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O Vale do Amanhecer fica próximo de Brasília. |
Não sei se por conta da profecia do padroeiro Dom Bosco, que
ainda no século 19 sonhou com uma civilização de bem e abundância que brotaria dali
a 120 anos onde hoje está Brasília; não sei se é consequência dos cristais, que
são abundantes no Planalto Central. O fato é que Brasília parece atrair, se não
fatos inexplicáveis, pelo menos pessoas em busca de explicações para o
inexplicável.
Minha passagem profissional por Brasília se deu em um momento
de mudanças em minha vida. Recém-separado, morava sozinho em Niterói, ou
melhor, com a única companhia de meu pastor alemão, Argos. A casa ficava de
segunda a quinta aos cuidados de minha empregada Andreci, supervisão de minha
mãe e vigilância de Argos.
Numa sexta feira, no Rio, eu folheava aleatoriamente alguns volumes
na Livraria da Travessa, a original do centro, em busca de novas leituras.
Acabei lendo um trecho de um livro do Amyr Klink recém lançado sobre sua viagem solitária de
circunavegação do continente Antártico. O trecho que li relatava o incêndio em
seu veleiro causado por um aquecedor defeituoso, por sorte acontecido quando
ele estava na base brasileira na Antártica, o barco ancorado em frente. Com a imediata
atuação da guarnição da base, o incêndio foi rapidamente controlado e os danos
pequenos. Se as coisas acontecessem durante um cochilo em alto mar, talvez o
barco sofresse danos bem mais sérios e o Amyr não pudesse ter contado a história.
Comprei o livro e, retornando a Brasília, falei dele para
meus colegas de Ministério da Saúde. Iracema, uma simpática nordestina de meia
idade, funcionária de carreira do Ministério, que chamava carinhosamente os
colegas de “meu bichinho”, ouviu-me com atenção e disse que soube em primeira
mão da história, pois seu marido, capitão de mar e guerra, era o comandante da base na ocasião.
E que, por acaso, ele acabara de retornar da Antártica depois de uma missão de
seis meses. “Nossa, que coincidência”, eu falei. Falei também que essas
coincidências eram assunto que me interessava muito na época. Talvez pela minha
situação de então, eu estivesse mais atento a eventuais sinais, a alguma sincronicidade
que me indicasse que rumo minha vida tomaria a partir daquela desarrumação
momentânea. Pois Iracema me disse:
“Meu bichinho, meu marido sempre leva muitos livros para ler
na Antártica, e, entre os que ele trouxe de volta, tem um que é justamente
sobre essa tal de sincronicidade.”
Ora que coisa. Vendo meu interesse, ela ficou de me trazer o
livro emprestado.
Mal eu havia chegado ao Ministério na manhã seguinte, recebi
uma ligação de Niterói. Minha mãe me dava conta de que, por causa de uma falha na
bóia da caixa d’água, a empregada havia encontrado a casa inundada naquela manhã. Por sorte, muito por conta da separação recente, minha “decoração” na época era espartana, para
dizer o mínimo, e os prejuízos foram insignificantes. Dadas as orientações e refeito
do susto, fiquei esperando a chegada de Iracema e do livro. Mas Iracema não
apareceu naquele dia. Só depois da hora do almoço fomos comunicados do motivo: um cano havia
rompido em seu apartamento, molhando os tapetes e inundando tudo.
Sincronicidades.
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Dr. Ilídio passou a integrar nossa equipe no Departamento de
Saúde Suplementar do Ministério vindo de uma grande operadora de planos de
saúde, de onde acabara de sair por força de aposentadoria. Beirando os setenta,
era inteligente, de pensamento ágil e de extrema simpatia. Com sua figura
elegante, sempre levemente bronzeada e com seu bigode grisalho muito bem aparado,
conquistou a amizade de todos em pouco tempo. Era muito galante com o sexo
oposto e não perdia oportunidade para dirigir-se a toda mulher mais ou menos interessante
pelo predicado de “poderosa, energética e vitaminada”, galanteio que ele despejava
com tal habilidade que sempre arrancava sorrisos de moças e balzaquianas. O
toque de seu celular era um trecho de uma peça de Bach, e o anúncio de sua
caixa postal começava com “Que bom que você ligou; que pena, agora não posso
atender...”. Ficamos amigos. Soube do próprio que mantinha um consultório muito
concorrido, onde políticos influentes e outras personalidades brasilienses
buscavam tratamentos de rejuvenescimento. Não sei se a expressão anti-aging já existia na época, mas ele
certamente foi um precursor.
No aniversário de seus 70 anos, Dr. Ilídio convidou diversos
colegas do Ministério para uma festa ambientada na varanda e nos jardins bem
cuidados de sua elegante casa no Lago Sul. A certa altura, convidou a mim e
mais um ou dois colegas mais chegados para conhecer o interior da casa. Guiou-nos escada acima até seu quarto, um ambiente amplo onde uma estante abrigava diversos livros
religiosos e exotéricos. Ali, ele expunha-nos sua intimidade. Levou-nos a uma
ampla varanda. Sobre uma estrutura de madeira, repousava uma grande caixa. Pela
abertura voltada para diante, podia-se ver que o interior era forrado com uma
folha de metal.
“Aqui, nesta, caixa, eu pratico meditação todas as manhãs”.
“Mas por que na caixa?”, perguntamos.
“As camadas de metal potencializam a energia e auxiliam no
alcance de níveis mais elevados de concentração. Agora à noite, se vocês
olharem com atenção, poderão ver a energia na forma de pequenas fagulhas azuis
ou violeta.” E nos convidou para olhar o interior escuro da caixa. Tentei me
despir de todo o ceticismo e olhei demoradamente dentro da caixa.
“Viu?”
“Acho que vi alguma coisa, sim,” menti.
Um dia, Dr. Ilídio me pegou pelo braço e, reservadamente,
disse que tinha uma revelação crucial a fazer: em duas semanas, uma nave extraterrestre
estaria aterrissando em algum lugar da Chapada dos Veadeiros para resgatar uns
poucos terráqueos escolhidos, pois uma hecatombe era iminente. Eu e meu cão
Argos estávamos formalmente convidados a integrar o grupo dos escolhidos para
dar seguimento à saga da humanidade em algum outro ponto da galáxia. Li em seus
olhos que fazia o convite com a maior seriedade. Fiquei legitimamente honrado
com tamanha consideração. Porém, declinei do convite, não lembro que desculpa
dei. Ele, preocupado, insistiu nos dias seguintes para que mudasse de ideia.
Ao retornar a Brasília depois do fim de semana que a profecia
anunciara como sendo o derradeiro, senti-me um pouco constrangido em encarar Dr.
Ilídio.
“E então, o que (não) houve?” perguntei meio sem jeito. Acho que ele se referiu a um ligeiro engano nos cálculos, e
não se falou mais disso.
Depois que deixei aquele cargo no Ministério, tive alguns
poucos contatos telefônicos com Dr. Ilídio. Esta semana um amigo comum, que
manteve contato mais estreito com ele desde então, comunicou-me de sua partida
para algum plano mais elevado, onde ele já deve estar conquistando a simpatia de todos.
Boa viagem, Dr. Ilídio.