de aço, sentia-me como o protagonista de Avatar estreando seu corpo de Na’vi, afora minha incapacidade inata para saber automaticamente onde é esquerda e onde é a direita sem ter que parar para pensar. Diga-se de passagem, os motoristas de Londres foram muito pacientes e gentis, só raramente me incentivaram com suas buzinas e algumas palavras de estímulo. Depois de entrar em algumas ruas erradas, exclusivamente por minhas dificuldades, nunca por incorreção das orientações de Mildred, chegamos à A 40, auto-estrada que nos levaria a Oxford, onde naquela mesma tarde eu viria a ser multado pela Transit Authority local por estacionamento irregular. Mas essa é uma outra história. A multa eu já paguei pela internet, não sem certo orgulho.

Depois que Mildred me tranqüilizou na A 40 com um “Drive forty two miles, then exit left”, relaxei. Quem é Mildred? Mildred é a voz feminina na opção British English do GPS, a nos orientar pelo infinito de estradas estrangeiras. Muito fina, a Mildred: dicção inglesa perfeita: “Enter roundabout than take second exit”. Um misto de segurança, compreensão e incentivo que realmente nos reconforta e estimula. Um pouco profissional demais no desempenho de suas funções, se me permitem um comentário, mas debaixo daqueles óculos, se soltasse aqueles cabelos louros, sei não. Minha mulher, como que percebendo suaves e imaginárias mudulações na voz de Midred, buscou em vão no menu a opção “voz masculina”, mas achou opções para praticamente todas as línguas vivas do planeta. Acho que tem até uma versão em latim.

Tentamos o Português – Brasil. Entra em cena a Claudinha. Voz doce, algo sussurrada, uma ligeira dificuldade na dicção dos S. Tem a Svetlana, 1,80 de altura, rosto lindo. Não entendi nada do que ela me dizia, a jovem camponesa de mãos calejadas e corpo de modelo. Consuelo, voz quente como a brisa da Catalunha, suaves nuanças a azeite. Gemma, me dando opções à destra e à sinistra. Mudamos ainda para “Português de Portugal”. Entra em campo Maria da Conceição. Voz um pouco grossa, um ligeiro buço, nada que me impedisse de sentir um arrepio quando ela me disse impositiva “Entre na rotunda”. Não deixei de reparar que Maria da Conceição, ao contrário de Mildred, me orientava a, depois de entrar na rotunda (hmmmm), pegar a segunda à direita. Ora, todas as saídas da rotunda são à direita. Fiquei imaginando um patrício, quem sabe um infeliz tio da Conceição, que, confuso, ficou esperando uma saída da rotunda à esquerda, sendo resgatado meio morto de sede e vertigens quinze horas depois, quando finalmente acabou o gasóleo. Então, o que abunda não prejudica.

3 comentários:

  1. Hahaha! Muito bom, risadas de graça em meio à inglória tarefa de preparar provas... Ótimo estilo, uma pitada de Verissimo (esse "rotunda" me lembrou o "fornida"!), e uma ótima alfinetada nos patrícios - perdem-se os ancestrais, mas não se perde a piada, é isso aí!

    ResponderExcluir
  2. Mario Medina:ô meu caro, sabe que as vozes descritas me impuseram pseudo travos e sotaques ao lê-las. Mildred de cabelos soltos deve ser implacável!
    Bom Mª da Conceição...nem no GPS.
    ...vamu lá, "fofinho" é campeão!!!!

    ResponderExcluir
  3. Belas fotos e ótimo texto Ralph. Quanto foto da estátua guardando a entrada, ela parece estar com os dois dedos em V, mas nao no tradicional sinal da vitória ou do "paz e amor". Reza a lenda aqui que a origem do sinal com os dedos da estátua vem da idade média, quando os Franceses cortavam esses dois dedos dos arqueiros Ingleses quando os capturavam em batalhas, para impedi-los de usar o arco no futuro. Em desafio a esta pratica, os arqueiros que nao haviam sido capturados passaram a fazer o sinal com os dois dedos para os Franceses. Com o tempo o sinal passou a ser usado de forma mais generalizada.

    ResponderExcluir