Sexto andar. Caminhei pelo
corredor mal iluminado, atravessando cheiro de tempero, som de frigideira no
fogo e de criança chorando, até me ver diante da porta do 607. Dez apartamentos
por andar, quitinete com certeza. Prédio simples de pessoas simples. Olhei de
novo para aquele enorme buquê de flores em meus braços. Sofria agora mais de
uma curiosidade doentia do que exatamente de raiva. Dei-me conta de que a cena a
seguir seria inescapavelmente ridícula, mas o folhetim agora comandava o
espetáculo. Recuar não era mais uma opção; se a raiva havia me trazido até
aqui, agora era o desejo insano de saber quem era ela que não me permitia
voltar atrás. Uma personal trainer
jovem e durinha? Alguma secretariazinha vinda do interior? Uma jovem estagiária
de direito? Como quem salta pela primeira vez de um trampolim alto demais,
respirei fundo e toquei a campainha. Um cachorrinho latiu freneticamente atrás
da porta.
xxxxx
Meia hora antes eu saía de um
cartório na Rua do Carmo, no Centro do Rio. Ainda era cedo para o almoço, então
resolvi aproveitar a manhã fresca para caminhar pelo Centro, coisa que, antes
de me aposentar do Ministério da Cultura, fazia com prazer e frequência. Parei
defronte à livraria na Travessa do Ouvidor e fiquei olhando a vitrine temática.
Era início de junho, semana do dia dos namorados, e o tema era romance, amor e
ciúme. Uma edição nova dos livros de Nelson Rodrigues era destaque. Pensei em
entrar, mas decidi caminhar até o Largo de São Francisco para garimpar nos
sebos alguma edição antiga e ilustrada sobre orquídeas, a atual paixão de
Norberto. Depois poderia ligar para ele no escritório, fazer uma surpresa e
convidá-lo para almoçarmos juntos. No caminho, subindo pela Rua do Rosário,
parei na livraria Kosmos para examinar algumas das preciosidades da vitrine.
Por acaso virei a cabeça rua acima em direção ao Mercado das Flores e vi meu
marido. Ele escolhia cuidadosamente rosas cor de chá, uma, duas dúzias,
calculei, e depois as entregou ao vendedor, orientando quanto às outras florezinhas
e folhagens que comporiam o buquê. O coração aos pulos, controlei a vertigem e
entrei na livraria para acompanhar a cena por detrás da vitrine. Depois de
escrever um cartão e pagar, Norberto desceu em direção à Rio Branco, passando
sorridente bem defronte de onde eu estava, os lábios contraídos assoviando
baixinho alguma melodia inaudível, como fazia sempre que estava feliz e
despreocupado. Rosas cor de chá. Ele nunca me dava flores, achava
desnecessário. Se um dia me desse, eu deveria desconfiar de traição arrependida,
brincava.
Saí e acompanhei suas costas se
afastando, largas e vulneráveis, rua abaixo. Rosas cor de chá. Voltei resoluta
e entrei loja adentro. Identifiquei o buquê atrás do balcão, agarrei-o e saí para
a rua sem dar atenção aos protestos do vendedor que me seguiu agitando os
braços por alguns metros e depois desistiu: já estava pago, prejuízo não teria,
aquilo era confusão de ciúme, mais seguro deixar pra lá. Andando o mais rápido
que os saltos altos me permitiam, invadi o táxi parado na esquina. “Para onde,
madame?” Arranquei o envelopinho branco grampeado no celofane e li no lado de
fora o endereço, uma rua do Catete, a letra dele. E o cartão? Haveria um nome,
um nome que não era o meu e uma declaração melosa, não condizente com um homem
de idade grisalha? Alguma obscenidade de fauno tardio? O cartão saiu do
envelope com as letras voltadas para baixo. Virei devagar. “Débora, nunca
poderei lhe agradecer o bastante por toda a felicidade que tenho no amor. Feliz
aniversário. Betinho.” Aquelas palavras me causaram um estremecimento, levando
de enxurrada qualquer esperança que eu ainda tivesse de que tudo não passasse
de um mal entendido, alguma obrigação profissional, o aniversário de alguma tia
obscura. Mas não havia nenhuma “tia Débora”. Débora não era nome de tia, era
