"Uhuuu, vem cá, meu bem..." |
A morte é inescapável. Viver não
só é perigoso, como fatal, já disseram. Tudo bem, a senhora magra que veste
preto vai acabar nos conquistando um dia. Ela não cansa de tentar nos envolver
o quanto antes em seus braços esquálidos e nos beijar a boca com seu hálito de
terra. De minha parte, vou escapulindo enquanto posso. Já a vi de perto umas
três ou quatro vezes, ela valendo-se de enxame de abelha africana, tiroteio na
Praça XV e ressaca em Itacoatiara para tentar me conquistar precocemente. Como
um gato, vou gastando minhas sete vidas e desconversando a dona.
Algumas pessoas, porém, parecem
dizer “vem que eu sou facinho”, e flertam abertamente com a morte. Como bem
observou Leandro Hassum, basta verificar que algo tem tudo para dar errado que
surge logo um corajoso disposto a contrariar as leis da física. Lembrei-me
agora do infeliz padre que se ergueu pelos ares no litoral do Paraná pendurado
em mil bexigas de borracha, daquelas de festa infantil, planejando aterrissar vinte
horas depois em Mato Grosso do Sul. Esqueceu-se de combinar a rota com o vento,
que cismou de soprá-lo em direção contrária, mar adentro ou afora. O
padre (ou o que restou dele) só foi encontrado meses depois por um rebocador no
litoral de Maricá.
Por falta de tempo para me dedicar à tarefa de pesquisa,
deixo aqui uma ideia que pode render uma boa grana a alguém metódico: compilar
exemplos como este e publicá-los em livro, “Duzentas Maneiras Idiotas de Morrer”,
já deixo até o título pronto.
Também eu, que tenho a firme
intenção de morrer de velho, já quase morri de maneira idiota.
Saindo de um compromisso num hospital na cidade satélite de Taguatinga com destino ao Ministério da Saúde em Brasília, peguei o primeiro táxi que se apresentou, um Kadett branco, lembro-me bem. Hora do almoço, dia claro, pegamos a autoestrada que liga Taguatinga à capital federal, uns vinte quilômetros a serem percorridos em pista dupla, a oitenta, cem por hora. Do banco de trás, como faço habitualmente, puxei assunto:
Saindo de um compromisso num hospital na cidade satélite de Taguatinga com destino ao Ministério da Saúde em Brasília, peguei o primeiro táxi que se apresentou, um Kadett branco, lembro-me bem. Hora do almoço, dia claro, pegamos a autoestrada que liga Taguatinga à capital federal, uns vinte quilômetros a serem percorridos em pista dupla, a oitenta, cem por hora. Do banco de trás, como faço habitualmente, puxei assunto:
“Bacana o som do seu carro”.
Engatamos falação sobre autofalantes,
rock’n roll, entradas USB e coisas afins. Num suspiro da conversa, o motorista,
rapaz de uns trinta anos, atravessou a pergunta:
“O Senhor é médico?” Apesar de
ter-me visto saindo de um hospital, eu vestia terno e gravata; fiquei
imaginando como ele teria adivinhado. Confirmei seu palpite.
“O Senhor me desculpe, mas eu
venho tendo uns desmaios de uns tempos para cá, o Senhor tem ideia do que possa
ser?”
Fez-se uma pausa. O velocímetro marcava
cem por hora. Houvesse outro passageiro no táxi eu teria lhe dirigido um
olhar arregalado. Conduzi uma anamnese rápida e sugeri-lhe procurar um neurologista
com urgência, na sua profissão pode ser perigoso. Depois procurei me distrair
do sobressalto com a paisagem sem graça que desfilava rápida pela janela.
Chegando ao Plano Piloto, ele reduziu
a velocidade enquanto descíamos pela passagem subterrânea da rodoviária. Um sinal fechado com vários carros parados à frente era o último
obstáculo entre nós e a Esplanada dos Ministérios. Já tínhamos diminuído
bastante quando senti o motorista aliviar a pressão no pedal do freio. Ainda
imaginei que ele pretendesse trocar para a pista à nossa direita, que tinha
menos carros, mas não. A traseira do carro adiante foi crescendo, crescendo, até que a
atingimos violentamente. Pelo retrovisor interno, olhei nos olhos arregalados do
motorista.
“O que aconteceu, rapaz?”
“Não sei...”
O motorista do carro da frente
desceu, examinou a traseira destruída, as lanternas quebradas e caminhou em
nossa direção com aquela cara misto de raiva e incredulidade. Chegou bem a
tempo de presenciar o início dos espasmos e da salivação. Bem à minha frente, o
corpo do coitado esticava-se em arrancos de cachorro atropelado, diria Nelson Rodrigues, levantando-se
como uma taboa rígida do assento. Ao dar-se conta de que não teria como ressarcir-se
do prejuízo, pelo menos naquelas circunstâncias, o outro motorista deu um
suspiro e foi-se embora, largando pelo asfalto pedaços do que fora seu belo veículo. Desci para socorrer o epilético com a ajuda do motorista de
um Ômega placa branca que havia parado ao nosso lado e assistira tudo. Puxamos o meu motorista já aquietado para o banco do carona. Depois sentei-me ao volante e tentei
ligar o motor, que respondeu. Depois de agradecer a ajuda, dirigi até a emergência
do Hospital de Base de Brasília, onde meu desacordado condutor, agora
passageiro, foi colocado em uma maca e levado para a sala de atendimento. Estacionei
o Kadett, puxei do rádio da cooperativa e comuniquei o acontecido à Central,
dando o nome que constava no crachá afixado no pára-sol e pedindo que avisassem
a família. Depois fui ao posto policial do hospital, onde fiz registro do ocorrido e pedi que cuidassem das chaves e do veículo. Tomadas essas providências,
retornei à sala de emergência. Reencontrei-o bem na hora em que recobrava os
sentidos.
“Tudo bem? Sabe onde você está?
Lembra-se do que aconteceu? Lembra-se de mim?”
Olhar apalermado, ele não se
lembrava de nada.
“Fui eu quem lhe trouxe de táxi até aqui. Vim cobrar a corrida.”
Ralph, mais uma vez você encanta. Adoro ler seus contos, crônicas e ver o colorido de suas aquarelas. Parabéns! Avante! Rosário
ResponderExcluirQuanta história, hein rapaz? Adorei! Um abraço!
ResponderExcluirNossa, que história! Essa vc não tinha me contado... estava guardando para uma crônica, né?! rs Olha, imagino que deva ter sido apavorante viver a situação, mas, sinto muito, ela só poderia ter acontecido com vc, que conseguiria aproveitá-la tão bem numa crônica!
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