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sábado, 22 de fevereiro de 2014

Homo pouco sapiens

Você pagaria por uma bolsa Prada sem etiqueta?
Existe uma lâmpada de filamento incandescente, tipo aquelas comuns com bulbo de vidro que tínhamos até há pouco tempo em nossas casas, que está acesa quase ininterruptamente no Posto Número 6 dos Bombeiros na cidade de Livermore, norte da Califórnia, desde 1901. Foi concebida e fabricada por Adolphe Chaillet, que a batizou de “lâmpada do centenário” (centennial bulb). A fábrica da centennial bulb fechou poucos anos depois de sua fundação, enquanto as lâmpadas incandescentes comuns suas concorrentes, que queimam em média após um ano de uso, continuaram a ser fabricadas por de mais de cem anos, dando emprego a milhares mundo afora, recolhendo muitos milhões em impostos e enriquecendo donos e acionistas da indústria de lâmpadas.

As lâmpadas, assim como quase tudo que a indústria de massa produz e nós compramos, saem de fábrica com o que se chama de “obsolescência programada”, ou seja, são propositalmente projetadas para estragar em curto período de tempo. Da mesma forma, a indústria da moda determina que aquela roupa em estampa floral linda que você comprou neste verão não estará mais em moda no próximo. Não que a roupa que será lançada para o próximo verão vá ser mais bonita, mas há de ser necessariamente diferente. Caso você insista em continuar usando a mesma por dois ou mais anos, há grande chance de você vir a se sentir desconfortável quando todas as suas amigas estiverem usando tecidos com cores fosforescentes, por exemplo, caso a indústria decida que cores fosforescentes passarão a ser o must da próxima temporada primavera-verão.

Assim como a roupa, os carros poderiam ser construídos mais resistentes ao desgaste e à ferrugem. Você pode querer ir contra a corrente, fechar os olhos às mudanças cosméticas e o contínuo acréscimo ano a ano de diversos “pra que isso” nos modelos novos, e manter seu carro em uso por, digamos quinze ou vinte anos. Mas vai então se deparar com o preço absurdo das peças de reposição. Já se calculou que, se alguém resolvesse comprar um automóvel desmontado peça por peça no balcão da concessionária, este custaria 70 vezes mais caro que o carro pronto na loja.

Nossa sociedade industrial está inteiramente apoiada neste mecanismo de produção cada vez maior, com consumo progressivo de matérias primas e de energia, o que tem como consequência mais impacto sobre o meio ambiente. Governantes enchem o peito quando podem anunciar que o PIB (produto interno bruto) cresceu tantos por cento ao fim de cada ano. Todos comemoram, as bolsas de valores sobem, o empresariado fica otimista, os bancos emprestam mais dinheiro e o povo sente-se encorajado a consumir mais e a endividar-se. Caso contrário, se a economia passa um ano produzindo exatamente a mesma quantidade de bens e serviços que havia produzido no ano anterior é um deus-nos-acuda. Num país onde a população esteja em crescimento, entende-se a necessidade de se aumentar a riqueza a ser dividida entre um número crescente de pessoas. Porém, mesmo em países ricos com população rica, estável ou decrescente como Itália e Japão, a estagnação do PIB pode derrubar governos.

Afinal, onde queremos chegar? Enriquecimento crescente e sem limite é um objetivo razoável para atrelarmos nossa sociedade humana? Para atrelar nossa vida particular?

Infelizmente, mesmo as camadas mais pobres e menos esclarecidas acreditam que o caminho é esse. Dentre as muitas motivações atribuídas aos recentes "rolezinhos", uma delas era o desejo dos jovens da periferia de consumir como as pessoas no alto da pirâmide social e ostentar coisas como correntes grossas de prata, bonés, tênis e jeans de grifes caras, muito mais caras do que seria razoável para o orçamento apertado de seus pais. Fiquei chocado assistido mais de uma entrevista desses pais mostrando o guarda roupa recheado de roupas caras de seus pimpolhos, contando com orgulho como eles se sacrificavam em horas extras para poderem proporcionar aos filhos a oportunidade de se destacarem na turma. Vivemos uma cultura de ostentação em todos os níveis sociais, cada classe ostentando como pode, seja com um correntão de prata e um boné de grife, seja com um carro de 220 cavalos que custa centenas de milhares de reais.

