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domingo, 13 de maio de 2012

Everest, Culpa e Outras Divagações Dominicais


Li a crítica positiva na Veja – sim caro leitor, sou assinante da Veja; aviso logo de cara para que você, que posta aqueles quadrinhos pré-fabricados contra a revista no seu Facebook interrompa já aqui sua leitura e vá ocupar seu precioso tempo em coisa mais de acordo com suas crenças - sobre o novo livro de Luiz Felipe Pondé. Não sosseguei enquanto não o comprei o “Guia Politicamente Incorreto da Filosofia – Um Ensaio de Ironia”, recém lançado. Aliás, o fato dele estar encabeçando a lista dos mais vendidos de “não ficção” me dá esperanças de que exista uma parcela significativa de pessoas incomodadas com essa ditadura do politicamente correto, ou “praga do PC” como diz Pondé. Pelo menos na parcela da população que lê e, provavelmente, pensa de forma crítica. Li-o em pouco mais de um dia. Independente de se concordar com seus pontos de vista, Pondé sobressai como excelente frasista. Exemplos? “A Bahia é uma terra devastada pela alegria”; ou “Em mim, o amor é raro como a virtude de uma mulher louca de desejo”. Só pelas contundentes frases de efeito, artigo raro hoje em dia, já vale a leitura.

Pondé é médico nascido numa família de médicos. Numa aula do curso de medicina sobre câncer, perguntou ao professor como se sentiria um paciente diante da certeza da morte. “Meu filho, você está no curso errado, deveria estar cursando filosofia.” Ainda tentou conciliar as coisas direcionando seu curso para a psicanálise. Buscando aperfeiçoamento psicanalítico, enveredou pela Filosofia e nunca mais a largou. No embalo da leitura, assisti alguns vídeos com entrevistas e aulas dadas por ele. Contrariando o meu receio, pareceu-me uma pessoa desprovida de agressividade ou rancor. Apenas um homem honesto consigo mesmo, casado e pai de família, que se diferencia da maioria de nós pela curiosidade e perplexidade diante da fragilidade da condição humana, suas grandezas e misérias e de nossa  pequenez diante da Natureza. Que ousa encarar essa angústia, ao invés de tentar afogá-la com cerveja e churrasco. Coragem para poucos.

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Falando em Natureza. Comprei no mesmo dia o livro “Na Natureza Selvagem" – "Into the Wild” , do jornalista Jon Krakauer. O livro, que virou um ótimo filme, narra a saga de Chris MacCandless, rapaz de família rica que, assim que se formou, entregou seu diploma aos pais, vendeu seu carro, doou todo seu dinheiro e sumiu sem destino e sem dar notícias. Seu cadáver decomposto foi localizado por caçadores de alces dois anos depois, dentro de um ônibus abandonado na imensidão erma e gelada do Alasca. Krakauer, jornalista que publica regularmente na National Geographic Magazine, no Washington Post e no New York Times, já havia ganho projeção ao escrever “No Ar Rarefeito”, onde narrou sua experiência pessoal escalando o Everest na temporada mais fatídica daquela montanha, e a mercantilização do alpinismo, onde empresas lideradas por veteranos do Everest se propõem a levar qualquer um que não seja doente ou aleijado ao topo de mundo. Muito mais fascinante do que a análise crítica desse aspecto comercial do alpinismo radical é a tentativa de entender o que leva o ser humano, ou alguns deles, a testar seus limites diante da Natureza desafiando a morte. Existe um aspecto universalmente humano nesse desafio. Não é apenas testar os limites físicos, ou ver a paisagem lá do alto, nem mesmo tentar afirmar-se como mais poderoso e corajoso que a maioria dos mortais. Trata-se da busca de um encontro com uma instância mais profunda de si mesmo que a proximidade da morte proporcionaria. Era isso que buscava MacCandless, é isso que buscam os alpinistas de grandes altitudes, e o jornalista Krakauer identifica em si as sementes da mesma “loucura”.

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Ultimamente ouve-se muito sobre a responsabilidade do homem em salvar a Natureza. Depois de “matar” Deus e de tentar ressuscitá-lo, o homem, em arrogância pré-galileica, tem se arvorado como aquele que vai “salvar” ou “destruir” a Natureza. No máximo, estamos tentando prolongar um pouco mais o capítulo, ou melhor, a vírgula que a humanidade representa no grande livro da Natureza. Ela vai continuar existindo depois do homem, depois da vida sobre a Terra, depois que o Sol explodir. Não conosco, mas “sem nosco”. A Natureza não é boa nem má, tanto engorda quanto mata. Tanto fornece água limpa que alivia a sede quanto despeja a enxurrada que arrasa. Câncer é tão natural quanto beija-flor. Mesmo assim, e talvez justamente por sua impessoalidade majestosa, a Natureza é fascinante. Nós apenas tentamos agradar e barganhar com o deus ou os deuses naturais, para que ela nos mostre mais o seu lado favorável que o destrutivo.

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Voltando a L. F. Pondé. No livro ele aborda uma questão básica da filosofia: o homem é originalmente bom ou originalmente mau? Para Hobes, o ser humano é essencialmente mau e egoísta, e as coisas só não funcionam pior e conseguimos conviver em razoável harmonia porque a sociedade, em nome da convivência, tolhe e pune os impulsos egoístas individuais. Já para Rousseau, que no momento está ganhando de goleada no meio acadêmico "politicamente correto", o homem é essencialmente bom, mas é corrompido pelo meio, pela Sociedade. Caberia aí também confrontar a visão judaico-cristã do pecado original (nascemos maus) com o conceito budista de que somos essencialmente budas (nascemos bons) e apenas não permitiríamos, ou não saberíamos como fazer com que esse buda se manifeste. Ressalve-se que o budismo estimula (cobra) do indivíduo o esforço inalienável de retirar o entulho que encobriria esse buda original em cada um de nós. A ênfase na culpa pode desanimar e deprimir espíritos menos corajosos (ou com baixa auto-estima, para usar um termo mais em voga). A vertente defendida por Rousseau, por sua vez, pode retirar da esfera do individual a “culpa”, ou a responsabilidade por seus atos e pelo resultado de seus atos. O culpado seria sempre "O Outro": a mãe, o vizinho, o cunhado, a sociedade, o Estado, o "Capitalismo Selvagem" que me impedem de manifestar plenamente o ser virtuoso que eu seria. No entanto, sabemos que só avançam na psicanálise aqueles que têm a coragem de assumir a responsabilidade (culpa) pelo que não vem funcionando bem em suas vidas, independente das circunstâncias mais ou menos favoráveis que cabem a cada um. Colocar a culpa no outro é a desculpa dos que não querem ou não têm coragem moral para mudar. A falta total de culpa gera monstros morais. Ou, no mínimo, gera pessoas preguiçosas, que não arrumam o quarto, deixam o capim crescer no quintal e culpam o chefe por não subirem na carreira.

