Uma forma eficaz de anestesiar
nossos escrúpulos e nossa consciência é coisificar o outro. Na contramão, ao
nos permitirmos nos ver na pele do outro, somos instados a sentir compaixão. A
partir do nascimento de meus filhos, as notícias sobre abuso ou violência contra
menores, infelizmente tão corriqueiras na imprensa, passaram a ter conotação
muito mais dramática para mim. O choro de mães e pais que perdem seus filhos
passou a ser dolorosamente compreensível, a dor do outro, de uma forma
incômoda, tornou-se próxima e palpável.
Ao longo da História, ver o outro
como uma categoria à parte, não reconhecível como humana, tem sido uma
estratégia muito bem sucedida para anestesiar as consciências e endossar a
barbárie do homem contra o homem. Este truque justificou a escravidão dos povos
bárbaros do norte da Europa pelos romanos, a escravidão dos negros africanos
pelos brancos, a captura e a venda de negros africanos escravizados por outros
negros africanos de tribos distintas. Justificou genocídios como o dos hutus
contra os tutsis em Ruanda entre 1994 e 1995 - onde meio milhão de seres
humanos igualmente africanos e igualmente negros foram chacinados - e o
holocausto judeu pelos nazistas. Permite que vascaínos matem flamenguistas e
corintianos matem palmeirenses (e vice versa). Tudo justificado por uma artimanha
perniciosa de nossa consciência: Coisificamos o outro e ele deixa, então, de
ser humano como nós. Aos olhos do torcedor fanático, o torcedor do time
adversário não é alguém como ele; talvez nem seja um ser humano. O soldado
adversário na mira do fuzil não é um ser humano, é um inimigo. O pobre diante
da arma do policial não é um ser humano, é um bandido. E assim temos nos
permitido violentar, massacrar, torturar, causar dor, exterminar e escravizar outros
seres humanos. Alguém que tenha acabado de torturar outra pessoa pode ser capaz
de afagar carinhosamente um cão logo em seguida, pois se identifica mais com o
cão do que com o torturado. Hitler amava seus cães.
Embrenhei-me nessa divagação em
função das recentes cenas de violência e agressão contra pessoas e contra o
patrimônio de pessoas, e, principalmente, com as diferentes reações em relação
a elas. As pessoas parecem dividir-se em duas trincheiras opostas: as que
execram os vândalos (com ou sem aspas, como queiram) e exigem mais rigor na
ação da polícia contra os manifestantes; e os que justificam e intimamente aplaudem o vandalismo e a violência,
inclusive as agressão contra policiais e contra o patrimônio público e privado.
Este grupo justifica seu ponto de vista no histórico (real) de violência
policial contra os menos favorecidos.
Em sociedades divididas, o que
tem sido muito mais a regra que a exceção ao longo de nossa caminhada como
civilização, o aparato militar e policial tem sempre sido utilizado pelos
detentores do poder na defesa de seus próprios interesses políticos e econômicos.
E as regras quase sempre têm sido ditadas pelos poderosos da vez no sentido de
proteger seu status quo. Sociedades mais igualitárias nunca são fruto de rasgos
de generosidade das classes dominantes, mas sim da organização e da pressão das
classe menos favorecidas no jogo pelo poder. Estas, lamentavelmente, quando o conquistam,
muitas vezes passam a reproduzir os mesmos vícios dos apeados do comando, no sentido da manutenção de seus privilégios recém adquiridos. A história recente do Brasil está aí e
não me deixa mentir.
A polícia reprime os vândalos
porque eles são violentos. Os vândalos agridem e destroem em represália à
violência da polícia e de seus comandantes. Olho por olho, dente por dente, e
vamos todos cedendo terreno em nossas consciências e justificando e aplaudindo
a violência de um lado ou de outro conforme nossas simpatias atávicas.
Nos episódios de vandalismo, fico
me perguntando quem são os encapuzados. Seriam apenas pitboys e membros de
torcidas organizadas sem nenhuma ideologia política? Apenas apologistas da
violência pela violência? Seriam ladrões esperando a confusão para roubar e
saquear em proveito próprio? Seriam extremistas de esquerda tentando induzir uma
reação policial mais enérgica com o intuito de voltar a opinião pública contra
as autoridades responsáveis pela manutenção da ordem? Seriam extremistas de
direita infiltrados tentando desmoralizar este movimento popular, em sua enorme
maioria pacífico, com o intuito de angariar simpatizantes para a repressão
policial e para restrições à liberdade democrática?
Duas coisas que eu não compreendo:
Uma é o porquê de a polícia não ter reprimido os arruaceiros no Leblon; outra é
o porquê de os serviços de inteligência da polícia e a imprensa investigativa
não terem sido capazes até hoje de identificar quem são estes mascarados, suas
motivações, ideologias e as eventuais organizações por trás deles.
Incompetência apenas? Ou falta de interesse em esclarecer? Particularmente, acho
que tem de tudo, junto e misturado. Mas também acredito que existe um ou mais
movimentos bem articulado por trás, não de todos, mas de boa parte dos
arruaceiros. O que assisti há dois dias foi uma formação com característica militar
de alguns manifestantes mascarados que me pareceu muito bem ensaiada. Sejam eles
de esquerda ou de direita, estes extremistas ideológicos ou bandidos sem
ideologia desdenham da lei, da ordem, da democracia e dos meios pacíficos de
argumentação. Por minarem o apoio às manifestações legítimas, eles todos têm o
meu total repúdio. Merecem os rigores da Lei.
O que não quer dizer, como apraz
aos maniqueístas de plantão, que eu seja defensor da violência policial contra
as manifestações pacíficas, muito menos das ações covardes e bárbaras de
policiais contra moradores como recém aconteceu na comunidade da Maré. Ali
aconteceu a coisificação do outro. Muitos, veladamente ou não, acham que o
negro pobre da favela não é exatamente um ser humano como o branco classe média ou alta; e que a polícia
que entra em favela não precisa obedecer as mesmas regras e ter os mesmos cuidados que a polícia
que age na esquina da escola da Gávea ou de Ipanema. Nenhuma captura de
bandidos ou apreensão de drogas e armas justifica um único inocente morto ou
ferido, seja em que bairro for. Bandido executa, mas policial não pode agir como bandido. Bandido tem que ser preso, julgado e eventualmente condenado.
Seja ele morador da Delfim Moreira ou da Maré, saqueador de padaria ou de cofre
público.
Somos todos humanos:
manifestantes pacíficos, arruaceiros, policiais, universitários, bandidos,
intelectuais, peruas ricas, faxineiras pobres. Pretos, brancos, instruídos e
ignorantes. Todos buscam o que imaginam ser o melhor para si e para os seus
entes queridos, mesmo que os entes queridos sejam só os cães. Muitos seguem por
caminhos equivocados, egoístas e violentos. Mas precisamos construir uma sociedade onde todos vivem sob leis e
deveres igualitários e tenham oportunidades idênticas na busca pela felicidade e do bem estar.
Sei que estamos ainda longe dessa
realidade. Por outro lado, ela já foi bem mais distante. A barbárie está em
nossos calcanhares, esperando que autorizemos qualquer retrocesso ou concessão no caminho da liberdade, da justiça e da igualdade de direitos.
Parabens Ralph, pela lucida reflexao.
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