nome de mulher, com todos os significados que um homem pode atribuir a essa
palavra. Uma outra mulher. Mas por quê? Tantas vezes ou ouvira amigas dizendo
que os homens são todos iguais e, mesmo concordando em palavras ou sorrisos
cúmplices, guardava apenas para mim a certeza de que nem todos são iguais,
Norberto não era igual. Não era. Até hoje. Seria eu assim tão ingênua? O fato
de, depois de vinte e seis anos de casamento, ainda termos relações sexuais
intensas e apaixonadas, não tão frequentes, é verdade, mas talvez mais intensas
do que no início de nosso relacionamento, não significariam nada para ele? Será que nossa parceria, nossa cumplicidade,
nossa capacidade de fazer rir um ao outro não seria capaz de blindar a nossa
relação contra a volubilidade das atrações físicas? Nem com toda a minha disciplina
e suor das horas e horas semanais que eu dedicava ao spinning e à musculação? Eu
era uma coroa em forma, mesmo considerando as marcas inescapáveis do tempo na
pele e nas linhas do rosto. Mas nada disso tinha sido suficiente, então. O
fantasma da infidelidade havia finalmente se materializado em nossa vida. Por
um momento desejei ter sido menos honesta nas diversas vezes em que fora
assediada nesses anos de casamento, ter praticado alguma forma de vingança
preventiva, ter ficado com algum saldo na conta da infidelidade para que
servisse de lastro agora. Bobagem. Teria carregado a culpa sem nunca ter certeza
de que receberia o troco. Eu, pelo menos, tinha apostado no nosso amor. Se ele
não fizera o mesmo, pelo menos seria eu a sair disso tudo com alguma
superioridade moral. Ele seria apenas mais um medíocre como todos os outros
homens. Mas subitamente voltei a me lembrar de que havia o terceiro vértice do
triângulo. Outra mulher. A imagem de mil mulheres fundiu-se diante de meus
olhos em uma única imagem arquetípica de fêmea primal. Aquela que todas as
mulheres temem a existência, mas afastam a ideia do pensamento. Talvez alguém
que já me tivesse sido apresentada, alguns homens têm um prazer calhorda em ver
as duas trocando beijinhos amistosos. Em alguns minutos essa mulher, Débora,
passaria a ter um rosto, a ter corpo, a ter voz. Alguém que eu culparia pelo
resto da vida pelo fim de meu casamento. Falta pouco, Débora. Me aguarde.
xxxxx
Ouvi passos, depois diversos
ferrolhos e fechaduras sendo destrancados. A porta se abriu um pouco, retida ainda
por uma corrente de segurança. “Pois não?”
Não era nenhuma jovem atrás
daquela porta, mas uma senhora de cabelos pintados de um vermelho francamente artificial,
presos por grampos enfiados com descuido. Só então me dei conta de que
dificilmente encontraria a outra em casa no meio da manhã, que idiota era eu.
Mas só me restava ir em frente.
“É aqui que mora a Débora? Essas
flores são para ela.”
“Débora? É, ela também mora aqui,
de certa forma. E quem manda as flores?”
Ela estava desconfiada, com
certeza, afinal são tantas as notícias de mulheres idosas roubadas e agredidas
dentro de suas residências. E não havia porque eu mentir agora.
“O Norberto. Pelo aniversário da
Débora.”
Ela abriu bem os olhos e olhou-me
de cima abaixo, sem conseguir disfarçar a surpresa.
“Então você deve ser a Sandra,
não?”
Assenti com a cabeça, e ela então
abriu a porta.
“É melhor você entrar. Não repare
a bagunça, estou no meio da arrumação.”
Apanhou um cigarro já aceso no
cinzeiro sobre a mesa de centro e deu uma tragada, apontando uma poltrona gasta
com panos de tricô nos braços e no encosto. O cãozinho velho, de olhos
esbranquiçados pela catarata, cheirou meus pés e minhas pernas e depois pulou
para cima do sofá.
Ela sabia meu nome, sabia quem eu
era. Seria alguma tia ou a mãe da Débora, com certeza. Norberto já devia ser
íntimo daquela salinha simplória, devia ajudar com as despesas. Aquele
televisor novo de tela plana que destoava do resto da mobília deveria ser
presente dele. Tudo tão clichê.