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Ainda sobre a responsabilidade moral. É fácil para nós, dessa distância segura,  jogar pedras naqueles que, pautados pelas questões práticas de sobrevivência própria e de seus familiares, foram colaboradores dos nazistas durante a ocupação da França, ou daqueles que, pelas mesmas razões, fecharam os olhos para o holocausto. Isso quando não denunciaram ativamente judeus escondidos no porão do vizinho na Alemanha do Terceiro Reich. À distância, todos transbordamos das nobres virtudes da coragem e da compaixão. Eu, humildemente, sou perseguido pela dúvida em relação às minhas eventuais qualidades morais. Tenho dúvidas se agiria como colaborador ou se me engajaria na resistência. Estatisticamente apenas, as chances são de que eu seria um colaborador. Esse fantasma (essa culpa), me assombra. Acho mais saudável assim.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Ausentes


Quando ela entrou, todo mundo olhou. Todo mundo é modo de dizer. Aqui em São José dos Ausentes, todo mundo em geral não passa de meia dúzia. O campo de futebol, quando não serve de pasto para meia dúzia de ovelhas, só é usado quando vem time de fora. Casados e solteiros não rola. Vivos contra mortos, teriam que convocar o Borja, que tem uma perna mais curta, para completar o time dos que ainda não foram. No caso em questão, todo mundo éramos eu, o Borja e o Palhaço. O Borja nasceu por aqui e, raridade, está aqui até hoje. Talvez por causa da perna mais curta, que o touro imprensou no curral. É o gerente do posto e da lanchonete do posto. E o Palhaço é o frentista. Quando a caravana do circo parou para abastecer, faz uns dez anos, ele, de porre, foi urinar no banheiro dos fundos e dormiu por lá. Foram embora e parece que até hoje não deram falta. Nunca vi ele rir. É o único palhaço de bigodão ruivo que eu conheço. Quanto a mim, não interessa porque eu vim parar aqui. Eu mesmo já quase estava conseguindo esquecer. Até que aquela mulher apareceu para atrapalhar meu esquecimento.

Olhei pela vidraça para ver com que carro ela tinha chegado assim sozinha no meio da noite. Para abastecer, com certeza. Não sei se por causa da neblina ou por causa da lâmpada queimada do poste, não vi carro nenhum. Nem moto, nem caminhão, nem montaria. Nem bicicleta tinha lá fora.

“Banheiro?”, ela disse. O Palhaço esticou o beiço inferior por debaixo do bigode, apontando o corredor do canto. Ficamos os três calados, olhando um para a cara do outro, tentando adivinhar se o outro estava pensando alguma besteira parecida com a que cada um estava pensando.

O toc-toc das botas de salto que ela usava, calça justa de jeans por dentro do cano alto, voltando. Continuei sentado no canto ao lado da geladeira de refrigerantes, com os braços cruzados por baixo do poncho e equilibrando a cadeira nos dois pés de trás, as costas contra a parede. O motor da geladeira é meio barulhento, mas emite um calorzinho bom. Ela sentou-se junto ao balcão e pediu um maço de cigarros para o Borja. Sacou um, pôs na boca e fez aquela cara de “acende o meu fogo”. Ele puxou o isqueiro dos bêbados pelo barbante, levou-o o mais perto que pôde da ponta apagada e apertou três vezes até ele acender. Como o barbante era curto, ela teve que se curvar sobre o balcão. Eu e o Palhaço trocamos um olhar, imaginando o ângulo de visão que o Borja teria dos peitos dela.

“Obrigada”, ela disse depois de uma baforada para o alto.

Fiquei olhando a dona por debaixo da aba do boné. Ela parecia... Mas não podia ser. Ficou ali, sem pressa, fumando e olhando o pôster do Internacional por cima da prateleira de bebidas. Fazia biquinho, soltava a fumaça devagar, com gosto, estufando só um pouquinho as bochechas queimadas de frio, com uns pelinhos louros bem fininhos. De onde eu estava não dava para ver os pelinhos louros, mas dava para imaginar direitinho. Depois amassou a bituca no cinzeiro e levou as mãos à nuca, puxando um rabo de cavalo comprido de dentro do casaco de couro. Soltou os cabelos claros do elástico e eles foram se espalhando, se abrindo à medida que ela balançava a cabeça bem devagar, como as pétalas de uma flor que se abre naqueles filmes em que passam a imagem bem acelerada, para parecer que a flor se abriu assim, na cara da gente. Cabelo lustroso, bonito, parecia anúncio de xampu. Eu já tinha visto cabelos como aqueles, se soltando daquele jeito, há muito tempo atrás. Depois ela pediu um conhaque. “Frio lá fora”, justificou.

A essa altura, eu já estava sentindo umas coisas que há muito tempo não sentia. Fiquei olhando para a dona, até ela sentir aquela sensação na nuca que a gente sente quando estão nos olhando por detrás. Então ela se virou e me viu. Cravou os olhos em mim e eu fiquei firme olhando nos olhos dela. Senti um arrepio que foi das costas até a base da nuca e gotas de suor brotando nas têmporas, por baixo do boné. Instintivamente conferi a pressão que a bainha da faca de caça fazia na minha perna direita, por baixo da calça larga. Sem tirar os olhos de mim ela se levantou e veio para o meu lado.

“Posso?” Arrastou uma cadeira de plástico azul de uma mesa próxima, que tinha uma estampa de uma marca de cerveja no tampo, e sentou-se perto de mim. Levantei um pouco a aba do boné para olhá-la melhor. Devo ter ficado quase um minuto sem piscar.

“Tu continuas bonita, apesar dos anos. Um pouco mais pálida, mas bonita”, falei. E gostosa, pensei.

“E tu ainda sabes como cortejar uma mulher."

“Achei que nunca mais ia te ver, a não ser nos sonhos.”

“Tu sonhas comigo ainda?”

“Só de vez em quando”, menti.

“E essa barba? Usas há muito tempo?”

“Desde que tu te foste.”

“Até que te caiu bem. E esses fios brancos, as ruguinhas no canto dos olhos, te dão um ar maduro, bem charmoso, que tu não tinhas.”

“Ponto para os anos, então. Pelo menos essa vantagem eles trazem.”

Ficamos em silêncio, olhando para os joelhos um do outro por um minuto ou dois.

“Por que resolveste vir atrás de mim agora?”, perguntei erguendo os olhos devagar. "Ou vais dizer que chegaste aqui por acaso, obra do destino?"

“Fiquei te devendo uma explicação.”

“Será que isso é possível, uma explicação?”

“Entenda, tu viajavas muito.”

“Eu já era caminhoneiro quando me conheceste. Ou não era?”

“Eras sim.”

“Tu te lembras daquela coisa de amá-lo e respeitá-lo na saúde e na doença e etc.? E acho que tinha na presença e na ausência também.”

“Não tinha não.”

“Mas devia ter, pombas. Respeitar tinha e tu juraste ali, na frente do padre e de todos, olhando nos meus olhos.”

“Na hora era verdade. Mas a solidão dói. Doía barbaridade. Quando tu voltavas, a dor cessava um pouco. Não de todo, porque já antecipava a próxima partida. E quando tu partias, de novo e de novo, a felicidade ainda persistia por um tempo, por uns dias. E depois a dor, a saudade, o vazio que tu deixavas, aquele vazio imenso latejando. Não era tédio, era dor. Uma dor pedindo por teu abraço, por teus beijos. Eu achei que outro abraço, outro beijo poderia me anestesiar da tua ausência. Pois saiba, então: não podiam. Não puderam.”

“Mas tinha que ser logo com o Jurandir? Meu amigo, meu mecânico, meu companheiro de pescaria? Quando me avisaram do acidente, eu já estava para lá de Belo Horizonte. Não me contaram a princípio que tu não estavas sozinha no carro. Só depois me disseram que ele estava também. E só no velório eu soube que a carreta atingiu nosso carro na saída do Motel Vênus. E eu ainda fiquei quase dois anos pagando por aquele troféu de corno feito de aço retorcido.”

“Eu fechava os olhos e imaginava que eras tu.”

“Perdi a mulher, o mecânico, o companheiro de pescaria, o respeito das pessoas. Tive que passar a levar o caminhão para consertar lá em Bento Gonçalves. E o que eu ganhei em troca?”

“Eu sempre exigia que se apagasse a luz.”

“Um par de chifres e cabelos brancos.”

“Eu nunca deixei de te amar.”

“E por que tu pensas que eu acreditaria em ti agora?”

