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domingo, 22 de janeiro de 2012

Eu, eu mesmo e Antunes

Existem férias com casa cheia, na praia ou na serra. Fila no posto e no mercado, cerveja, churrasco com a galera e música alta. Existem também férias com viagem, aeroporto, faz e desfaz mala, muita andança, cada dia um roteiro a cumprir, cada dia um restaurante, uma paisagem, muitas atrações imperdíveis.

Eu, todo ano, me dou uns poucos dias de férias de tudo e de todos, menos de mim mesmo, alguns dias por ano sozinho aqui nessa roça, aqui nessa serra.  Fico bem só com minha própria companhia. A família? Só chega sexta feira. Tédio? Nem de longe.  Cuidado de não fazer planos demais e terminar sentindo que não se fez tudo que se queria fazer. Dias cheios, portanto. Agora à tarde estava tateando “Por una cabeza” no teclado quando ouvi uma piadeira do lado de fora. Senha para pegar correndo os binóculos e a Canon com tele. Lá por cima do sítio da Ana Maria, um bando de tucanos. De que espécie? Alguns clics revelam: bico preto e papo amarelo, Ramphastus vitelinus segundo me diz o “Aves Brasileiras”, do Dalgas Frisch. Com essa, já são 75 espécies diferentes de pássaros avistadas por aqui. Ganhei o dia.

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Ontem saí para uma caminhada. Vou até o mirante de Bananeiras, decido já no caminho. Se na estradinha de terra da vila já passa pouca gente, na estrada do mirante anda-se horas sem cruzar viva alma. Até há pouco tempo, motoristas com tração nas quatro e espírito de aventura podiam subir a serra desde Silva Jardim pela trilha de terra até aqui, mas a ponte de madeira, já do lado de cá da vertente, caiu de podre há uns quatro anos. Agora só se passa a pé, a cavalo ou de moto. Fico observando o vau do riacho por baixo do que restou da ponte: se tirar aquele tronco caído que está represando a água, se jogar umas pedras grandes no ponto mais fundo, se usar um pouco a enxada aqui e ali daria para passar com o jipe pela água, fico arquitetando. Sigo em frente. Mais adiante, um vulto cinza vai caminhando uns vinte metros na minha dianteira. Vou andando, ele vai andando. Acelero, ele acelera e tenta subir o barranco para o mato. Acelero mais e ele, gordo, escorrega de volta para a estrada. Dou uma corrida e ele sai voando magnífico para o lado contrário. Um macuco! Tinamus solitarius, como eu. Só tinha visto antes no pacote de manteiga, fora do qual ele andou perigando de extinção. Mas dizem que estão voltando a se multiplicar com a redução da caça. Acredito. Outro dia ganho. Espécie 76.

Logo depois, a vista magnífica da baixada de Silva Jardim, a lagoa ao fundo e o mar lá no horizonte. Vento úmido, trovoadas distantes, arapongas nem tanto, terrén, terrén, terrén. Acho que não vai chover tão cedo. Arrisco então descer a Serra do Mar para fazer reconhecimento da trilha. Aqui, dá para rolar essa pedra grande para fora do caminho, ali tem que cortar aquele tronco caído. Trazendo machado, enxada, alavanca de ferro e mais uns dois pares de braços, vai dar para passar de jipe, se vai!

Continuo descendo. Bananeiras e mais bananeiras, casal de passarinho preto e branco, perninhas vermelhas, nunca vi antes. A mata se abre em capoeiras e passo por duas porteiras. “Favor colocá a correnti”, num rabisco quase apagado, então obedeço. Nenhuma marca de pneu no chão, só casco de boi e ferradura. Nenhuma marca de sapato também. Passo pelo primeiro ranchinho: deserto. Já estou a meio caminho da baixada e ainda não vi ninguém. Melhor dar meia volta e subir antes que escureça. Vamos pernas, coragem, me levem para casa. Pausa para um gole d’água no regatinho de água fresca que vem cascateando esperto lá de cima e cruza a trilha. E sobe, e sobe, vamos pernas, um, dois, me levem para casa. A passagem para o lado de lá da serra aparece como um decote na mata da vertente. Chegando no alto, um suspiro e outra olhada demorada para a paisagem e para o silêncio.  Chego em casa no lusco-fusco. Bom trabalho, pernas, amanhã dou folga para vocês.

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Hoje fiz geléia de framboesa do mato. Botar um pouco menos de açúcar da próxima vez, mas ficou gostosa. Assisti o documentário The Blues, do Win Wenders, que Samara e Augustus me deram no aniversário. Nele descobri os pioneiros J. B. Lenoir, Skip James e Blind Willie Johnson. Não podia morrer sem antes saber quem foram eles. Agora à noite, enquanto escrevo, estou ouvindo meu I Pod ligado no som da sala, na altura que eu quero, direito que todo homem deveria ter pelo menos durante alguns dias no ano. Mutantes e Black Sabath, Tom Jobim e Sarah Vaughn, Credence Clearwater, Secos & Molhados, Adoniran e Django Reinhardt, tudo junto e misturado, muito bom.

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O toque sinistro foi que no meio da primeira noite acordei nem sei por quê e tinha uma coisa preta se mexendo em cima do meu peito. Morcego! #$%@&! Pulei da cama e fui buscar o tapete do banheiro para apanhar o bicho e jogar pela janela. Quando voltei o bastardinho tinha sumido. Revira coberta, levanta colchão, olha atrás do armário, dentro do sapato e nada. Vou até o espelho do banheiro e examino o pescoço, sabe lá? Depois vou dormir em outro quarto com a porta fechada.