Os governos socialistas acreditam que suprindo as necessidades básicas para que o cidadão e as famílias possam viver com dignidade a criminalidade reduz-se necessariamente. Esta crença baseia-se na premissa de que o pobre, como um bom selvagem, pratica o crime unicamente para atingir condições dignas de vida. Não é isso que a prática demonstra, a meu ver. Apesar de nos últimos anos dezenas de milhões de brasileiros terem deixado a pobreza e a miséria, os índices de criminalidade não param de subir, constatação que deve deixar os mentores intelectuais desses governos intrigados, decepcionados e com um mal disfarçado sentimento  de serem vítimas de ingratidão popular. Vide também o exemplo da Venezuela onde, apesar das políticas populistas, a criminalidade ascendeu ao nível mais alto da América Latina. Não acredito que a motivação maior para o crime seja a fugir da pobreza, em especial numa sociedade como a nossa, que dá oportunidades legais para isso. Vivemos em pleno emprego e, apesar das dificuldades, existe mobilidade social no Brasil. Mas o que muitos daqueles que enveredam pelo crime desejam é se destacarem através do consumo e da ostentação. E o crime e a impunidade acenam como um atalho interessante em comparação com o trabalho árduo e o estudo.

Ostentar e utilizar-se de objetos para sinalizar posição elevada na sociedade não é coisa recente. As pirâmides nada mais são do que pedras  colocadas sobre um defunto para que seu corpo não seja devorado por animais carniceiros. Os nobres egípcios queriam que seu monte de pedras fosse mais alto, e mais alto, e mais alto. Deu no que deu. Pura ostentação. Pirâmides são assombrosas de se ver, mas de sentido prático no mínimo discutível.

A indústria sabe muito bem que não compramos apenas o que nos é necessário. Compramos para sinalizar, para passar uma mensagem simbólica sobre quem somos, no que acreditamos, quais são nossos valores, qual nosso poder aquisitivo. Pode-se comprar uma picape “big foot” de consumo escandalosamente antiecológico de combustível, ou mel de agave mexicano mais plâncton enlatado da Antártica. Dois exemplos de coisas pouco práticas, para não dizer irracionais, que são vendidas para pessoas que se dispõem a pagar muito caro para passar sua mensagem aos outros. No caso, mensagens opostas em certo sentido. Um anúncio de um automóvel Jaguar pode aparecer em um veículo de comunicação destinado a pessoas que nunca terão meios para comprar um deles. Mas a ideia por trás daquela foto clean de uma mulher linda diante do carro, coberta de joias caras e fazendo aquele olhar entediado de “eu não sou para o seu bico” é justamente sinalizar que a marca é para poucos. Essa atribuição de exclusividade permite que o automóvel, independente de suas atribuições técnicas objetivas, possa ser vendido com lucro percentualmente muito superior ao obtido pela venda de um modelo popular.

Mesmo os carros populares podem servir como sinalização de status. Há pouco acompanhei o caso de um casal classe C, cujo sonho declarado era construir mais um quarto em sua casinha, para que os dois filhos pudessem deixar de dormir na sala. Um belo dia vieram me contar orgulhosos que tinham acabado de trocar seu carro 1998 por outro com um ano de uso, pagando na troca um valor que teria sido mais que suficiente para ampliar a casa. Não conseguiram entender a minha reação de espanto e decepção.

Há os que argumentam que os itens mais caros são de melhor qualidade. Mas que mulher compraria uma bolsa Prada ou Louis Vuitton, mesmo com um desconto razoável de, digamos, 15 por cento, se ela viesse sem qualquer identificação externa e bem visível da marca?