“Eu não tenho por que mentir. Não agora.”

Ela passou suas mãos por baixo da lã do poncho e segurou meu braço, os dedos finos e frios. Um arrepio me subiu pelo braço até o pescoço, um arrepio bom e quente. Fui aos poucos relaxando a musculatura, como numa rendição. Ela deslizou os dedos até os meus e puxou-me com suavidade, fazendo a cadeira desencostar da parede e os quatro pés pousarem no chão.

“Você não imagina como foi difícil te encontrar aqui. Mas nunca desisti.”

Levantei os olhos até os olhos dela e fiquei olhando aquele azul pálido, as pupilas dilatadas, aquelas gotas que surgiam nos cantos. O compressor da geladeira deu um tranco e parou de fazer barulho. Quis ainda exercer algum direito de vingança, dizer algo que a ferisse profundamente, que nos deixasse quites:

“O Inter também foi campeão mundial de clubes, viu?”

“Eu vi o pôster.”

“Na final, o Ronaldinho estava no outro lado, no Barcelona, e perdeu.”

“É mesmo?” Ela não parecia nem um pouco atingida. Abriu um sorriso. “Seu bobo!” Então me beijou um beijo quente com seus lábios frios, um leve cheiro de terra como perfume. Depois me segurou as duas mãos, ergueu-se e me puxou.

“Tem uma lua linda lá fora. Vem.”

Levantei-me e deixei-me guiar. Senti no rosto o vento gelado quando a porta se abriu. Então olhei para trás, por cima do ombro, para o bigode ruivo do Palhaço. Tentei decorar aquela forma, aquela cor. Seria a última vez que eu o veria.

domingo, 15 de abril de 2012

Oxford Street - London

Rainy Afternoon, Oxford Street - London

domingo, 8 de abril de 2012

A Soma e a Unidade


Não é hora para sentir essas coisas, não ainda. Algo decente dentro de mim deveria impedir esses sentimentos inoportunos, essa luxúria egocêntrica, esse calor onde só deveria haver frio, um frio escuro e quieto. Será que eu não presto? Serei egoísta e insensível? Ingratidão, isso, ingrata é o que eu sou.

Tudo o que vivemos juntos, eu e Fábio, o namoro, o noivado, a paixão, as dificuldades do início do casamento. Às vezes em que gostaríamos de ter jantado fora, de termos viajado, e os dois ali, parceiros, economizando para as prestações do dois quartos na Zona Sul. Ele dando plantões no fim de semana enquanto eu contribuía só com a bolsa do mestrado. Depois, a gravidez da Júlia, depois a da Bianca, o dinheiro parecendo que ia ser curto a vida inteira. E a vida a dois sacrificada, o sexo sacrificado em nome do projeto família. Ele nunca se queixou. Um santo. Realmente, nunca vi queixa, nem em seus olhos, nem nas entrelinhas. Eu não era assim, tão santa.  A duras penas engolia as minhas insatisfações, às vezes engasgava e elas caíam na mesa, injustas, mas vivas e pulsantes. Nem disso ele se queixava. Amava mesmo assim a mim, as meninas, o apartamento pequeno, o projeto que era mais dele do que meu.

As promoções, os progressos financeiros, o posto de major, o primeiro de sua turma a alcançá-lo, eram para o projeto de família, para mim e para as meninas. Enfim, a viagem foi possível: os quatro para a Disney. Os quatro, sempre os quatro. Ele era uma fração do quatro, enquanto eu nunca deixei de ser uma unidade. Nunca tive essa capacidade, esse esvaziamento da individualidade. Eu queria ser apenas eu. Queria ser amada como Paula, como mulher, como amante, não apenas como mãe ou esposa. Difícil admitir tanta ingratidão. A sorte grande, o marido perfeito, bonito, trabalhador e bom pai. O genro que meus pais sonharam. Quando eu chorava baixinho à noite ele acordava perguntado “Que foi meu bem?” e me beijava as lágrimas e me acarinhava o cabelo, e eu chorando aquelas lágrimas injustas e egoístas. Ele poderia ser como a maioria: chegar tarde sem deixar bem claro o por quê, beber com os amigos, voltar cheirando a cerveja e desabar na cama. Eu lhe tiraria os sapatos e maldiria a minha sorte, desejaria com o peito arfante o dia em que ele chegaria sóbrio ou menos bêbado e me possuiria à força. Talvez isso me fizesse infeliz e apaixonada. Mas não fui nem uma coisa nem outra.

E então a apendicite. O diagnóstico protelado. A peritonite. “Cuide bem das meninas”, ele disse ainda. Desde então, quatro meses de vida em turbilhão, no tambor da máquina de lavar. Chorei sim, chorei muito, mas, depois de uma semana, não chorava mais. Sem nenhum esforço, a tristeza secou. “Pelo bem das meninas,” menti, “tenho que ser forte”. Não precisei fazer força, e essa verdade me dá bofetadas na cara. “Nossa, como você é forte, como você está bem!” Será que eles desconfiam que não foi tão difícil como deveria ser?

E agora a vontade de rir, que tenho que modular. Acho graça nas coisas que me contam, quero uma roda com as amigas, quero saber das novidades e da vida alheia. Quero beber e gargalhar como há muito tempo não faço. A pensão integral não deixa que eu perca o sono por causa de dinheiro. E eu sonho. Sonho com Fábio, ele me acaricia os cabelos e beija as minhas lágrimas. Mas quando o sonho me abrasa e desperto ofegante, sonho com alguém que não tem rosto. Quando acordo, só o que quero é descobrir qual é o rosto desse homem que, na noite, me faz mulher.

sábado, 24 de março de 2012

Decidir com o coração?


Rogério ultimamente vem gastando bem mais do que deve ou pode. A fatura de seu cartão de crédito vinha sendo quitada integralmente a cada mês, mas já faz mais de ano que parte da dívida é sistematicamente rolada para o mês seguinte. Rogério tem economias aplicadas em caderneta de poupança em volume suficiente para quitar o total de seu débito com o cartão, que vem se avolumando como bola de neve. Apesar de suas aplicações renderem pouco mais de 0,5% ao mês e os juros cobrados pelo cartão serem superiores a 6% em igual período, ele se recusa a tocar no dinheiro que guarda para o futuro dos filhos ou para um imprevisto. “As economias são sagradas e nelas eu só mexo em último caso”, diz seguro e orgulhoso. Antes do fim do ano a dívida do cartão vai ultrapassar o valor das economias, mas Rogério parece não se dar conta disso.

