Aqui compartilho contos, crônicas, poesia, fotos e artes em geral. Escrevo o que penso, e quero saber o que você pensa também. Comentários são benvindos! (comente como ANÔNIMO e assine no fim do comentário). No "follow by E mail" você pode se cadastrar para ser avisado sempre que pintar novidade no blog.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Ausentes


Quando ela entrou, todo mundo olhou. Todo mundo é modo de dizer. Aqui em São José dos Ausentes, todo mundo em geral não passa de meia dúzia. O campo de futebol, quando não serve de pasto para meia dúzia de ovelhas, só é usado quando vem time de fora. Casados e solteiros não rola. Vivos contra mortos, teriam que convocar o Borja, que tem uma perna mais curta, para completar o time dos que ainda não foram. No caso em questão, todo mundo éramos eu, o Borja e o Palhaço. O Borja nasceu por aqui e, raridade, está aqui até hoje. Talvez por causa da perna mais curta, que o touro imprensou no curral. É o gerente do posto e da lanchonete do posto. E o Palhaço é o frentista. Quando a caravana do circo parou para abastecer, faz uns dez anos, ele, de porre, foi urinar no banheiro dos fundos e dormiu por lá. Foram embora e parece que até hoje não deram falta. Nunca vi ele rir. É o único palhaço de bigodão ruivo que eu conheço. Quanto a mim, não interessa porque eu vim parar aqui. Eu mesmo já quase estava conseguindo esquecer. Até que aquela mulher apareceu para atrapalhar meu esquecimento.

Olhei pela vidraça para ver com que carro ela tinha chegado assim sozinha no meio da noite. Para abastecer, com certeza. Não sei se por causa da neblina ou por causa da lâmpada queimada do poste, não vi carro nenhum. Nem moto, nem caminhão, nem montaria. Nem bicicleta tinha lá fora.

“Banheiro?”, ela disse. O Palhaço esticou o beiço inferior por debaixo do bigode, apontando o corredor do canto. Ficamos os três calados, olhando um para a cara do outro, tentando adivinhar se o outro estava pensando alguma besteira parecida com a que cada um estava pensando.

O toc-toc das botas de salto que ela usava, calça justa de jeans por dentro do cano alto, voltando. Continuei sentado no canto ao lado da geladeira de refrigerantes, com os braços cruzados por baixo do poncho e equilibrando a cadeira nos dois pés de trás, as costas contra a parede. O motor da geladeira é meio barulhento, mas emite um calorzinho bom. Ela sentou-se junto ao balcão e pediu um maço de cigarros para o Borja. Sacou um, pôs na boca e fez aquela cara de “acende o meu fogo”. Ele puxou o isqueiro dos bêbados pelo barbante, levou-o o mais perto que pôde da ponta apagada e apertou três vezes até ele acender. Como o barbante era curto, ela teve que se curvar sobre o balcão. Eu e o Palhaço trocamos um olhar, imaginando o ângulo de visão que o Borja teria dos peitos dela.

“Obrigada”, ela disse depois de uma baforada para o alto.

Fiquei olhando a dona por debaixo da aba do boné. Ela parecia... Mas não podia ser. Ficou ali, sem pressa, fumando e olhando o pôster do Internacional por cima da prateleira de bebidas. Fazia biquinho, soltava a fumaça devagar, com gosto, estufando só um pouquinho as bochechas queimadas de frio, com uns pelinhos louros bem fininhos. De onde eu estava não dava para ver os pelinhos louros, mas dava para imaginar direitinho. Depois amassou a bituca no cinzeiro e levou as mãos à nuca, puxando um rabo de cavalo comprido de dentro do casaco de couro. Soltou os cabelos claros do elástico e eles foram se espalhando, se abrindo à medida que ela balançava a cabeça bem devagar, como as pétalas de uma flor que se abre naqueles filmes em que passam a imagem bem acelerada, para parecer que a flor se abriu assim, na cara da gente. Cabelo lustroso, bonito, parecia anúncio de xampu. Eu já tinha visto cabelos como aqueles, se soltando daquele jeito, há muito tempo atrás. Depois ela pediu um conhaque. “Frio lá fora”, justificou.

A essa altura, eu já estava sentindo umas coisas que há muito tempo não sentia. Fiquei olhando para a dona, até ela sentir aquela sensação na nuca que a gente sente quando estão nos olhando por detrás. Então ela se virou e me viu. Cravou os olhos em mim e eu fiquei firme olhando nos olhos dela. Senti um arrepio que foi das costas até a base da nuca e gotas de suor brotando nas têmporas, por baixo do boné. Instintivamente conferi a pressão que a bainha da faca de caça fazia na minha perna direita, por baixo da calça larga. Sem tirar os olhos de mim ela se levantou e veio para o meu lado.

“Posso?” Arrastou uma cadeira de plástico azul de uma mesa próxima, que tinha uma estampa de uma marca de cerveja no tampo, e sentou-se perto de mim. Levantei um pouco a aba do boné para olhá-la melhor. Devo ter ficado quase um minuto sem piscar.

“Tu continuas bonita, apesar dos anos. Um pouco mais pálida, mas bonita”, falei. E gostosa, pensei.

“E tu ainda sabes como cortejar uma mulher."

