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sexta-feira, 19 de julho de 2013

Coisificar o Outro Justifica Nossa Violência

Uma forma eficaz de anestesiar nossos escrúpulos e nossa consciência é coisificar o outro. Na contramão, ao nos permitirmos nos ver na pele do outro, somos instados a sentir compaixão. A partir do nascimento de meus filhos, as notícias sobre abuso ou violência contra menores, infelizmente tão corriqueiras na imprensa, passaram a ter conotação muito mais dramática para mim. O choro de mães e pais que perdem seus filhos passou a ser dolorosamente compreensível, a dor do outro, de uma forma incômoda, tornou-se próxima e palpável.

Ao longo da História, ver o outro como uma categoria à parte, não reconhecível como humana, tem sido uma estratégia muito bem sucedida para anestesiar as consciências e endossar a barbárie do homem contra o homem. Este truque justificou a escravidão dos povos bárbaros do norte da Europa pelos romanos, a escravidão dos negros africanos pelos brancos, a captura e a venda de negros africanos escravizados por outros negros africanos de tribos distintas. Justificou genocídios como o dos hutus contra os tutsis em Ruanda entre 1994 e 1995 - onde meio milhão de seres humanos igualmente africanos e igualmente negros foram chacinados - e o holocausto judeu pelos nazistas. Permite que vascaínos matem flamenguistas e corintianos matem palmeirenses (e vice versa). Tudo justificado por uma artimanha perniciosa de nossa consciência: Coisificamos o outro e ele deixa, então, de ser humano como nós. Aos olhos do torcedor fanático, o torcedor do time adversário não é alguém como ele; talvez nem seja um ser humano. O soldado adversário na mira do fuzil não é um ser humano, é um inimigo. O pobre diante da arma do policial não é um ser humano, é um bandido. E assim temos nos permitido violentar, massacrar, torturar, causar dor, exterminar e escravizar outros seres humanos. Alguém que tenha acabado de torturar outra pessoa pode ser capaz de afagar carinhosamente um cão logo em seguida, pois se identifica mais com o cão do que com o torturado. Hitler amava seus cães.

Embrenhei-me nessa divagação em função das recentes cenas de violência e agressão contra pessoas e contra o patrimônio de pessoas, e, principalmente, com as diferentes reações em relação a elas. As pessoas parecem dividir-se em duas trincheiras opostas: as que execram os vândalos (com ou sem aspas, como queiram) e exigem mais rigor na ação da polícia contra os manifestantes; e os que justificam e intimamente aplaudem o vandalismo e a violência, inclusive as agressão contra policiais e contra o patrimônio público e privado. Este grupo justifica seu ponto de vista no histórico (real) de violência policial contra os menos favorecidos.

Em sociedades divididas, o que tem sido muito mais a regra que a exceção ao longo de nossa caminhada como civilização, o aparato militar e policial tem sempre sido utilizado pelos detentores do poder na defesa de seus próprios interesses políticos e econômicos. E as regras quase sempre têm sido ditadas pelos poderosos da vez no sentido de proteger seu status quo. Sociedades mais igualitárias nunca são fruto de rasgos de generosidade das classes dominantes, mas sim da organização e da pressão das classe menos favorecidas no jogo pelo poder. Estas, lamentavelmente, quando o conquistam, muitas vezes passam a reproduzir os mesmos vícios dos apeados do comando, no sentido da manutenção de seus privilégios recém adquiridos. A história recente do Brasil está aí e não me deixa mentir.

A polícia reprime os vândalos porque eles são violentos. Os vândalos agridem e destroem em represália à violência da polícia e de seus comandantes. Olho por olho, dente por dente, e vamos todos cedendo terreno em nossas consciências e justificando e aplaudindo a violência de um lado ou de outro conforme nossas simpatias atávicas.

Nos episódios de vandalismo, fico me perguntando quem são os encapuzados. Seriam apenas pitboys e membros de torcidas organizadas sem nenhuma ideologia política? Apenas apologistas da violência pela violência? Seriam ladrões esperando a confusão para roubar e saquear em proveito próprio? Seriam extremistas de esquerda tentando induzir uma reação policial mais enérgica com o intuito de voltar a opinião pública contra as autoridades responsáveis pela manutenção da ordem? Seriam extremistas de direita infiltrados tentando desmoralizar este movimento popular, em sua enorme maioria pacífico, com o intuito de angariar simpatizantes para a repressão policial e para restrições à liberdade democrática?

Duas coisas que eu não compreendo: Uma é o porquê de a polícia não ter reprimido os arruaceiros no Leblon; outra é o porquê de os serviços de inteligência da polícia e a imprensa investigativa não terem sido capazes até hoje de identificar quem são estes mascarados, suas motivações, ideologias e as eventuais organizações por trás deles. Incompetência apenas? Ou falta de interesse em esclarecer? Particularmente, acho que tem de tudo, junto e misturado. Mas também acredito que existe um ou mais movimentos bem articulado por trás, não de todos, mas de boa parte dos arruaceiros. O que assisti há dois dias foi uma formação com característica militar de alguns manifestantes mascarados que me pareceu muito bem ensaiada. Sejam eles de esquerda ou de direita, estes extremistas ideológicos ou bandidos sem ideologia desdenham da lei, da ordem, da democracia e dos meios pacíficos de argumentação. Por minarem o apoio às manifestações legítimas, eles todos têm o meu total repúdio. Merecem os rigores da Lei.

O que não quer dizer, como apraz aos maniqueístas de plantão, que eu seja defensor da violência policial contra as manifestações pacíficas, muito menos das ações covardes e bárbaras de policiais contra moradores como recém aconteceu na comunidade da Maré. Ali aconteceu a coisificação do outro. Muitos, veladamente ou não, acham que o negro pobre da favela não é exatamente um ser humano como o branco classe média ou alta; e que a polícia que entra em favela não precisa obedecer as mesmas regras e ter os mesmos cuidados que a polícia que age na esquina da escola da Gávea ou de Ipanema. Nenhuma captura de bandidos ou apreensão de drogas e armas justifica um único inocente morto ou ferido, seja em que bairro for. Bandido executa, mas policial não pode agir como bandido. Bandido tem que ser preso, julgado e eventualmente condenado. Seja ele morador da Delfim Moreira ou da Maré, saqueador de padaria ou de cofre público.

Somos todos humanos: manifestantes pacíficos, arruaceiros, policiais, universitários, bandidos, intelectuais, peruas ricas, faxineiras pobres. Pretos, brancos, instruídos e ignorantes. Todos buscam o que imaginam ser o melhor para si e para os seus entes queridos, mesmo que os entes queridos sejam só os cães. Muitos seguem por caminhos equivocados, egoístas e violentos. Mas precisamos construir uma sociedade onde todos vivem sob leis e deveres igualitários e tenham oportunidades idênticas na busca pela felicidade e do bem estar.


Sei que estamos ainda longe dessa realidade. Por outro lado, ela já foi bem mais distante. A barbárie está em nossos calcanhares, esperando que autorizemos qualquer retrocesso ou concessão no caminho da liberdade, da justiça e da igualdade de direitos.

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