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Sabrina é uma mulher alta, de porte elegante e rosto bonito. Nasceu em uma pequena cidade do interior, mas foi completar os estudos na capital e acabou por tornar-se uma profissional bem sucedida, já tendo trabalhado para multinacionais em Porto Alegre e Curitiba. Apesar de, por um determinado tempo, ter priorizado a carreira, diz que nunca deixou de ser romântica. Pouco depois dos trinta reparou que quase todas as suas amigas estavam casadas e ela ainda solteira. Não que tivesse dificuldades em conseguir encontros e namoros: atraente como é isso nunca foi problema. Então, movida por um sutil desespero, ela decidiu que já era hora de arranjar alguém para casar. Talvez fosse essa urgência que transparecesse em seus relacionamentos a partir daí, talvez os homens se sentissem pressionados a assumir compromisso mais sério, o fato é que ela, paradoxalmente, passou a ter dificuldade em levar a duração de qualquer relacionamento além de uns poucos encontros. Num fim de dezembro, numa visita aos pais em sua cidadezinha natal, soube que Eric, uns dez anos mais velho que ela e antigo namorado de juventude, havia se divorciado. Deu um jeito de encontrá-lo em uma festa e abanar aquele fogo antigo. Para encurtar a história, em seis meses estavam morando juntos. A carreira? Ela pediu demissão de seu emprego em Curitiba e, com indicação de amigos, conseguiu uma colocação na prefeitura local. O salário? Bem menos da metade do que recebia antes. Valeu a pena? Essa resposta é um pouco mais complicada. A princípio sentia-se radiante em poder ir às festas e apresentar Eric como “meu marido”. Tinha o lar que sempre sonhou, gostava de limpar e enfeitar a casa e cuidar do marido. Só faltavam os filhos, um que fosse, para sua felicidade ser completa. Aí as coisas começaram a desandar. No primeiro casamento, Eric não tivera filhos. A princípio dizia a Sabrina que era melhor ficarem um tempo só os dois. Depois de alguns anos, como Sabrina insistisse no assunto, confessou que não tinha nenhuma intenção de deixar descendência. Disse e tomou providências. Temeroso de que a mulher deixasse de usar métodos anticoncepcionais, passou ele mesmo a tomar esse cuidado. Com o tempo, radicalizou: passou a evitar qualquer contato sexual. Infeliz e chorosa, Sabrina desabafava com os amigos. Esses eram unânimes: “Largue o Eric e procure outra pessoa.” Passados nove anos, Sabrina continua casada e infeliz. Não tem qualquer filho que a prenda a seu relacionamento atual. Sente raiva de Eric. Tanta raiva que, talvez por vingança, tem mantido um caso extraconjugal com um homem casado. Já passou dos quarenta, e a maternidade vai se tornando um sonho difícil de realizar.

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Pedro Paulo, pouco depois de formar-se em engenharia, fundou com dois colegas de faculdade uma pequena indústria. Investiram no negócio as economias próprias e dos familiares. Fabricavam artigos eletromecânicos inovadores. Depois de muito esforço e dedicação, conseguiram seu espaço no mercado. Na época, trinta e poucos anos atrás, havia pouca concorrência estrangeira, e os produtos eram duráveis e confiáveis. O negócio deslanchou e ficaram quase ricos. Davam a suas famílias vidas bastante confortáveis e sentiam-se orgulhosos de seu empreendimento. Os anos se passaram e o mercado mudou. Duas multinacionais instalaram-se quase simultaneamente no país e passaram a produzir equipamentos para o mesmo fim. Não eram tão duráveis e confiáveis, mas utilizavam componentes eletrônicos chineses e eram vendidos por menos da metade do preço da concorrência. A indústria de Pedro Paulo começou a perder mercado. Reuniram-se os sócios e os filhos dos sócios, já adultos, para decidirem que rumo tomar. Poderiam tomar empréstimos para diversificar e modernizar sua linha de produtos. Poderiam vender a indústria enquanto ela valia alguma coisa, e havia pelo menos um interessado. Ou poderiam deixar a coisa como estava e aguardar os acontecimentos. As duas primeiras opções implicariam em desapegarem-se do passado, fazer sacrifícios e buscar novas perspectivas, talvez até em outro campo de negócios. Luiz Carlos, um dos fundadores, era favorável a tomarem empréstimos para investimentos, mas foi voto vencido. Os empréstimos acabaram sendo tomados, mas usados apenas para quitar dívidas com fornecedores. Luiz Carlos acabou vendendo sua parte aos outros sócios e, usando seus conhecimentos no mercado, abriu uma distribuidora. Vai muito bem, obrigado. Pedro Paulo e o outro sócio remanescente têm fortes ligações afetivas com a empresa, com os antigos funcionários, com o galpão da fábrica, com suas rotinas de trinta anos. Estão naufragando lenta e inexoravelmente agarrados ao passado.

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Em uma crônica anterior* rendi homenagens aos nossos antepassados, ilustres desconhecidos que, baseados na avaliação lúcida e objetiva da realidade, tiveram o discernimento e a coragem de tomar a decisão acertada na hora devida. A eles devemos a nossa existência. A eles devemos a sobrevivência da espécie humana. Eles souberam usar adequadamente sua maior vantagem evolutiva, a inteligência e a capacidade de, racionalmente, prever os lances seguintes de cada possibilidade. Desvencilharam-se de seus condicionamentos e de seus medos para nos trazerem até este ponto em que estamos. Ainda existem hoje seres humanos com essa capacidade e deveríamos nos esforçar para sermos um deles. A felicidade e talvez a sobrevivência nossa e de nossos eventuais descendentes dependem disso. E, no entanto, fico abismado com a quantidade de pessoas que fecham os olhos ao óbvio e, guiadas pelas emoções, deixam de tomar tempestivamente a decisão correta. De minha parte, procuro guardar a emoção para os momentos de bonança. Para, apaixonadamente, acarinhar minha mulher e meus filhos e torcer por meu time de coração. Já na hora crucial da decisão, quero estar de posse de minha inteligência e racionalidade.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Bosque de Chenonceau, França

Bosque de Chenonceau, França
(sobre foto que tiramos no local em 2010)

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Folhagem

after John Singer Sargent
 (clique na imagem para ampliar)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Companhias à mesa


1. Frutas e frutinhas

O restaurante a quilo está cheio, e as mesas são quase coladas umas às outras. O rapaz vestido com cuidado na combinação das cores, óculos escuros segurando no lugar os cabelos cuidadosamente desalinhados, se aproxima de minha mesa e pergunta se a mesa ao lado está vaga. Boca cheia, faço um gesto para que fique à vontade. Ele então pousa o prato com sushis e sashimis e a tigelinha de shoyo, sentando-se em seguida. Um garçom se aproxima com a presteza dos restaurantes de alta rotatividade:

“O Sr. já pediu a bebida?”

Meu vizinho, como que atordoado pela pergunta assim, de chofre, faz um ar pensativo. Súbito, uma luz lhe perpassa o semblante e ele, decidido, tasca: “Tem suco de lichia?”

“Lichia, infelizmente não temos.”

A mirada de meu comensal se abate por um breve momento, mas logo se refaz:  “E de frutas vermelhas, vocês têm?”

O garçom, solícito, esforça-se em repassar na memória todas as frutas disponíveis na casa, selecionando-as pela cor. Mamão é alaranjado, não é vermelho. Será que caqui pode ser considerado vermelho? Melancia é rosa escuro, fúcsia ou vermelho? “Temos melancia e morango”, conclui sem disfarçar o alívio em poder bem atender o freguês.

“Não tem framboesa?”

“Framboesa, não, infelizmente. Só melancia e morango.”

O rapaz está visivelmente decepcionado. Suspira discretamente, fazer o quê? “Tá bom, então melancia com morango”, conforma-se. Em seu âmago toma uma decisão irrevogável: nunca mais adentrar um restaurante sem antes certificar-se da variedade de seu acervo de frutinhas vermelhas.

2. Quatro queijos

Estou em São Paulo a trabalho. Meu colega sugere irmos a uma churrascaria para o jantar e, pelo celular, convida o Paranhos, um amigo dele que também está na cidade para nos fazer companhia. Eu, que não sou entusiasta de churrasco, concordo passivamente com a indicação de “uma ótima lá no Bixiga”.

Quando descemos do táxi, Paranhos já nos espera à porta do restaurante. Já  conhecia o Paranhos de encontros de trabalho. Cabelos grisalhos, quase brancos recobrindo cuidadosamente as orelhas, pele de janeiro a janeiro em tom de havaiano de filme, blazer elegante e sapatos caros. Cumprimentamo-nos com entusiasmo e entramos. Pedimos cervejas, menos o Paranhos que pede um 12 anos. Saboreado o primeiro gole, nos dedicamos a analisar com cuidado as muitas opções de carne do cardápio. Um sorriso maligno se acende, então, no rosto do amigo de meu amigo.

