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sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Flores para a outra

Sexto andar. Caminhei pelo corredor mal iluminado, atravessando cheiro de tempero, som de frigideira no fogo e de criança chorando, até me ver diante da porta do 607. Dez apartamentos por andar, quitinete com certeza. Prédio simples de pessoas simples. Olhei de novo para aquele enorme buquê de flores em meus braços. Sofria agora mais de uma curiosidade doentia do que exatamente de raiva. Dei-me conta de que a cena a seguir seria inescapavelmente ridícula, mas o folhetim agora comandava o espetáculo. Recuar não era mais uma opção; se a raiva havia me trazido até aqui, agora era o desejo insano de saber quem era ela que não me permitia voltar atrás. Uma personal trainer jovem e durinha? Alguma secretariazinha vinda do interior? Uma jovem estagiária de direito? Como quem salta pela primeira vez de um trampolim alto demais, respirei fundo e toquei a campainha. Um cachorrinho latiu freneticamente atrás da porta.

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Meia hora antes eu saía de um cartório na Rua do Carmo, no Centro do Rio. Ainda era cedo para o almoço, então resolvi aproveitar a manhã fresca para caminhar pelo Centro, coisa que, antes de me aposentar do Ministério da Cultura, fazia com prazer e frequência. Parei defronte à livraria na Travessa do Ouvidor e fiquei olhando a vitrine temática. Era início de junho, semana do dia dos namorados, e o tema era romance, amor e ciúme. Uma edição nova dos livros de Nelson Rodrigues era destaque. Pensei em entrar, mas decidi caminhar até o Largo de São Francisco para garimpar nos sebos alguma edição antiga e ilustrada sobre orquídeas, a atual paixão de Norberto. Depois poderia ligar para ele no escritório, fazer uma surpresa e convidá-lo para almoçarmos juntos. No caminho, subindo pela Rua do Rosário, parei na livraria Kosmos para examinar algumas das preciosidades da vitrine. Por acaso virei a cabeça rua acima em direção ao Mercado das Flores e vi meu marido. Ele escolhia cuidadosamente rosas cor de chá, uma, duas dúzias, calculei, e depois as entregou ao vendedor, orientando quanto às outras florezinhas e folhagens que comporiam o buquê. O coração aos pulos, controlei a vertigem e entrei na livraria para acompanhar a cena por detrás da vitrine. Depois de escrever um cartão e pagar, Norberto desceu em direção à Rio Branco, passando sorridente bem defronte de onde eu estava, os lábios contraídos assoviando baixinho alguma melodia inaudível, como fazia sempre que estava feliz e despreocupado. Rosas cor de chá. Ele nunca me dava flores, achava desnecessário. Se um dia me desse, eu deveria desconfiar de traição arrependida, brincava.