“Achei que nunca mais ia te ver, a não ser nos sonhos.”

“Tu sonhas comigo ainda?”

“Só de vez em quando”, menti.

“E essa barba? Usas há muito tempo?”

“Desde que tu te foste.”

“Até que te caiu bem. E esses fios brancos, as ruguinhas no canto dos olhos, te dão um ar maduro, bem charmoso, que tu não tinhas.”

“Ponto para os anos, então. Pelo menos essa vantagem eles trazem.”

Ficamos em silêncio, olhando para os joelhos um do outro por um minuto ou dois.

“Por que resolveste vir atrás de mim agora?”, perguntei erguendo os olhos devagar. "Ou vais dizer que chegaste aqui por acaso, obra do destino?"

“Fiquei te devendo uma explicação.”

“Será que isso é possível, uma explicação?”

“Entenda, tu viajavas muito.”

“Eu já era caminhoneiro quando me conheceste. Ou não era?”

“Eras sim.”

“Tu te lembras daquela coisa de amá-lo e respeitá-lo na saúde e na doença e etc.? E acho que tinha na presença e na ausência também.”

“Não tinha não.”

“Mas devia ter, pombas. Respeitar tinha e tu juraste ali, na frente do padre e de todos, olhando nos meus olhos.”

“Na hora era verdade. Mas a solidão dói. Doía barbaridade. Quando tu voltavas, a dor cessava um pouco. Não de todo, porque já antecipava a próxima partida. E quando tu partias, de novo e de novo, a felicidade ainda persistia por um tempo, por uns dias. E depois a dor, a saudade, o vazio que tu deixavas, aquele vazio imenso latejando. Não era tédio, era dor. Uma dor pedindo por teu abraço, por teus beijos. Eu achei que outro abraço, outro beijo poderia me anestesiar da tua ausência. Pois saiba, então: não podiam. Não puderam.”

“Mas tinha que ser logo com o Jurandir? Meu amigo, meu mecânico, meu companheiro de pescaria? Quando me avisaram do acidente, eu já estava para lá de Belo Horizonte. Não me contaram a princípio que tu não estavas sozinha no carro. Só depois me disseram que ele estava também. E só no velório eu soube que a carreta atingiu nosso carro na saída do Motel Vênus. E eu ainda fiquei quase dois anos pagando por aquele troféu de corno feito de aço retorcido.”

“Eu fechava os olhos e imaginava que eras tu.”

“Perdi a mulher, o mecânico, o companheiro de pescaria, o respeito das pessoas. Tive que passar a levar o caminhão para consertar lá em Bento Gonçalves. E o que eu ganhei em troca?”

“Eu sempre exigia que se apagasse a luz.”

“Um par de chifres e cabelos brancos.”

“Eu nunca deixei de te amar.”

“E por que tu pensas que eu acreditaria em ti agora?”

“Eu não tenho por que mentir. Não agora.”

Ela passou suas mãos por baixo da lã do poncho e segurou meu braço, os dedos finos e frios. Um arrepio me subiu pelo braço até o pescoço, um arrepio bom e quente. Fui aos poucos relaxando a musculatura, como numa rendição. Ela deslizou os dedos até os meus e puxou-me com suavidade, fazendo a cadeira desencostar da parede e os quatro pés pousarem no chão.

“Você não imagina como foi difícil te encontrar aqui. Mas nunca desisti.”

Levantei os olhos até os olhos dela e fiquei olhando aquele azul pálido, as pupilas dilatadas, aquelas gotas que surgiam nos cantos. O compressor da geladeira deu um tranco e parou de fazer barulho. Quis ainda exercer algum direito de vingança, dizer algo que a ferisse profundamente, que nos deixasse quites:

“O Inter também foi campeão mundial de clubes, viu?”

“Eu vi o pôster.”

“Na final, o Ronaldinho estava no outro lado, no Barcelona, e perdeu.”

“É mesmo?” Ela não parecia nem um pouco atingida. Abriu um sorriso. “Seu bobo!” Então me beijou um beijo quente com seus lábios frios, um leve cheiro de terra como perfume. Depois me segurou as duas mãos, ergueu-se e me puxou.

“Tem uma lua linda lá fora. Vem.”

Levantei-me e deixei-me guiar. Senti no rosto o vento gelado quando a porta se abriu. Então olhei para trás, por cima do ombro, para o bigode ruivo do Palhaço. Tentei decorar aquela forma, aquela cor. Seria a última vez que eu o veria.

6 comentários:

  1. Seu personagem parece com o Riobaldo de "Grande: Sertão Veredas", adorei. e o "Borja"? Gerente do posto e gerente da lanchonete do posto, ahaha, o máximo!! E a eroticidade que você imprimiu está no ponto, parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Gostei... os personagens dão pano pra manga e a mulher deve ser "deliciosa"...Grd Doctor! Abrç.
    Mario

    ResponderExcluir
  3. Beeeem interessante, Ralph! Texto instigante...

    ResponderExcluir
  4. Esta é, sem dúvida uma das tuas melhores.

    ResponderExcluir
  5. Excelente! Conto que desce redondo ;-)
    Fabiana

    ResponderExcluir
  6. mergulhei na historia e me senti a própria mulher...

    ResponderExcluir