“Repara só, vou ferrar com eles agora,” anuncia. Faz um rosto de candura angelical enquanto chama o garçom. “Amigo, eu estou pensando em pedir um espaguete aos quatro queijos. Você pode me informar quais são os quatro queijos que vocês usam aqui?”

O garçom, obviamente, não sabe. “Vou pedir ao maitre que venha atendê-los”, esquiva-se.

Vem o maitre: “Parmegiano, camembert, roquefort e mussarela, Sr”.

Vez do Paranhos seguir com o jogo. “Posso ver qual é o Roquefort que vocês estão usando?”

O maitre transpira ligeiramente nas têmporas. “Vou verificar e trago já para o Sr.”

Paranhos antecipa a vitória: “Duvido que eles tenham roquefort. É sempre assim, eles anunciam quatro queijos e não passa de mussarela, parmesão de terceira mais um cheirinho de gorgonzola nacional. E olhe lá!”

O maitre volta derrotado: “Sinto muito, Sr., mas hoje não temos mais como servir a massa aos quatro queijos.”

Paranhos sorri em triunfo. Ganhou a noite. Eu penso que deveria ter ficado no quarto do hotel assistindo futebol e comendo pizza.

3. Catuaba

Estação da Central do Brasil, quatro da tarde de sexta. Tomo um refresco de maracujá no balcão do bar, observando o vai e vem de gente apressada a caminho da cidade ou das plataformas onde tomarão o trem que os levará de volta ao subúrbio. Um homem moreno de meia idade, trajando bermuda, chinelos e camiseta sem mangas senta-se no banco ao lado. Tem uma barriga daquelas com muita história para contar e ostenta um bigode grisalho, do tipo que era moda entre os PMs no tempo em que eu fazia residência médica no Hospital da itimorata corporação Policial Militar do Rio de Janeiro. Transpiramos os dois no calor democrático do dezembro carioca.

“Ô Carlinhos, me vê um Caga-Sangue no capricho e uma cerva bem gelada, que hoje não está mole não,” grita ele para o rapaz do balcão. “Mas antes me traz uma catuaba, falou?”

Irmanados no suor, trocamos um breve olhar solidário. Uma voz rouca e poderosa irrompe do salão da estação:

“Fala, mermão! Não morreu ainda não, seu corno?”

Meu companheiro de balcão se ergue abrindo o sorriso e os braços. “E aí, seu veado? Já largou a velha?”

“Que velha, pô?”

“A velha mania de dar!” E os dois caem na gargalhada.

O balconista volta: “Hoje estamos sem catuaba, seu Geraldo.”

“Então manda um Fogo Paulista.”

“Está precisando disso agora, é?”, caçoa o amigo? Novas gargalhadas.

Deixo os dois discutindo as perspectivas de Flamengo e Vasco para o ano seguinte e saio em direção à Presidente Vargas assoviando um samba de Paulinho da Viola. Hoje vai ter vuco-vuco depois da novela das nove lá em Vigário Geral.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A ponte original de Isaac Levitan

Este é o óleo original de Levitan que eu copiei em aquarela. Isaac Levitan (1860 - 1900) nasceu na então Rússia, hoje  território da Lituânia. Um paisagista espetacular, pouco conhecido por nós. Dá para perceber as diferenças das duas técnicas? A luminosidade da aquarela é muito bacana, e o que me encanta na técnica. Mas foi o Levitan que me cedeu a composição, as cores e a luz, tudo prontinho. O quadro original é  bem grande, enquanto a aquarela mede apenas 20x25 cm: então o original tem muito mais detalhes que a gente tem que sintetizar na aquarela.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Quatro contos curtos


1
Procurou no bolso de trás. Achou um papelzinho dobrado e amassado, sobrevivente de duas ou três lavagens. Abriu com cuidado, o número ainda legível. “Me liga.“ Valéria aguardaria até o fim de novembro. Suspirou. Fez uma bolinha com o papel e a atirou no bueiro. Procurou no outro bolso e entrou resoluto no supermercado com a lista de ingredientes para a rabanada.

2
As juntas rígidas, o pelo sem brilho se soltando à medida que eu espalhava o sabão. O cheiro insistente da velhice exigia intervalos menores entre os banhos. E aqueles olhos grandes e amigos, cravados nos meus, suplicando uma explicação para a vida se esvaindo pelo ralo. Eu, o homem da casa, sou naturalmente o incumbido de decidir o quando e o como.

3
Sexta feira. Apertou a campainha da casa dela mais uma vez. Surpreendeu-se, o ritmo cardíaco não se alterava mais. Talvez já fosse hora de considerar esse tal de amor.

4
O caminhão partiu levando os móveis, os brinquedos e a TV. As crianças ela tinha levado na véspera. Ficarem ele e o gato cego na sala oca. Como ele iria se orientar naquele vazio?

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Gavilan: Never say no to Panda

Homenagem à amiga e colega de aquarela Clara Gavilan. Veja este blog bacana (e um sucesso!) acessando o link Gavilan aí à direita. Never say no to Panda! Acho que o Panda estava dirigindo o busão...

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Cinquentinha

Decoração legal. Amarelo. Amarelo o quê mesmo? Açafrão, isso! Amarelo açafrão. Mesma cor daquele arroz com açafrão que eu pedia às vezes no jantar naquele hotel em São Paulo. Era bom. Sentava embaixo da luminária, naquela mesa do canto, ficava lendo Nelson Rodrigues, tomando coca-cola com limão e comendo arroz com açafrão. O arroz acompanhava o quê? Frango, acho que era frango. Depois aquele expresso fazendo derreter na boca a pastilha de chocolate amargo com menta. Delícia. Ficou legal essa parede amarela, coisa de arquiteta ou arquiteto gay. Homem não pensa em amarelo açafrão. Será que o médico é gay? Só me falta, eu prestes a levar uma dedada de um urologista gay. Paranóia. Todo mundo aqui nesta sala já levou dedada. Aquele senhor magrinho, cabelo branco, não está nem aí, já deve ter levado muitas. A gente acostuma. A gente acostuma com tudo na vida, dedada é o de menos. Câncer. Câncer é dose. Difícil. Mas acho que até isso a gente acaba acostumando. Será que o velhinho já teve câncer? Se teve e operou, deve ter ficado brocha. Também, na idade dele, não deve fazer muita diferença mesmo. Olha só a mulher dele, já devem ser casados há séculos, bodas de plutônio. Será que ainda transam? Difícil. Viver junto sem sexo, acho que a gente acostuma também. Perde a vontade, não sente falta. Fica só a amizade, legal, já fizeram tanta coisa juntos. Já transaram muito, já constituíram família, filhos, netos. Difícil olhar pra essa velha e imaginar ela novinha, gostosinha. O marido dela deve ver ela novinha e gostosinha ainda. Amor faz essas coisas. Eu acho.  Mas quem olha assim acha que ela já nasceu velha, com ruga e pelanca. Mas ela já foi gatinha, foi sim. Tá junto com ele aqui, até no câncer. Se é que ele está com câncer. Vai ver, está botando prótese peniana. Não, ele não. Aquele outro ali, sim. É meio velho também, mas pinta o cabelo. Ridículo. Eu não vou pintar o cabelo. Ainda bem que ainda tenho todos os meus cabelos. Pelo menos, ainda não dei falta de nenhum. Tem até uns novos nascendo na orelha. Acho que nunca vou ficar careca. Vou ficar é grisalho, a mulherada gosta. Definitivamente, não vou pintar o cabelo. Ele deve ter mulher nova, novo casamento, fica fazendo essas coisas ridículas, pintar o cabelo, usar camiseta. Talvez estivesse melhor com alguém da idade dele. Esse negócio de casar com mulher mais nova deve ser complicado, ficar aturando aquelas inseguranças de quem ainda não se afirmou. “Tô bonita? Tô feia? Tô gorda? A chefe me persegue...” Haja paciência. Não sei se paga a pena, só pela carne dura. Sexo é só um pedacinho do dia. No início, é mais, mas depois é só um pedacinho, e depois, nem é todo dia. E o resto do tempo? E quando você tem um problema e não tem uma mulher madura pra te ouvir? A secretária deve ser sozinha, só pode. Deve ter sido escolhida pela mulher do médico. Cabelo curto, sem pintura, sapato baixo. Essa aí já morreu para os homens, só deve pensar nos filhos, que, vai ver, nem ligam pra ela. Ou então não é nada disso. Como é que as mulheres só querem ler Caras, meu? Podendo ler tanta coisa que acrescente ficam lendo Caras. Depois a gente vai conversar e assunto que preste, nada, só fofoca. Me lembra aquela garota com quem eu saí uma vez, como era mesmo o nome? Tânia, isso, Tânia. Gatinha, mas não deu pra encarar. Com meia hora de conversa já estava se repetindo, não tinha assunto, como é que pode, só abobrinha. A porta abriu, acho que agora é minha vez, o doutor está me chamando. Caramba, que mão enorme.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Visite minhas fotos no Flickr