Saí e acompanhei suas costas se afastando, largas e vulneráveis, rua abaixo. Rosas cor de chá. Voltei resoluta e entrei loja adentro. Identifiquei o buquê atrás do balcão, agarrei-o e saí para a rua sem dar atenção aos protestos do vendedor que me seguiu agitando os braços por alguns metros e depois desistiu: já estava pago, prejuízo não teria, aquilo era confusão de ciúme, mais seguro deixar pra lá. Andando o mais rápido que os saltos altos me permitiam, invadi o táxi parado na esquina. “Para onde, madame?” Arranquei o envelopinho branco grampeado no celofane e li no lado de fora o endereço, uma rua do Catete, a letra dele. E o cartão? Haveria um nome, um nome que não era o meu e uma declaração melosa, não condizente com um homem de idade grisalha? Alguma obscenidade de fauno tardio? O cartão saiu do envelope com as letras voltadas para baixo. Virei devagar. “Débora, nunca poderei lhe agradecer o bastante por toda a felicidade que tenho no amor. Feliz aniversário. Betinho.” Aquelas palavras me causaram um estremecimento, levando de enxurrada qualquer esperança que eu ainda tivesse de que tudo não passasse de um mal entendido, alguma obrigação profissional, o aniversário de alguma tia obscura. Mas não havia nenhuma “tia Débora”. Débora não era nome de tia, era nome de mulher, com todos os significados que um homem pode atribuir a essa palavra. Uma outra mulher. Mas por quê? Tantas vezes ou ouvira amigas dizendo que os homens são todos iguais e, mesmo concordando em palavras ou sorrisos cúmplices, guardava apenas para mim a certeza de que nem todos são iguais, Norberto não era igual. Não era. Até hoje. Seria eu assim tão ingênua? O fato de, depois de vinte e seis anos de casamento, ainda termos relações sexuais intensas e apaixonadas, não tão frequentes, é verdade, mas talvez mais intensas do que no início de nosso relacionamento, não significariam nada para ele?  Será que nossa parceria, nossa cumplicidade, nossa capacidade de fazer rir um ao outro não seria capaz de blindar a nossa relação contra a volubilidade das atrações físicas? Nem com toda a minha disciplina e suor das horas e horas semanais que eu dedicava ao spinning e à musculação? Eu era uma coroa em forma, mesmo considerando as marcas inescapáveis do tempo na pele e nas linhas do rosto. Mas nada disso tinha sido suficiente, então. O fantasma da infidelidade havia finalmente se materializado em nossa vida. Por um momento desejei ter sido menos honesta nas diversas vezes em que fora assediada nesses anos de casamento, ter praticado alguma forma de vingança preventiva, ter ficado com algum saldo na conta da infidelidade para que servisse de lastro agora. Bobagem. Teria carregado a culpa sem nunca ter certeza de que receberia o troco. Eu, pelo menos, tinha apostado no nosso amor. Se ele não fizera o mesmo, pelo menos seria eu a sair disso tudo com alguma superioridade moral. Ele seria apenas mais um medíocre como todos os outros homens. Mas subitamente voltei a me lembrar de que havia o terceiro vértice do triângulo. Outra mulher. A imagem de mil mulheres fundiu-se diante de meus olhos em uma única imagem arquetípica de fêmea primal. Aquela que todas as mulheres temem a existência, mas afastam a ideia do pensamento. Talvez alguém que já me tivesse sido apresentada, alguns homens têm um prazer calhorda em ver as duas trocando beijinhos amistosos. Em alguns minutos essa mulher, Débora, passaria a ter um rosto, a ter corpo, a ter voz. Alguém que eu culparia pelo resto da vida pelo fim de meu casamento. Falta pouco, Débora. Me aguarde.

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Ouvi passos, depois diversos ferrolhos e fechaduras sendo destrancados. A porta se abriu um pouco, retida ainda por uma corrente de segurança. “Pois não?”

Não era nenhuma jovem atrás daquela porta, mas uma senhora de cabelos pintados de um vermelho francamente artificial, presos por grampos enfiados com descuido. Só então me dei conta de que dificilmente encontraria a outra em casa no meio da manhã, que idiota era eu. Mas só me restava ir em frente.

“É aqui que mora a Débora? Essas flores são para ela.”

“Débora? É, ela também mora aqui, de certa forma. E quem manda as flores?”

Ela estava desconfiada, com certeza, afinal são tantas as notícias de mulheres idosas roubadas e agredidas dentro de suas residências. E não havia porque eu mentir agora.

“O Norberto. Pelo aniversário da Débora.”

Ela abriu bem os olhos e olhou-me de cima abaixo, sem conseguir disfarçar a surpresa.

“Então você deve ser a Sandra, não?”

Assenti com a cabeça, e ela então abriu a porta.

“É melhor você entrar. Não repare a bagunça, estou no meio da arrumação.”

Apanhou um cigarro já aceso no cinzeiro sobre a mesa de centro e deu uma tragada, apontando uma poltrona gasta com panos de tricô nos braços e no encosto. O cãozinho velho, de olhos esbranquiçados pela catarata, cheirou meus pés e minhas pernas e depois pulou para cima do sofá.

Ela sabia meu nome, sabia quem eu era. Seria alguma tia ou a mãe da Débora, com certeza. Norberto já devia ser íntimo daquela salinha simplória, devia ajudar com as despesas. Aquele televisor novo de tela plana que destoava do resto da mobília deveria ser presente dele. Tudo tão clichê.

“Posso?” e ela estendeu os braços em minha direção. Levei alguns segundos para entender que ela pedia as flores. Ela olhou-as com carinho, quase as acariciando. Leu o cartão que eu havia colocado de volta dentro do buquê e levou as flores até a pia da cozinha conjugada. “Mais tarde eu arrumo na jarra.” Depois se arriou pesadamente no sofá e ficou coçando as costas do cão, como quem procura as palavras certas. Deu outra tragada e olhou para mim, fitando-me demoradamente.

