Mais um amigo, como tantos outros
fazem ou já fizeram, dá notícias interplanetárias daquele outro mundo, chamado
de Primeiro: “Aqui não há bala perdida”, diz ele. “Aqui nem sabem o que é bala
perdida. Aqui os primeiromundáqueos passeiam de madrugada pelas ruas desertas
sem medo de serem assaltados. Aqui se deixa a chave na ignição enquanto se
entra na farmácia para comprar alguma coisa. Aqui as estradas não têm buracos,
as escolas públicas ensinam, a saúde pública atende e cura, os políticos são honestos
e não têm mordomias, e os que se tornam políticos o fazem apenas pelo desejo de
servir à sua comunidade e ao seu país de Primeiromundo. Aqui...”
Leio e ouço tudo com um misto de
inveja e humilhação. Meio que como o pai de um vagabundo drogado assiste o
filho do vizinho formar-se com louvor e conseguir um belo emprego. Suspiro.
Acabei de assistir o noticiário das oito, o que não traz nenhum consolo. Pelo contrário, só serve para acentuar o desconforto. Mentalmente me esforço
para esboçar uma reação. Afinal, nas grandes cidades de Primeiromundo há, sim,
violência e não se pode dar sopa para ladrão na maior parte delas. Volta e meia
por lá um louco entra com fuzil e metralhadora numa escola ou no antigo local
de trabalho e mata dezenas sem mais nem menos (parece que nisso já começamos a copiar o Primeiromundo). Outros mantêm
mulheres escravizadas e trancafiadas por décadas no porão de casa em
vizinhanças abastadas e tranquilas. Não é nenhum paraíso, com certeza. Mas (ai!)
sim, lá as pessoas respeitam mais as leis, assassinam menos, assaltam menos,
corrompem menos e são menos corrompidas. E, quando o fazem, há muito mais
chance de pagarem por seus crimes. Lá o cidadão vê os impostos retornarem em
forma de estradas bem sinalizadas e pavimentadas, ruas limpas e seguras, e
funcionalismo público funcionando para o público. A burocracia é mínima e
qualquer um que queira produzir riqueza e dar empregos é incentivado a isso.
Não há como negar: na zona do
Euro, no Canadá, na Austrália, no Japão, na Coréia do Sul e nos Estados Unidos
(este com algumas ressalvas) a civilização avançou mais. Há menos improviso e
mais previsibilidade. Sei dos que acham essa previsibilidade monótona, um
túmulo da criatividade. Sei dos que louvam o jeitinho, a improvisação, o deixar
para última hora, o compadrio, a cordialidade malsã que facilita as coisas para
os amigos, mas só para os amigos; dos que se regozijam com a intimidade do
guardador de carros que, debaixo da placa de proibido estacionar, nos chama de
chefia, de amizade ou de mermão, pedindo
“deixa solto, dezinho adiantado, que eu já tô
saindo, fica sussa que o guarda tá na
minha mão e não multa”. Essa relativização das regras, que nunca deixa de me horrorizar,
encanta alguns poucos estrangeiros que, um dia, se descobrem brasileiros que
foram entregues pela cegonha em endereço errado. Para mim, não passa de
corrupção no varejo, praticada por aqueles mesmos que a execram e condenam nos
poderosos. Serão os governantes corruptos que, pelo mau exemplo, autorizam a
corrupção miúda ou somos um país de hábitos corrompidos que nascem do povo e alcançam
o poder? Talvez as duas coisas? Realmente não sei.
Entendo quem desista do Brasil e
parta para Primeiromundo em busca de uma vida melhor para si e seus
descendentes. Que, por sua vez, vão nascer ou se naturalizar cidadãos de
Primeiromundo e para quem do Brasil restará apenas um sobrenome Silva e nada
mais. Me pego às vezes questionando se vale a pena insistir em continuar sendo
brasileiro. Nem mesmo sei se meus netos nascerão aqui ou em terras mais gentis.
Mas sei, sim, que quem faz um
país é seu povo. Não vejo a pátria como mãe, e sim como filha. Minha pátria
cresce ou definha conforme meu trabalho, meu esforço, meu cumprimento ou
atropelo das regras e da lei, com minha gentileza e meu cuidado para com ela e
para com o povo que, comigo, nela habita. Como uma filha, minha pátria amadurece
e desenvolve seu caráter com minhas críticas e minha indignação, com minhas
cobranças e minha vigilância. Se ela não é gentil, talvez seja porque, até
hoje, dela muito se espere e se tire, e a ela pouco ou nada se dê. O lugar onde
o acaso me plantou para tentar fazer um mundo melhor calhou de ser aqui. Outras
pátrias que não a minha podem ser mais resolvidas, menos rebeldes e mais gratas.
Mas não são a minha Pátria Filha.
Posso ser ingênuo, mas não desisto dela.