Ubatuba, seis da manhã.
Aqui na coluna à direita => você pode acessar esta e algumas outras fotos minhas selecionadas no link "Flickr: Ralph Antunes' photostream". Tem, entre outras, uma seleção fotos de pássaros livres na natureza. Dê uma conferida!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Passarinho japonês

Minha primeira tentativa com máscara líquida. Inspirado em gravuras japonesas.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Uma graça


Ela trabalhava quando se conheceram. Depois de casados, convenceu-a a deixar o emprego para que pudesse se dedicar mais às crianças. Quando as crianças cresceram, ela quis retomar os estudos e candidatar-se a uma bolsa de mestrado. “Bobagem, para que você precisa de mestrado? O que eu ganho é mais que suficiente para nós.” Quando ela emitia um comentário em uma festa de família, ele sempre desqualificava sua opinião. Achava bobagem ela gastar dinheiro em salão de beleza, pintar os cabelos em casa era tão mais barato. Além do mais, roupas da moda e bijuterias eram coisas de mulheres inseguras, ele a amava do jeitinho simples que ela sempre fora.

Quando, depois de dezessete anos de casamento, ele saiu de casa, recomendou ao jardineiro que não deixasse de regá-la a cada dois dias. E que, a cada primavera, a desenvasasse e podasse suas raízes. Hoje ela tem cinquenta e dois anos de idade e trinta e sete centímetros de altura. Uma graça de mulher-bonsai. 

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Dedo de Deus

Dedo de Deus, Parque Nacional da Serra dos Órgãos, RJ. Fiquei bem feliz com o resultado. Sinal que as aulas com mestre Alarcão estão produzindo frutos. Ajudou muito o pincel de pelo de esquilo, que eu estava estreando. Ele absorve muita tinta ao mesmo tempo que tem a ponta muito fina e delicada. Bom investimento.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Eu, eu mesmo e Antunes

Existem férias com casa cheia, na praia ou na serra. Fila no posto e no mercado, cerveja, churrasco com a galera e música alta. Existem também férias com viagem, aeroporto, faz e desfaz mala, muita andança, cada dia um roteiro a cumprir, cada dia um restaurante, uma paisagem, muitas atrações imperdíveis.

Eu, todo ano, me dou uns poucos dias de férias de tudo e de todos, menos de mim mesmo, alguns dias por ano sozinho aqui nessa roça, aqui nessa serra.  Fico bem só com minha própria companhia. A família? Só chega sexta feira. Tédio? Nem de longe.  Cuidado de não fazer planos demais e terminar sentindo que não se fez tudo que se queria fazer. Dias cheios, portanto. Agora à tarde estava tateando “Por una cabeza” no teclado quando ouvi uma piadeira do lado de fora. Senha para pegar correndo os binóculos e a Canon com tele. Lá por cima do sítio da Ana Maria, um bando de tucanos. De que espécie? Alguns clics revelam: bico preto e papo amarelo, Ramphastus vitelinus segundo me diz o “Aves Brasileiras”, do Dalgas Frisch. Com essa, já são 75 espécies diferentes de pássaros avistadas por aqui. Ganhei o dia.

xxx
Ontem saí para uma caminhada. Vou até o mirante de Bananeiras, decido já no caminho. Se na estradinha de terra da vila já passa pouca gente, na estrada do mirante anda-se horas sem cruzar viva alma. Até há pouco tempo, motoristas com tração nas quatro e espírito de aventura podiam subir a serra desde Silva Jardim pela trilha de terra até aqui, mas a ponte de madeira, já do lado de cá da vertente, caiu de podre há uns quatro anos. Agora só se passa a pé, a cavalo ou de moto. Fico observando o vau do riacho por baixo do que restou da ponte: se tirar aquele tronco caído que está represando a água, se jogar umas pedras grandes no ponto mais fundo, se usar um pouco a enxada aqui e ali daria para passar com o jipe pela água, fico arquitetando. Sigo em frente. Mais adiante, um vulto cinza vai caminhando uns vinte metros na minha dianteira. Vou andando, ele vai andando. Acelero, ele acelera e tenta subir o barranco para o mato. Acelero mais e ele, gordo, escorrega de volta para a estrada. Dou uma corrida e ele sai voando magnífico para o lado contrário. Um macuco! Tinamus solitarius, como eu. Só tinha visto antes no pacote de manteiga, fora do qual ele andou perigando de extinção. Mas dizem que estão voltando a se multiplicar com a redução da caça. Acredito. Outro dia ganho. Espécie 76.

Logo depois, a vista magnífica da baixada de Silva Jardim, a lagoa ao fundo e o mar lá no horizonte. Vento úmido, trovoadas distantes, arapongas nem tanto, terrén, terrén, terrén. Acho que não vai chover tão cedo. Arrisco então descer a Serra do Mar para fazer reconhecimento da trilha. Aqui, dá para rolar essa pedra grande para fora do caminho, ali tem que cortar aquele tronco caído. Trazendo machado, enxada, alavanca de ferro e mais uns dois pares de braços, vai dar para passar de jipe, se vai!

Continuo descendo. Bananeiras e mais bananeiras, casal de passarinho preto e branco, perninhas vermelhas, nunca vi antes. A mata se abre em capoeiras e passo por duas porteiras. “Favor colocá a correnti”, num rabisco quase apagado, então obedeço. Nenhuma marca de pneu no chão, só casco de boi e ferradura. Nenhuma marca de sapato também. Passo pelo primeiro ranchinho: deserto. Já estou a meio caminho da baixada e ainda não vi ninguém. Melhor dar meia volta e subir antes que escureça. Vamos pernas, coragem, me levem para casa. Pausa para um gole d’água no regatinho de água fresca que vem cascateando esperto lá de cima e cruza a trilha. E sobe, e sobe, vamos pernas, um, dois, me levem para casa. A passagem para o lado de lá da serra aparece como um decote na mata da vertente. Chegando no alto, um suspiro e outra olhada demorada para a paisagem e para o silêncio.  Chego em casa no lusco-fusco. Bom trabalho, pernas, amanhã dou folga para vocês.

