As paisagens e vilas da série Downton Abbey, que vem
fazendo sucesso na TV a cabo, remeteu-me à nossa visita à região de Cotswold em
2010. Havíamos passado alguns dias usufruindo da hospitalidade de nossos amigos
Marcus e Tina em Putney, o charmoso bairro na área sul de Londres. Agora, por
sugestão deles, rumávamos de carro para o norte. Meus neurônios, depois das
dificuldades iniciais, estavam se reprogramando com surpreendente rapidez para
dirigir pelo lado esquerdo da estrada e ao volante do lado direito de nosso
Ford Focus. Depois de uma visita à veneranda cidade universitária de Oxford,
deixávamo-nos guiar pelos comandos de Mildred, a voz britânica e feminina de
nosso GPS. Tínhamos feito reserva num bed & breakfast nos arredores da
cidade de Chippin Campden, que seria nossa base nas incursões pela região.
The Ebrington Arms (clique nas fotos para ampliá-las) |
No fim da tarde, depois de
levar-nos através de estradinhas vicinais impecavelmente asfaltadas que
cortavam pequenas propriedades rurais, Mildred deixou-nos diante do Ebrington
Arms, uma pequena hospedagem que vem recebendo viajantes desde 1730, erguida em pedra amarelada no tradicional estilo da região. Fomos
alojados em um dos cinco únicos aposentos e desfizemos as malas imaginando o
que nos aguardaria no jantar. Ebrington Arms é considerado o segundo melhor
“gastro pub” inglês fora de Londres. Na mesa do quarto, a indispensável chaleira elétrica e uma seleção de chás.
Quando descemos, por volta das
sete da noite, os dois pequenos salões, ambos com lareira, estavam lotados de famílias de
veranistas, provavelmente de Londres ou alguma outra cidade grande, os atuais proprietários de diversas das
antigas casas rurais dos arredores. No balcão do bar, adornado com reluzentes torneiras
de latão dourado com suas placas esmaltadas reproduzindo as marcas das diversas ales disponíveis na casa, fazendeiros
refaziam-se da labuta do dia bebendo generosas pints do líquido dourado. Ales
são as típicas cervejas inglesas, Marcus havia me ensinado alguns dias antes em Londres. Ao contrário das lagers, leves, claras e amargas como as
cervejas mais populares do Brasil, as ales
são mais douradas, menos amargas, ligeiramente doces e mais encorpadas. As
muitas centenas de marcas regionais exibem cada uma sua própria combinação de
aromas e sabores que misturam frutas e ervas em infinitas harmonizações. Os
barris de metal ficam, em geral, alojados no subsolo do pub, e ligados por tubulação de metal às torneiras de onde sai a cerveja na exata temperatura do andar de baixo. O fato de chegarem frias, mas não
geladas a ponto de anestesiar o paladar, permite que, em qualquer estação do
ano, seja possível apreciar em profundidade cada nota de seus sabores.
Os homens em torno do balcão
muito provavelmente não estavam atentos a essas sutilezas. Eram, vim a saber
depois, quase todos fazendeiros ou trabalhadores das pequenas
propriedades rurais em redor, que vinham bater papo e relaxar depois de cada dia
de trabalho pesado. Animado depois de descer uma primeira pint (caneca de cerca de 600 ml), puxei Suely comigo para o balcão. Pedimos nossa
segunda caneca e entramos na conversa. Charlie, um fazendeiro mais ou
menos da minha idade, a cor vermelha do rosto queimado de sol realçada pela
cerveja, engatou falação. E, claro, acabamos falando sobre o Brasil.
Como era de se esperar, os conhecimentos dele sobre nós não iam muito além do
futebol, este assunto que derrete a cerimônia em qualquer lugar do
mundo, mais ainda na Inglaterra.
Pouco mais tarde, de volta à
nossa mesa, resolvi encarar o “prato do camponês”, uma reforçada seleção de
linguiças, queijos, pão preto, feijão e batatas assadas. Veio na quantidade
ideal para quem tivesse passado o dia ordenhando vacas, lavando o curral,
arando o campo e consertando cercas. Para mim era bem além do necessário.
