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quarta-feira, 23 de março de 2011

A Flor Roxa

Ne me quitte pas! A canção de Jacques Brel todo mundo conhece. Eu, pelo menos, já conhecia. Sabia a tradução do título, adivinhava o sofrimento expresso na letra, mas, como não sei francês, não tinha tido a oportunidade de entender todo o seu significado. Até que meu amigo Sebastião me enviou o link para o YouTube:

Confiram e me digam: não há como não se emocionar, não é não? Quando assisti o pobre Jacques Brel, devastado pela dor da separação, implorar à amada Suzzane Gabrielle uma segunda chance, fui invadido por uma enxurrada de emoções e pensamentos. Meninos, que coisa! Fiquei dividido. Não sabia se dava graças a deus por nunca ter vivido um sofrimento tão avassalador, ou se lamentava ter vivido a vida (até aqui, pelo menos, cruz credo) sem ter compartilhado com muitos de meus semelhantes essa experiência, melhor dizendo, esse transe, essa loucura, essa privação temporária dos sentidos que pode conduzir pessoas do céu ao inferno sem escalas e levar seres humanos tidos como decentes e normais ao suicídio ou ao homicídio.

Pausa para meditação. Quando criança, tive um fox paulistinha, o Nick. Foi meu primeiro cachorro. Sujeitinho muito inteligente, de personalidade forte, arretado e temperamental. Mordeu vários outros cães e algumas mãos e tornozelos humanos, o que nos trouxe muitos constrangimentos e motivou diversas exibições da carteira de vacinação veterinária. Nick viveu celibatário até uma idade relativamente avançada, uns cinco ou seis anos mais ou menos, o que equivaleria a uns quarenta e poucos aniversários humanos. Até que surgiu uma pretendente compatível, que foi-lhe apresentada. Chamava-se Pretinha. Como o primeiro contato entre os dois foi cordial, ela foi deixada por uns dias na casa de meus avós em Friburgo, onde passávamos as férias. O que se seguiu, nas palavras de minha saudosa avozinha, foi uma “pouca vergonha”. Nick não deixava a cadelinha por um minuto, nem de dia, nem de noite, nem para comer, nem para dormir e acho que nem para beber. Depois de três dias ininterruptos de amor apaixonado, tememos pela sobrevivência de nosso cachorrinho, que, no entanto, parecia querer morrer daquilo. Tivemos que, a muito custo, enfrentando protestos ostensivos e tentativas de mordidas, trancá-lo no banheiro da empregada enquanto levávamos embora a exausta Pretinha que, curiosamente, não pareceu se incomodar. Muito pelo contrário, li algum alívio em seus olhinhos pretos e cansados. Depois, liberto da prisão, Nick rodou a casa como louco por muitas horas, até convencer-se de ter sido abandonado. Que terá passado em seu coraçãozinho canino? “Aquela cachorra ingrata me abandonou sem nem se despedir!”? Nunca soubemos. Só no dia seguinte Nick começou a matar a fome de três dias. Aos poucos, abandonou aquele olhar perdido e voltou a ser o cãozinho brincalhão de antes.

Ora, dirão os românticos de plantão, que sacrilégio! Comparar a mais bela e elevada das emoções humanas, a fonte suprema de inspiração das artes com um reles acasalamento canino! Mas será mesmo tão diferente assim? Ver o pobre Brel com cara de cachorro abandonado implorando para ser a sombra do cãozinho da Suzanne me deixa com sérias dúvidas. Para cada canção de felicidade na paixão, existem dez de corações arrasados. Tudo bem, gente, vou ser franco: tenho medo da paixão! Deve ser meio como cocaína: ao experimentar pela primeira vez, ninguém pode garantir que não vai deixar-se arrastar pela sarjeta. Só que, ao contrário da cocaína, a paixão pode agarrar um coração descuidado na primeira esquina, sem dar ao menos uma chance à razão de dar um puxão bem forte na coleira de nosso cachorrinho interior para nos obrigar a seguir em frente.

Novamente os românticos que me lêem devem estar pensando: Coitado, nunca amou na vida. Não é verdade. Já amei muitas vezes, já chorei e sofri com separações e amores não correspondidos. Amo ainda hoje, e o amor que compartilho é parte importante da minha felicidade, embora não seja seu carcereiro. Rezo para nunca querer ser a sombra do cachorro de ninguém. Até aqui, apesar da minha ponta de inveja e alguma curiosidade irresponsável, minhas preces têm sido ouvidas: o cupido continua trancado no banheiro da empregada. Mas, já dizia Santo Ernulfo: Ninguém está livre de um mau passo. Todo cuidado é pouco!

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