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Hoje fiz geléia de framboesa do mato. Botar um pouco menos de açúcar da próxima vez, mas ficou gostosa. Assisti o documentário The Blues, do Win Wenders, que Samara e Augustus me deram no aniversário. Nele descobri os pioneiros J. B. Lenoir, Skip James e Blind Willie Johnson. Não podia morrer sem antes saber quem foram eles. Agora à noite, enquanto escrevo, estou ouvindo meu I Pod ligado no som da sala, na altura que eu quero, direito que todo homem deveria ter pelo menos durante alguns dias no ano. Mutantes e Black Sabath, Tom Jobim e Sarah Vaughn, Credence Clearwater, Secos & Molhados, Adoniran e Django Reinhardt, tudo junto e misturado, muito bom.

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O toque sinistro foi que no meio da primeira noite acordei nem sei por quê e tinha uma coisa preta se mexendo em cima do meu peito. Morcego! #$%@&! Pulei da cama e fui buscar o tapete do banheiro para apanhar o bicho e jogar pela janela. Quando voltei o bastardinho tinha sumido. Revira coberta, levanta colchão, olha atrás do armário, dentro do sapato e nada. Vou até o espelho do banheiro e examino o pescoço, sabe lá? Depois vou dormir em outro quarto com a porta fechada.

No dia seguinte tomo providências que vinha adiando fazia tempo. Compro madeira, prego e um esquadro de marceneiro no armazém do Leir. Com ajuda do Batista, vedamos toda e cada fresta entre os caibros e as telhas do telhado em toda volta da casa. Sinto muito, morceguinhos, mas vocês ultrapassaram a fronteira da tolerância.

Via das dúvidas, prestem atenção quando eu passar na frente do espelho. E se eu parar de envelhecer ou um séquito de meninas adolescentes começar a andar atrás de mim, melhor munirem-se de gola alta, crucifixo e água benta quando estiverem comigo. Por enquanto, não estou dormindo de cabeça para baixo.

xxx
E uma última notícia antes de encerrar esta edição: acabo de ver passar um gambá pela varanda. Tadinho, agora vai ter que dormir ao relento.

Alto da Serra do Mar


sábado, 14 de janeiro de 2012

É nós no Face!


(Pois é, já estamos íntimos assim, eu e o Facebook, nos tratando por apelidos.)

Em meados de 2010 um amigo que mora no exterior me avisou por e-mail, (essa ferramenta hoje quase extinta fora do ambiente corporativo) que tinha postado umas fotos no FB. Eu tinha conseguido passar incólume pelo falecido Orkut. Aquela coisa orkutiana de depoimento, dizem, acabou com muito relacionamento. Achei prudente manter distância. Mas eu queria ver as fotos do meu amigo, então fiz minha página naquele que, então, já era o maior site de relacionamentos do mundo, mas que ainda era novidade por aqui. O Orkut, que só emplacou no Brasil, reinava então absoluto nessas terras tupiniquins.

Agora estou tentando olhar essa febre com o distanciamento necessário para uma visão crítica. Tá bom, eu admito; hoje não passo um dia sem checar minha página inicial. Mas isso tem me gerado um certo incômodo. Fui bastante liberal em adicionar amigos com a segunda intenção de divulgar esse blog, admito.

Sem dúvida, o Face tem o lado bom. Localizei antigos amigos de quem não tinha notícias havia anos, muitos com os quais eu cruzaria na rua sem reconhecer. Cabelos de menos, barriga de mais nos homens; senhoras louras nos seus cinqüenta, algumas delas vovós orgulhosas. Mas tem sempre um registro meio desbotado dos velhos e bons tempos no álbum de fotos para tirar qualquer dúvida. Aliás, como as pessoas estão sempre bonitas na foto do perfil, não? Também acontece de descobrir afinidades insuspeitas com pessoas com as quais eu tinha ou tenho mínimo contato no mundo real, a ponto de fazer surgir algumas boas amizades. Tem também compartilhamentos de vídeos interessantíssimos, garimpados por pessoas de bom gosto.

Mas tem o lado sinistro. Primeira constatação: tem muita gente desocupada nesse mundo de Deus. Gente que posta sem parar e, venhamos e convenhamos, não existe tanta coisa interessante assim para ser compartilhada. Uma enxurrada de abobrinhas para as quais eu não tenho paciência. Tem quem alardeie o óbvio, tipo, “hoje é segunda feira, que chato”, ou “fim de semana com chuva, ninguém merece”. Tem quem poste diariamente uma foto nova do pimpolho bonitinho que nasceu há três meses. Convenhamos também, depois de três meses nem nosso primeiro filho continua sendo novidade, quanto mais filho dos outros. Têm aqueles que, na falta de uma opinião original, compartilham aqueles quadradinhos de filosofia barata como se fosse uma revelação divina. Têm os rancorosos, os ressentidos, os sarcásticos e os felizes demais. Têm os que sempre disparam o comentário inteligente mais comum nessas páginas: o onipresente kkkkkkkkkkk... Desses, ainda prefiro os sarcásticos: em geral são mais inteligentes que a média. Por algumas das razões acima, às vezes com incidência em diversos artigos desse código penal, já excluí diversos da minha lista de amigos. Por falar nisso, alguém realmente acredita que tenha duzentos ou quinhentos amigos?

Parece-me que algumas coisas estão na base do sucesso do FB e de todos os sites de relacionamento. O mais óbvio é a necessidade de interação com o outro. Uma interação meio asséptica, onde acreditamos estar filtrando muito do que realmente somos para só mostrar o lado legal, divertido, interessante e descolado. Doce ilusão. As pessoas acabam revelando muito mais de si do que imaginam, mesmo quando pensam estar sendo comedidas. Isso para não falar dos que, virtualmente, põem a bunda na janela. Fotos sem camisa, de biquíni, com copos de bebida na mão, fotos da intimidade da família toda, da patroa, do maridão, dos filhos, de amigos e de lugares que freqüentam escancarados para um mundo de gente desconhecida ou semidesconhecida, nem sempre bem intencionada. Nem todos tomam os cuidados recomendados pelos especialistas, de só permitir acesso a certas informações aos “amigos”. Mas se são quinhentos “amigos”, de que valem esses cuidados? A prudência quase sempre cede diante de outra característica marcante no FB: o narcisismo puro e simples, a busca inconsciente da fama. “Que legal! Cinqüenta e dois curtiram o que eu postei e vinte e cinco compartilharam aquela abobrinha de segunda mão. Eu sou popular, afinal!”

Mas pode ser que enquanto nós estamos aqui interagindo virtualmente, sua esposa ou marido tenha ido dormir sozinho ou seu filho tenha desistido de esperar você largar o computador para dividir aquela angústia que tanto o está incomodando. Ele deve estar agora fechado em seu quarto compartilhando o assunto com os “amigos” do Face.

É isso. Se curtiu, compartilhe, viu? Kkkkkkkkkkkkkk...

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Araucárias no Planalto

Parece o planalto gaúcho, perto de Cambará do Sul

domingo, 1 de janeiro de 2012

Além do Country Club


Pois é. Aqui em Rio Bonito de Cima tem dessas ambivalências. A primeira vez que viemos, antes de comprarmos o sítio, ficamos hospedados na Cabritinha Vadia, improvável pub irlandês com meia dúzia de quartos por cima, encravado aqui nessa roça esquecida pelo diabo. Na época, ainda era do Ulf, o sueco, e da Regina, Deus a tenha. Depois do jantar,  um prato delicado e delicioso - frango ao molho de limão, filé ao molho de pimenta verde, goulasch ou outra delícia - sempre aparecia gente interessante para conversar e bebericar. “Tem três populações aqui”, ensinava o Ulf, “os passantes, os hóspedes e o country club, donos de sítios.” Na época, éramos da segunda categoria, e há nove anos somos da terceira.

