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terça-feira, 8 de outubro de 2013

Obrigado, Nick

Como todas as cidades pequenas no litoral ao sul de São Francisco, Morro Bay tem uma marina. A marina de Morro Bay, como tantas outras à beira do Pacífico, tem restaurantes de frutos do mar, vento frio, gaivotas gritando sem parar, pelicanos alisando as penas e leões marinhos fazendo barulho enquanto pegam um solzinho sobre as pedras do quebra-mar. E, claro muitos barcos atracados no píer: de turismo, de lazer e de pesca, grandes e pequenos.

Era de tardinha. Eu e Suely passeávamos despreocupados, tirando fotos, curtindo a vista e o sol poente. Então, demos com o monumento. Bem, não era exatamente um monumento. Na verdade, ele nada tinha de monumental. Fundido em bronze, está aparafusado no calçadão bem defronte ao atracadouro. Não faz loas a ninguém que tenha liderado exércitos e, de forma heroica, esmagado inimigos numericamente superiores. Não homenageia nenhum político ou estadista, nenhum grande artista. Ninguém que tenha feito uma grande descoberta científica ou mudado o rumo da História. Ele apenas rende homenagem e pretende estender para gerações futuras a lembrança de Nick, um mecânico de barcos.

Estávamos admirando e fotografando a escultura quando o dono de um dos barcos, nos seus sessenta e muitos, pele avermelhada de sol, cabelos e bigodes fartos e brancos, se acercou de nós e, sem que pedíssemos, nos contou sobre Nick: “Pau para toda obra, para ele não tinha tempo ruim. Sempre disponível, sempre bem humorado, ótimo mecânico e ótimo caráter. Se você o tivesse conhecido entenderia a homenagem”, disse.

A escultura em bronze reproduzia não Nick em si, mas o banco surrado de sua pick-up em todos os detalhes: os gomos do estofamento, a logomarca da Ford no encosto, o forro rasgado do assento, a espuma aparente e gasta do lado do motorista, que o traseiro e as coxas de Nick esculpiram lentamente ao longo de anos de idas e vindas entre sua casa, as lojas de peças e o píer.  Algumas molas começavam a dar o ar da graça através da espuma puída. Do lado do carona descansavam peças, ferramentas, latas de graxa e de óleo. No encosto, uma placa dizia apenas “Obrigado Nick, 1946 – 2008”. A escultura fora encomendada por seus antigos clientes a um artista local, que usou como molde o banco original da pick-up, cedido pela família do falecido. Num mundo de tantas homenagens faraônicas a personalidades controversas, como “Ponte Presidente Costa e Silva” ou “Rodovia Presidente João Goulart”, aquela destoa. Não foi encomendada pelo Estado, não tem intenções ideológicas nem corporativistas, não pretende puxar o saco de poderosos. Apenas homenageia um cara legal.


Fiquei imaginando como seria Nick: macacão surrado, boné encardido, tênis ou botinas velhas, talvez uma barba grisalha por fazer, cheirando a graxa, óleo diesel, maresia e peixe. Seu rosto se iluminando ao ver um grande motor central voltando a girar, roncar e soltar fumaça depois de ter suas engrenagens abertas e retificadas por seus dedos calosos de unhas encardidas. Imaginei-o no fim do dia tomando uma cerveja com seus clientes em um daqueles bares, riso frouxo, ouvindo histórias de mar e mentiras de pescadores, comentando a temporada ruim de seu time de futebol ou de baseball antes de ir para casa. Ou talvez embarcando no meio da noite para socorrer um barco a deriva no meio do Pacífico. Uma alma elevada, humilde e gentil. Lembrei-me de Donald Shimoda, o mecânico, aviador e messias nas horas vagas, do livro “Ilusões”, de Richard Bach. Talvez ele fosse isso mesmo, um messias que se revelou a um pequeno grupo de pescadores. Ou talvez fosse apenas um cara legal. O mundo precisa menos de heróis e estadistas, e mais disso: caras legais. Obrigado Nick.

4 comentários:

  1. Maravilhoso,Ralph!
    Algo assim eu vi em um porto pesqueiro da Dinamarca.O raivoso mar do Norte ceifa muitas vidas e eles bolaram um monumento aos que assim se foram: trata-se de uma parede em forma de círculo onde, se você gritar o nome do seu ente perdido, o eco responderá.Os nomes estão também escritos na parede.Coisas de gente do Mar,chego a me arrepiar....
    Rocha

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  2. Ralph,
    amei! Também fiquei imaginando o Nick, e adorei
    sua comparação com o mecânico do livro "Ilusões".
    Mais uma vez parabéns!
    Rosário

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  3. Também fiquei imaginando como seria o Nick!
    Porém, considerando que não o conheci e nem o conhecerei, continuarei erguendo meus monumentos aos caras (e às caras) legais que eu encontrar pelo meu caminho. Acho que já conheci alguns (algumas). Espero conhecer muitos (muitas) mais...
    Por aqui: Thanks, Ralph! ;-)

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  4. Bonita homenagem dos amigos dele. Sem falar na sua crônica que, em si, é também uma maneira de celebrar valores como a camaradagem, a ética profissional, a amizade.

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