“Sempre imaginei como você seria pessoalmente. Você é bem bonita. E tem muita sorte. O Norberto é um homem como poucos.”

A essa altura eu estava completamente desorientada. “E quem é a senhora?”

“Meu nome é Janete. Mas já fui Débora há muito tempo atrás. O Betinho ainda me chama assim. Se você leu o cartão deve estar bem confusa e assustada. Pode relaxar, querida. Vou lhe contar uma história. Na verdade, eu conheci o Betinho quando ele ainda era bem jovem, um garoto magrelo e assustado. Veio pela mão do pai, o velho Norberto. Você chegou a conhecê-lo? Não? Pois bem, ele era um cliente certo quando vinha lá de Campos para resolver seus negócios na capital. Ele era fazendeiro de cana, dono de engenho, muito rico. Aqui no Rio, sempre batia ponto na Casa Rosa lá em Laranjeiras. Eu era sua favorita e era bem bonita, bonita como você nem é capaz de suspeitar olhando essa carcaça velha aqui. Pois então, um dia o velho Norberto trouxe o filho, que era “para iniciar ele nos assuntos de amor”, como ele disse. Queria que ele fosse comigo, que eu lhe ensinasse as coisas que um homem deve saber. Não era novidade aquele tipo de pedido para mim. O Betinho tentava estufar o peito, tinha os pelos ralos por cima da boca crescidos, mas tremia por dentro e suava por fora. Peguei ele pela mão e levei-o para dentro. Quando voltamos, o pai me chamou no canto e perguntou: “E então?” Eu disse: “Não sei que raio de instrução esse menino recebeu, mas ele agiu como quem enfia um naco de carne no espeto. Não levou três minutos. Uma lástima, tem que aprender tudo do começo.” O velho coçou o bigode pensativo por um tempo. Depois disse que Betinho viria para o Rio dali a algum tempo para estudar Direito. Resolvi então lhe propor uma coisa. Se ele me pagasse um fixo por mês eu poderia introduzir o garoto nas artes do amor, coisa bem diferente de fazer sexo. Faria dele um homem. Mais que isso, faria dele um amante capaz de prender uma mulher sem precisar vigiá-la ou pôr coleira. O velho aceitou o negócio. Betinho veio morar ali por Botafogo e vinha até a Casa toda quinta feira, depois da aula. Durou alguns meses, até que eu disse “Você está pronto, já é um homem.” Depois fiquei muitos anos sem vê-lo.

Ela ficou com o olhar perdido em algum ponto do lado de fora da janela com um leve sorriso no canto da boca. Deu outra tragada no cigarro e levantou-se.

“Vou botar um café para passar, só um minutinho, meu amor.” E dirigiu-se para a pia da cozinha. Os quadris eram largos, mas a cintura ainda era fina e persistia um leve gingado no andar, apesar dos chinelos baixos. Tentei olhar aquela silhueta com olhos de arqueóloga, e não me foi impossível imaginar o quanto ela deveria ter sido bonita. De lá ela continuou:

“Há uns quinze anos atrás o Betinho me achou aqui, não sei como. Deve ter sido trabalhoso. A gente pensa que não deixa pistas, mas é engano. Ele me contou sobre você e os filhos, como vocês eram felizes, como ele amava você. Ele achava que me devia algo por isso, sei lá. Depois daquele dia nunca mais o vi. Mas desde então recebo rosas no dia de meu aniversário, doze de junho. Dia dos namorados. Engraçado, não? Parece coisa do destino. Dia dos namorados.”

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Isso aconteceu há cinco anos. Norberto teve um infarto fulminante há três. Sofri muito e ainda sofro a falta dele. Mas não maldigo a sorte, poucas mulheres foram tão felizes com seu homem como eu fui. Depois daquele dia no Catete, nunca mais revi a Débora. Ela não sabe que Betinho morreu. Continua a receber rosas no Dia dos Namorados.

4 comentários:

  1. Norberto, Débora e Sandra!!! Porreta estes três!!! Muito bom!!!
    Samara

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  2. Achei sua melhor crônica ! Parabéns amigo! Chrys

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  3. Nossa! Quanta criatividade, você escreve bem.
    Viajei no tempo com a sua crônica e me emocionei no final.
    Parabéns!
    Liane

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