Pois então, depois do jantar, lareira acesa, no aconchego de sofás de molas e de gravuras botânicas e do folclore sueco penduradas no madeirame rústico das colunas, o country club se revelou simpático e sofisticado. Parecia-me que eram todos habituées da Europa, muitos com períodos de residência no velho mundo. Eu, para não fazer feio, me esforçando na minha cultura geral de segunda mão para participar da conversa. Veja bem, não me pareceu que ninguém fosse esnobe, era cada um falando de suas experiências, não tinha cabimento omitir suas Londres, Paris e Vienas do assunto se eram essas suas vivências, enquanto as minhas praticamente se resumiam a Niterói e uma ida longínqua a Nova York. Se disserem que também estive em Assunção do Paraguai eu nego. Ano passado fomos pela primeira vez à Europa, França e Inglaterra, e na ocasião não me eximi de pensar: “Na próxima vou poder falar como chic e não ficar atrás”, vê se pode?

Só não me falaram que tem também a quarta categoria, a mais numerosa: são os da terra, nascidos e criados, os minhocas de Rio Bonito de Cima. Um Guerra e Paz completo de personagens, dramas e histórias, todos interligados por laços de parentesco. Só o Batista, nosso caseiro, tem mais dez irmãos, fora sobrinhos, tios, cunhados, primos e compadres, que abrangem quase toda a população do lugar, umas trezentas almas em busca da salvação, reunidas em torno da simpática igrejinha católica. Tem o Niltinho, que toca a venda na curva do rio, a Ângela, cozinheira e dona do restaurante de comidinha caseira nota dez. A Madalena, que tem o comércio misto de bar, venda e point da juventude local, que chega às noites de sábado a pé, de moto ou a cavalo para jogar sinuca, ouvir música sertaneja, ver e ser visto pelos solteiros do sexo oposto. Tem o Justino, motorista do caminhão da Prefeitura, o Dr. Armandinho, que resolveu a pendência de inventário de nosso sítio, o Leir, o Manezinho Bora, o Biscoitinho, o João Bobinho, a Magalona, o Zequinha, o Hercílio... Nosso sítio fica nas franjas do arraial e, ao contrário da maioria dos outros sitiantes, vamos a pé almoçar na Ângela e fazer compras no Niltinho ou na Madalena, o que nos proporciona muitos bons-dias e boas-tardes, um dedo de prosa aqui, outro acolá. Fora as consultas médicas em troca de muito-obrigado, dúzia de ovo caipira ou queijinho caseiro. Acaba que temos muito mais contato com esse Rio Bonito de Cima que com o outro. Já fomos até convidados para casamento da filha da Magalona com o filho do Justino, quanta honra, fora as comemorações de Nossa Senhora de Nazaré na igrejinha. Dois Rios Bonitos de Cima que pouco se misturam, bem Brasil.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Felicidade, essa bandida


Poucas coisas podem ser tão perniciosas quanto a felicidade. Eu, que tenho vivido sempre a perseguir essa quimera, agora, às vésperas de fechar o balanço de mais um ano, constato aliviado que grande parte daqueles votos de felicidade proclamados com maior ou menor sinceridade falhou miseravelmente. Que alívio!

Imagine alguém que enriqueça, ou, já sendo rico, que alcance toda a riqueza que tenha sido capaz de imaginar. Que tenha o amor e o corpo da mulher mais maravilhosa que possa ter desejado. Que seu time tenha sido campeão estadual, nacional e continental. Que não tenha sofrido nenhuma decepção, nenhuma ofensa, nenhuma dor física ou moral. Que tenha concretizado todos os seus sonhos e fantasias. Fosse eu o infeliz objeto de tanta felicidade, por certo não veria o alvorecer de 2012, pois antes do foguetório e do champanhe meteria uma bala nos miolos.

Pois que felicidade demais amolece o corpo e o caráter, e a insatisfação é a mãe de todas as artes. Imagine amanhecer a cada dia completamente feliz, sem qualquer inquietação, nenhum incômodo no corpo ou na alma. Quem se disporia a sair da cama? Que louco iria pôr a vontade, o engenho e os músculos a funcionar para tentar melhorar o que já é ideal?

Graças ao bom Deus, a Felicidade não me atingiu. Pequenas felicidades sim, algumas se demorando um pouco, outras ariscas como passarinho da mata. Posso me aproximar do ano novo pleno de insatisfações comigo próprio e com o mundo. Então, vou pegar no armário aquelas esperanças amarrotadas, rotas e verdesbotadas, amarrá-las no pescoço e sair na primeira chuva do ano abraçando e beijando meus semelhantes insatisfeitos, desejando um feliz 2012. Mas, no fundo, torcendo que não sejam tão felizes assim, deixando espaço para um 2013 melhor.

E vamos que vamos!

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Absolutamente

Concessão inédita, publico no blog texto alheio. Vão entender o porquê: Marly Riva, quase oitenta, é talento sensível e arisco, alma de passarinho. Diz que não acredita na beleza de seus cantos. É minha colega nas tardes-noites da Oficina de Textos. Cantou este conto que estava escondido, mas que dou a público neste blog.


Absolutamente

Quando saímos, mãozinha gorducha apertada à mãozona confiável de papai, soprei um fio de voz: “E se eu tiver que deixar o colégio?”

Papai passou pro outro canto do beiço o cigarro que enrolara havia pouco, lacônico: “Absolutamente!”

Perdi-me, em meus nove anos, acostumada a tudo esperar da magnitude paterna. Insisti: “Ela vai brigar, reclamar ou ser boazinha?”

O pai: “É comigo.”

Que caminho longo, doído. Minha cabeça mexia aflita. Desconhecidas ruas, nem era longe, os outros me pareciam estranhos, todos alegres, sem medo do futuro.

Lembro esparsamente do diálogo entre meu pai e a dona do colégio. Ele curto, seco, quase superior: “Vou ficar atrasado com o pagamento, é a primeira vez, saldo quando puder. Problema?”

E ela: “Absolutamente!”

Saí confusa, mas confortada. “Pai, não terei que sair do colégio? Ela disse sim ou não?”

E ele: “Absolutamente!” E enrolou outro cigarro.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Aquarela


No início de 2011 comecei a freqüentar aulas de aquarela por sugestão de minha filha mais velha e, depois, meus dois outros filhos juntaram-se a nós. O professor é Renato Alarcão, ilustrador muito conhecido e respeitado entre seus pares e que mora aqui pertinho, em Niterói. Depois de anos sem tocar nos pincéis, era a oportunidade de tomar contato com a aquarela, um meio bem mais complicado que a pintura a óleo. Uma definição me escapou outro dia: pintura a óleo é como operar uma máquina, enquanto a aquarela é como conduzir um rebanho: os pigmentos diluídos em água têm vida e decisões próprias. O melhor que você pode fazer é conduzir a tinta e antecipar, com alguma expectativa de acerto, o que ela vai decidir fazer sobre o papel. E cada  pigmento tem seu próprio temperamento: transparência, permanência, capacidade de aglutinar ou fundir com o vizinho de outra cor e outras idiossincrasias.

Essa tem sido uma grande oportunidade de conhecer gente bacana e interessante, com cabeças e esforços voltados para os mais diferentes objetivos, como padronagens para tecidos, ilustração de livros infantis, vinhetas para vídeo e TV, história em quadrinhos e graphic novels. Conversar e conviver com pessoas de áreas tão diferentes é tão bom e interessante quanto aprender aquarela.

Cheguei pensando em fazer paisagens, mas não fiquei imune à convivência com os ilustradores. A gente como que se contagia. Decidi que já dá para mostrar alguma coisa. Então, dêem uma olhada aí embaixo.

Segue também o link do mestre e amigo Alarcão:
Kurazo e seu mascote

Dancing Queen