Aqui compartilho contos, crônicas, poesia, fotos e artes em geral. Escrevo o que penso, e quero saber o que você pensa também. Comentários são benvindos! (comente como ANÔNIMO e assine no fim do comentário). No "follow by E mail" você pode se cadastrar para ser avisado sempre que pintar novidade no blog.

domingo, 12 de dezembro de 2010

O Serrote de Deus

Ele estava em Brasília, no aniversário de Sílvia, irmã de seu amigo Pedro Luiz. Havia viajado até o Planalto Central para passar a Semana Santa hospedado na casa deles. A festa ia comum e tranquila, até que, como que avisados por uma senha secreta, todos pararam de conversar e um culto improvisado começou na grande sala do apartamento na Asa Sul. Surgiu um violão, entoaram-se belos cânticos, muito bem ensaiados. Porque na igreja católica, que freqüentava no Rio, não se cantava tão bem assim? Depois que alguém deu graças por mais um ano de vida da moça e pelas bênçãos que continuamente caíam sobre aquela família e seus amigos, pediu-se que cada um dos presentes desse o seu testemunho. Que falassem de como Jesus havia entrado em suas vidas e as transformado profundamente. A palavra ia sendo dada a cada um daqueles jovens que, emocionados, às vezes em lágrimas, relatavam como a conversão havia mudado radicalmente seus rumos. Meu Deus, ele pensou, e teve medo por ter pensado aquilo: como pessoas tão jovens e aparentemente comuns poderiam ter vivido vidas tão cheias de tristezas até tão pouco tempo atrás? Que pecados inomináveis poderiam ter cometido? Que sofrimentos indizíveis poderiam ter atormentado suas almas mal saídas da infância? E, no entanto, todos se mostravam emocionados, muitos chegando a lágrimas que lhe pareceram sinceras. Que diria quando chegasse sua vez? Mentiria confessando uma conversão que não havia ocorrido, pelo menos não daquela forma drástica e espetacular? Diria que havia sido invadido pelo Espírito Santo ao se ajoelhar implorando a misericórdia divina?

Na verdade, ele bem havia tentado. O Evangelho que lhe havia sido dado por Pedro Luiz tinha passagens grifadas e numeradas, que dirigiam o leitor a se dar conta da grandeza do amor de Deus, que havia enviado Seu filho querido para que Este trouxesse sobre Si os pecados de toda a humanidade. Então, entregado-O para ser torturado e sacrificado, nos havia livrado do peso de uma culpa ancestral. Talvez valesse a pena tentar, pensara. Sua vida não era exatamente miserável, mas o longo e doloroso processo de separação de seus pais, diante do qual se vira impotente, as dificuldades financeiras que se seguiram, as agruras próprias da adolescência se somavam para configurar uma sensação de inadequação e incerteza. Então, uma noite, por trás da porta fechada de seu quarto, recitou as orações e os pedidos infalíveis que aquele Evangelho comentado lhe instruía a fazer, como quem se deixa fechar na caixa do mágico, só a cabeça de fora, permitindo-se ser serrado ao meio, sem ter certeza absoluta de tratar-se apenas de um truque. Não crendo, mas dando uma chance à credulidade, uma chance de sentir os dentes do serrote lhe abrindo a alma ao meio para que Jesus entrasse. A própria idéia de um truque mágico já o fazia temer que nada de fato ocorreria. Uma vez sentara-se diante de um hipnotizador, desejando sinceramente ser hipnotizado, porém duvidando muito de que algo pudesse ocorrer, como de fato não ocorreu. Vira várias pessoas se deixando hipnotizar, assim como vira uma vez em um templo evangélico mulheres e homens de aparência absolutamente séria e confiável sendo possuídos pelo Espírito Santo e falando línguas ininteligíveis. Seria tão mais fácil se viesse a se tornar um crente, um crédulo. Então ajoelhou-se, orou do mais fundo que pôde de sua alma. Apertou os olhos tentando espremer uma lágrima que teimava em não sair, buscou arrancar de dentro de si um sinal de entrega ao Todo Poderoso. Ficou ajoelhado por longos minutos esperando, não sem algum medo, que o serrote de Deus lhe abrisse a carne e o espírito.

Nada.

Aquele Nada o deixara abandonado na mais pura solidão, sem ninguém que lhe pegasse pela mão e o levasse pelos caminhos da virtude até o paraíso. Se, dali em diante, viesse a viver uma vida virtuosa, não seria por ter-se tornado um zumbi de algum deus. Se viesse a viver uma vida de enganos e mancadas, teria que arcar sozinho com a responsabilidade de seus atos, sem culpar qualquer satanás nem ninguém, deste ou de qualquer outro mundo.

De início, a solidão do Nada o deixara amedrontado e confuso. Aos poucos, no entanto, começou a sentir-se de alguma forma mais forte, mais capaz. Mais compadecido e solidário com outras solidões. Paradoxalmente menos só.

Quando finalmente lhe passaram a palavra, não teve coragem de mentir. Deu parabéns à aniversariante, disse como se sentia sinceramente feliz em estar na presença de amigos, e passou a palavra adiante. Não soube interpretar bem os olhares que lhe lançaram.

Um comentário:

  1. Grande Ralph,
    Muito bons os textos, especialmente os tres últimos que eu ainda nao tinha lido. Apesar da grande variedade de assuntos, voce mantem um estilo proprio, que acho único e muito interessante. Parabéns.
    Feliz Natal e tudo de bom em 2011.
    Marcus

    ResponderExcluir