Um rebanho de cardiologistas e uma felina predadora. |
Estou na fila de retirada de
material de um simpósio médico internacional em São Paulo. Serão dois dias,
sábado e domingo, em horário integral, onde eu e outros cardiologistas
tentaremos nos inteirar dos mais recentes avanços na fronteira da ciência
médica. Quase todos estão aqui graças aos incentivos para educação médica continuada
da indústria farmacêutica, o que, em outras palavras, significa que estamos
aqui graciosamente. O que não significa que haja muita graça nesta fila de
médicos, quase todos veteranos, a julgar pelos abdomes convexos e pelas cabeças
grisalhas ou calvas. São poucos os jovens; a indústria farmacêutica tende a
investir em cardiologistas com clientela estabelecida e com calos de
estetoscópio nos canais auditivos. Os colegas paulistanos são a maioria e fazem
questão de confirmar o estereótipo que existe na minha cabeça: branquelos bem
barbeados com olhos esverdeados e sobrenomes sempre terminados em “eli”, “ali” ou
“ani”. Há alguns de olhos escuros, cabelos castanhos e narizes avantajados, os
necessários representantes médicos das tradicionais famílias libanesas cristãs-maronitas
da Paulicéia. Independente da origem familiar, uma variação infinita sobre o
tema listras-verticais-finas-coloridas-sobre-fundo-branco impera nas camisas de
meus colegas, e minha própria não é exceção. Sou uma zebra em uma manada
de zebras. Mas cada profissão tem seu código de vestuário, fazer o quê? Fosse
um congresso de homeopatas, talvez houvesse alguns de bata de algodão e sandálias
sem meia, mas não é o caso. A exceção na fauna cardiológica masculina, se é que
poderíamos incluí-lo na categoria, é um rapaz com camisa para fora da calça skinny,
jaqueta preta de couro envelhecido e um par de sapatos de verniz de bico
finíssimo, capaz de matar formiguinha no canto do consultório. Um metrossexual,
para dizer o mínimo, ou um glorioso antílope pastando em meio a nós, zebras sem
graça.
Mulheres, há poucas. Cardiologia
ainda é uma especialidade de homens, pelo menos na minha geração. Quanta diferença
em relação ao congresso de endocrinologia em que me meti há um ano! Senti-me o
Marcello Mastroianni no filme “Cidade das Mulheres” de Fellini. As poucas
representantes femininas aqui fazem, em sua maioria, o figurino deselegância-discreta,
reforçando o mito. Há, no entanto, uma exceção gloriosa na fila: uma bela quarentona e suas pernas
perfeitamente torneadas prudentemente envolvidas em finas meias de nylon, que despontam de sob um vestido curto em padrão de oncinha para equilibrarem-se em saltos altíssimos. Os longos cabelos alisados e alourados à custa de várias
centenas de reais emolduram o olhar felino que espreita a nós, o rebanho
listrado. Distraio-me observando aquelas pernas, em especial quando a dona, aparentemente sem
motivo, debruça-se sobre o balcão de atendimento, revelando alguns centímetros
a mais de suas possantes patas traseiras de predadora.
Pego o material quando chega a
minha vez. Depois observo as várias rodinhas de médicos sorridentes que se
cumprimentam estapeando-se nas costas com variados graus de vigor:
ex-professores e seus ex-alunos, ex-colegas de plantão, de faculdade e de
residência. Talvez este seja o ponto alto dos congressos e simpósios. Não quero ser uma exceção solitária. Há poucos niteroienses aqui, mas logo avisto um amigo e mais outro e
mais outro. Seremos companheiros nos próximos dois dias, trocando impressões técnicas
e tentando absorver da melhor maneira possível as novidades que nos serão expostas.
Relembraremos velhas histórias, contaremos casos, clínicos e pessoais,
dividiremos uma ou duas confidências. À noite, encorajados por um bom
vinho, contaremos piadas e daremos risadas à volta de uma mesa de pratos
de massa. E assim são os congressos médicos.
Ralph,
ResponderExcluirgostei muito. Adoro a forma de como você registra as suas observações.
Abraços,
Rosário
Adorei saber como são os congressos que reúnem os médicos, esses seres superiores, verdadeiros mistérios para mim, mera mortal!
ResponderExcluir