“Posso?” e ela estendeu os braços
em minha direção. Levei alguns segundos para entender que ela pedia as flores. Ela
olhou-as com carinho, quase as acariciando. Leu o cartão que eu havia colocado
de volta dentro do buquê e levou as flores até a pia da cozinha conjugada. “Mais
tarde eu arrumo na jarra.” Depois se arriou pesadamente no sofá e ficou
coçando as costas do cão, como quem procura as palavras certas. Deu outra
tragada e olhou para mim, fitando-me demoradamente.
“Sempre imaginei como você seria
pessoalmente. Você é bem bonita. E tem muita sorte. O Norberto é um homem como
poucos.”
A essa altura eu estava completamente
desorientada. “E quem é a senhora?”
“Meu nome é Janete. Mas já fui
Débora há muito tempo atrás. O Betinho ainda me chama assim. Se você leu o
cartão deve estar bem confusa e assustada. Pode relaxar, querida. Vou lhe
contar uma história. Na verdade, eu conheci o Betinho quando ele ainda era bem
jovem, um garoto magrelo e assustado. Veio pela mão do pai, o velho Norberto.
Você chegou a conhecê-lo? Não? Pois bem, ele era um cliente certo quando vinha
lá de Campos para resolver seus negócios na capital. Ele era fazendeiro de
cana, dono de engenho, muito rico. Aqui no Rio, sempre batia ponto na Casa Rosa
lá em Laranjeiras. Eu era sua favorita e era bem bonita, bonita como você nem é
capaz de suspeitar olhando essa carcaça velha aqui. Pois então, um dia o velho
Norberto trouxe o filho, que era “para iniciar ele nos assuntos de amor”, como
ele disse. Queria que ele fosse comigo, que eu lhe ensinasse as coisas que um
homem deve saber. Não era novidade aquele tipo de pedido para mim. O Betinho tentava
estufar o peito, tinha os pelos ralos por cima da boca crescidos, mas tremia
por dentro e suava por fora. Peguei ele pela mão e levei-o para dentro. Quando
voltamos, o pai me chamou no canto e perguntou: “E então?” Eu disse: “Não sei
que raio de instrução esse menino recebeu, mas ele agiu como quem enfia um naco
de carne no espeto. Não levou três minutos. Uma lástima, tem que aprender tudo
do começo.” O velho coçou o bigode pensativo por um tempo. Depois disse que
Betinho viria para o Rio dali a algum tempo para estudar Direito. Resolvi então
lhe propor uma coisa. Se ele me pagasse um fixo por mês eu poderia introduzir o
garoto nas artes do amor, coisa bem diferente de fazer sexo. Faria dele um
homem. Mais que isso, faria dele um amante capaz de prender uma mulher sem
precisar vigiá-la ou pôr coleira. O velho aceitou o negócio. Betinho veio morar
ali por Botafogo e vinha até a Casa toda quinta feira, depois da aula. Durou
alguns meses, até que eu disse “Você está pronto, já é um homem.” Depois fiquei
muitos anos sem vê-lo.
Ela ficou com o olhar perdido em
algum ponto do lado de fora da janela com um leve sorriso no canto da boca. Deu
outra tragada no cigarro e levantou-se.
“Vou botar um café para passar, só um
minutinho, meu amor.” E dirigiu-se para a pia da cozinha. Os quadris eram
largos, mas a cintura ainda era fina e persistia um leve gingado no andar, apesar
dos chinelos baixos. Tentei olhar aquela silhueta com olhos de arqueóloga, e não
me foi impossível imaginar o quanto ela deveria ter sido bonita. De lá ela continuou:
“Há uns quinze anos atrás o
Betinho me achou aqui, não sei como. Deve ter sido trabalhoso. A gente pensa
que não deixa pistas, mas é engano. Ele me contou sobre você e os filhos, como vocês
eram felizes, como ele amava você. Ele achava que me devia algo por isso, sei
lá. Depois daquele dia nunca mais o vi. Mas desde então recebo rosas no dia de
meu aniversário, doze de junho. Dia dos namorados. Engraçado, não? Parece coisa
do destino. Dia dos namorados.”
xxxxx
Isso aconteceu há cinco anos. Norberto
teve um infarto fulminante há três. Sofri muito e ainda sofro a falta dele. Mas
não maldigo a sorte, poucas mulheres foram tão felizes com seu homem como eu
fui. Depois daquele dia no Catete, nunca mais revi a Débora. Ela não sabe que
Betinho morreu. Continua a receber rosas no Dia dos Namorados.