Apesar de meu empenho, não dei conta de tudo.
English breakfast |
Na manhã seguinte iríamos conhecer
as cidadezinhas e vilas centenárias dos arredores. Antes, porém, um típico English breakfast: mais linguiças,
feijão doce, tomates assados, queijos, ovos mexidos, pães rústicos de vários
tipos, manteiga, leite, café e geleias variadas. E chá com adoçante, para não
perder a linha. O gerente do turno da manhã era Johnny Corn. Parecia-se com aquilo
que na minha imaginação seria um típico inglês do interior: ruivo, robusto e bem
falante. Pedimos informações sobre os melhores lugares a serem visitados nos
arredores. Ele nos deu diversas dicas de vilarejos off the circuit e muniu-nos de mapas e sugestões. Aproveitei para
perguntar se ele não conseguiria para mim alguns porta copos, aquelas rodelas
de cartão, de algumas das marcas de cervejas da região para minha coleção. Ele ficou de
providenciar.
O Land Rover série III ainda dá duro em Ebrington. |
Deixando a hospedagem, nos
deparamos com um velho Land Rover série III, que combinava perfeitamente com o
cenário. Aliás, vimos diversos Land Rover pelas estradinhas, na maioria
Defenders mas também alguns Discovery. Nenhum deles desfilava nas mãos de motoristas urbanos e suas famílias; eles pegavam no pesado, puxando carretas cheias de
feno e esterco ou rebocando maquinário agrícola. Afinal, foi para isso que eles foram desenvolvidos.
Stanway House, em Santnway. |
Atravessamos pastos cheios de
ovelhas brancas de cabeças negras. Cotswold desenvolveu-se e tornou-se uma das
áreas mais ricas da Inglaterra no século XVII graças ao comércio de lã e à
florescente indústria têxtil, motor da revolução industrial. A classe média que dela surgiu encabeçou as
reivindicações que enfraqueceram os poderes da nobreza e redistribuíram as
forças políticas britânicas. A Revolução Gloriosa acabou por submeter a realeza
ao Parlamento, no que seria a primeira democracia ocidental moderna. Atravessando os
campos e bosques, volta e meia tínhamos que reduzir a velocidade para dar passagem a famílias de
perdizes e até um texugo. Seguindo o roteiro de Johnny, atingimos diversos
lugarejos como Snowshill, Upper Slaughter, Lower Slaughter, Stanway e Stanton, além da própria Chippin Campdem.
Cemitério e igreja em Snowshill |
Casamento em Lower Slaughter. Não, o de vestido comprido branco não é a noiva. |
À noite, de volta a Ebrington, Johnny entregou-me diversos
porta-copos e uma toalha com a logomarca de uma ale, usada para enxugar o fundo das canecas depois de enchê-las, para não molhar o balcão. Em retribuição,
ofereci-lhe uma flâmula do Fluminense Futebol Clube que sempre levo nas viagens para ocasiões como aquela, e ele pendurou-a em uma
das prateleiras do pub da hospedaria. Johnny, um fã de futebol, torce pelo
Stoke City, time que havia retornado havia pouco à primeira divisão inglesa. O
Stoke já teve seus dias de glória quando contava em suas fileiras com o lendário Stanley Matthews, um dos maiores astros da história do futebol inglês de todos os
tempos, e feito Lord pela rainha.
Johnny Corn, Sir Stanley Mattheus e a flâmula do Tricolor. |
De volta ao Brasil, enviei a Johnny um
e-mail comunicando que o Fluminense havia se sagrado campeão brasileiro naquele
ano. Que ele, então, exibisse com orgulho aquela flâmula. Em retribuição, ele
enviou-me uma foto segurando a flâmula tricolor defronte ao monumento em homenagem a
Sir Stanley Matthews, na cidade de Stoke. Valeu, Johnny!