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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Olhos Verdes

Nos primeiros dias, seus poucos amigos apareciam, geralmente pedalando suas bicicletas, sentavam a seu lado na calçada e puxavam assunto. Talvez para distraí-lo de seu intento, talvez para avaliar se ele havia perdido definitivamente o que lhe restava de juízo. Mas nenhuma palavra, nenhum argumento lógico poderia abrir a menor brecha ou mesmo arranhar de leve sua convicção. Sua decisão era fruto de outra lógica, uma lógica superior, proveniente de um universo mais belo, mais claro, pleno de sentido. Nunca antes havia visto as coisas com tanta clareza. Como duvidava que qualquer outra pessoa pudesse ter um vislumbre que fosse daquilo que para ele era sólido e nítido, não tentava explicar. Não se incomodava que o chamassem de louco. Ela, porém, era diferente. Mais cedo ou mais tarde ela certamente entenderia.

Seus olhos fixavam, dia após dia, a varanda do terceiro andar do pequeno prédio de apartamentos do outro lado da rua. A rotina que ali se sucedia já lhe era familiar. Às primeiras luzes da manhã, uma lâmpada se acendia por detrás da vidraça do quarto por cerca de dezoito minutos e depois se apagava. Quinze minutos depois se acendia novamente, voltava a se apagar, e em mais três ou quatro minutos ela surgia, perfeita, pela portaria do prédio, ofuscando o mundo, enchendo-o com aromas doces de sabonete e lavanda. Seus cabelos longos oscilavam, o louro escurecido pela umidade do banho recém tomado, a pele clara com brilhos suaves de cetim, os olhos verdes como raios de sol atravessando uma onda do mar de manhã cedo. Por uma fração de segundo ela dirigia aquelas duas luzes verdes em direção a ele e então seguia com passos de fada, flutuando um palmo acima das pedras da calçada em direção à escola. Ao fim da tarde, a cena se repetia às avessas, como um vídeo rebobinado.

Nas primeiras semanas, nas raras vezes em que se percebia com fome, ele servia-se da padaria que ficava às suas costas, defronte ao apartamento dela. Servia-se também do banheiro da padaria quando necessário, embora cada vez menos. Aos poucos, os raros amigos se tornaram ainda mais raros. Eles apenas sentavam-se em silêncio a seu lado, e depois nem isso. Passavam lentos em suas bicicletas, olhavam compadecidos e seguiam em frente.

Não havia, porém, razão para compaixão. Ele era feliz. Estava possuído pelo sentido do universo. Mais dia menos dia, ela haveria de render-se à sua irresistível força. Enquanto isso, por quanto tempo fosse necessário, ele permaneceria ali, nutrindo-se com aquela visão celestial a cada manhã e a cada tarde.

O pai dela ameaçou-o várias vezes, dizia que chamaria a polícia. Um dia, a polícia realmente veio e o levou. Por uma semana ele definhou sem poder nutrir-se da luz de esmeralda daqueles olhos. O delegado cansou-se de esperar por uma acusação formal e acabou libertando-o. Por duas outras vezes, foi insultado e depois espancado pelos irmãos dela. Não esboçou nenhuma reação, nem para se proteger, atitude que causava nos agressores um mal estar que acabava tornando-se mais incômodo que a raiva. Então paravam de bater. Já ele, não sentia raiva. Apenas incomodava-se um pouco com o fato de os hematomas ao redor dos olhos atrapalharem temporariamente sua visão.

Com o passar do tempo, acabaram acostumando-se com sua presença. Os cachorrinhos urinavam em suas pernas. As formigas que subiam pelo seu corpo já não incomodavam mais e o musgo começou a tingir de verde as suas roupas. Já não precisava dos pães da padaria e, conseqüentemente, também não precisava do banheiro da padaria. Aprendeu a permanecer de pé indefinidamente, passou a piscar a intervalos cada vez maiores para não perder por nem um segundo a possibilidade de vê-la. Passarinhos passaram a pousar em sua cabeça, tentando arrancar tufos de cabelo para forrar seus ninhos. Por fim, passaram a fazer seus ninhos em seus longos braços. A janela do terceiro andar acabou por ficar à altura de seus olhos. Agora tinha que olhar para baixo para vê-la sair pela porta do prédio.

Hoje os cabelos dela são brancos, mas ondas claras de mar e sol ainda jorram de seus olhos verdes a cada manhã. Ela ainda flutua com sua bengala, quase tocando a calçada, depois de olhar para o velho tronco. Se for primavera, ele deixa, então, cair uma flor.

2 comentários:

  1. Muito bom texto - simples, mas completo. Aliás, o que é lido com facilidade, foi escrito com dificuldade... Então, merece a menção honrosa!
    Bjs da fessora/fã
    Fabiana

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  2. Adorei o comentário da sua professora, Ralph, pois ilustra bem a dificuldade de se elaborar um texto...
    Como todos os seus são, para mim, lidos com facilidade, este é mais um motivo para parabenizá-lo! Sucesso!

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