No dia seguinte tomo providências que vinha adiando fazia tempo. Compro madeira, prego e um esquadro de marceneiro no armazém do Leir. Com ajuda do Batista, vedamos toda e cada fresta entre os caibros e as telhas do telhado em toda volta da casa. Sinto muito, morceguinhos, mas vocês ultrapassaram a fronteira da tolerância.

Via das dúvidas, prestem atenção quando eu passar na frente do espelho. E se eu parar de envelhecer ou um séquito de meninas adolescentes começar a andar atrás de mim, melhor munirem-se de gola alta, crucifixo e água benta quando estiverem comigo. Por enquanto, não estou dormindo de cabeça para baixo.

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E uma última notícia antes de encerrar esta edição: acabo de ver passar um gambá pela varanda. Tadinho, agora vai ter que dormir ao relento.

7 comentários:

  1. Ótimo texto, Conde Ralph (ops)!!!

    Na próxima oportunidade em que o encontrar, irei devidamente munida do meu belo colar de alhos e bugalhos. Hahahaha...

    ;-)

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  2. Muito bom! Excelente relatório da sua higienização mental. Fiquei só imaginando essa trilha aí... tem foto não?
    (por via das dúvidas, agora só vou dar aula com um crucifixo embaixo dos livros...!)
    Fabiana

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  3. Ralph, nós temos muito mesmo em comum. Eu tb, sempre que posso, tiro dias só pra mim mesma, bem sozinha, sem marido nem filha nem ninguém e fico lendo, escrevendo, ouvindo música, mergulhada na banheira, arrumando um armário que seja, mas só. É uma coisa essencial mesmo. Vc parece estar num lugar bem interessante, bem natureza mesmo... Amei a história com o morcego! Ri muito. Tb já tive episódios (bem menos intensos que o seu) com os "vampirescos". Bom, curta suas férias. Abração pra ti.

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  4. Ralph, descobri seu blog através de um amigo (cardiologista) em comum. E realmente, gostei muito dos seus textos, particularmente deste, em que você fala dos pioneiros do blues, mas tenho uma ressalva... como blogueira que sou também, gosto de escrever, e sou "metida" a cinéfila e (por causa do cinema) acabo me envolvendo com todo tipo de (boa) música que, invariavelmente, faz parte da sétima arte pois uma não vive sem a outra - o documentário, que você comenta, na verdade faz parte de uma coletânea de oito filmes/documentários, de nome "The Blues", produzidos pelo cineasta americano Martin Scorsese - esse que você assistiu é um deles, e foi dirigido pelo alemão Win Wenders e se chama "Soul of a man"(e o tema de abertura do filme "Paris, Texas" do Win Wenders é do Blind Willie Johnson). Se você quiser saber mais detalhes sobre esses grandes diretores fascinados pelo blues (assim como eu também), posso te mandar o endereço do meu blog.

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    1. Olá, Rosemery
      Que bom q vc gostou do blog.
      Na verdade, eu ganhei de amigos a caixa com os 7 DVDs da seleção organizada pelo Scorcese. Vc está certa: a coletânea se chama "The Blues" e este filme do Win Wenders é o "The Soul Of Man". Gosto do Win Wenders, gostei mt do "Paris, Texas". Não lembrava da música de abertura do filme. Tenho ele em VHS, vou rever. Gosto do Blues de raiz. Curto Muddy Waters, gosto mt de um blueseiro chamado Hound Dog Taylor, vc conhece?
      Manda o link do seu blog, quero conferir.
      Abçs

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  5. O cotidiano das férias é bem detalhado e aprofundado em seu sentimento (recôndito?) de nostalgia de férias em Friburgo.Seu texto retrata e espelha uma vida que se quer manter em redoma para que não fuja de você mesmo,de seus princípios,de seus objetivos,enfim de seu interior construído ao longo do tempo.
    Aprecio o seu texto em relação a esse desvelar da alma em situações diárias,comuns e mesmo,surpreendentes como um morcego que, depois de horas de espera,aparece e transforma o ambiente.
    Quem já não foi surpreendido por um morcego em Friburgo?
    Maria Lucia Arruda

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  6. Oi, Ralph. Já vi que você já me achou (meu blog). Me reconheceu? (sou ecocardiografista). Adivinhou quem me indicou seu blog?(trabalho com ele no HUAP).
    Que bom que você curtiu meu texto sobre "V de vingança e Anonymous". Em geral, sempre misturo cinema com o dia a dia, pois sempre que algo acontece no mundo (ou mesmo comigo), me remete a lembrança de algum filme que já vi. Quanto ao Hound Dog Taylor, sei pouco, é um dos pioneiros e tinha seis dedos em uma das mãos.
    Como você, gosto de escrever ouvindo música, em geral fico ouvindo a trilha sonora do filme que estou comentando, e vou mais longe que você, pois além de colocar na maior altura, dependendo do som, dou uma parada na escrita, e saio dançando e rodopiando sozinha pela sala.
    E já que você pediu, aqui vai o link de dois textos que talvez goste sobre "blues no cinema" (http://rosemerynunescardoso.blogspot.com/2011/04/o-cinema-e-os-grandes-nomes-da-musica.html) e sobre "Paris,Texas" e Blind Willie Johnson (http://rosemerynunescardoso.blogspot.com/2011/05/cinema-europeu-uma-pincelada-para.html).
    Abçs

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