Todos entendem o quanto de dinheiro custam estes símbolos. Poucos se dão conta do custo do dinheiro gasto. O dinheiro pode ser muito caro. As horas adicionais que trabalhamos para pagar o cartão de crédito, as responsabilidades extras que assumimos no trabalho, os cursos de pós-graduação noturnos a que nos sujeitamos apenas com o intuito de galgar mais um ou dois degraus na carreira, a disponibilidade sete dias por semana para o trabalho, mesmo nas horas que deveríamos dedicar exclusivamente à família, ao convívio social desinteressado e ao ócio criativo têm um valor muito elevado, que talvez não valha o dinheiro que nos dão em troca.

O Lama budista brasileiro Padma Samten gosta de provocar nesta matéria dizendo que se as pessoas trabalhassem trinta por cento menos e gastassem cinquenta por cento menos elas teriam tempo e dinheiro sobrando.

Há alguns anos decidi que já tinha mais do que o suficiente, em termos materiais, para ser feliz. E que se acaso eu não fosse feliz não seriam mais bens materiais que iriam me trazer felicidade. Gosto de sinalizar para mim mesmo e para os outros essa decisão e essa crença. É um exercício de racionalidade no consumo, mas também funciona como uma piada ideológica. Nossa torradeira, uma brava Faet (não estou bem certo, pois a marca impressa já se apagou há muito tempo) tem 29 anos de uso ininterrupto. Recentemente a salvei mais uma vez do lixo trocando o fio fraturado da tomada. Nosso automóvel tem treze anos de idade (doze conosco), e 214 mil Km rodados. Tenho apenas um relógio, um bom modelo suíço, simples e de aço, que fica bem tanto em um casamento como na praia. Meu celular é um minúsculo Nokia todo descascado, que me acompanha há cinco anos, não faz volume no bolso, não quebra quando cai e funciona perfeitamente. Talvez por isso eu possa me permitir não trabalhar a partir de sexta depois do almoço, ter tempo para escrever este artigo, pintar aquarelas e ler boa literatura sem ter que esperar pela aposentadoria. Gosto de trabalhar, mas gosto de fazer muitas outras coisas também.

Não sei o que aconteceria com a economia global se todos decidissem consumir 20 por cento menos de um dia para o outro. A Natureza agradeceria muito. Provavelmente as editoras venderiam mais livros, os cinemas, as praias e os parques teriam sua frequência aumentada. A indústria automobilística, entre outras, sofreria um baque que geraria demissões em massa. Mas talvez isso fosse compensado por um aumento no número de empregos nas atividades de lazer. Não descobri até hoje nenhum estudo sério sobre a matéria e aceito indicações.

Para terminar: Uma manhã dessas atendi Dona Luzia, uma paciente negra e bem humorada em seus setenta e poucos anos. Não lembro bem porque, ela começou a me contar sobre sua infância passada no sítio dos avós, numa aldeia no município fluminense de Silva Jardim. “Minha avó plantava arroz, milho e feijão. Tínhamos horta, criação de galinhas, porcos e duas ou três vaquinhas. Fome, nunca passamos. A criançada não tinha brinquedo, a não ser uma bruxa de pano que vovó fazia e bonecos que inventávamos com sabugo de milho e uns gravetos que espetávamos neles. Brincávamos de pique, de esconde-esconde, pescávamos no rio e subíamos nos pés de fruta com canivete no bolso. Acho que éramos pobres. Mas a gente não sabia disso e era feliz.”

* O livro "Darwin Vai às Compras", de Geoffrey Miller, traz muitos outros insights interessantes sobre as motivações do consumo.

3 comentários:

  1. Ótima reflexão! Eu costumo dizer que não funcionamos bem coletivamente (em nível macro) porque não funcionamos bem individualmente (nível micro). E nem percebemos que o que fazemos cria todos esses problemas que vemos manifestados no mundo. É uma questão de consciência mesmo.

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