Meus amigos mais próximos sabem:
eu já tive minha cota de convivência e proximidade com o centro de decisões do
Brasil. Entre 1998 e 2000 trabalhei no Departamento de Saúde Suplementar do Ministério
da Saúde, que logo seria transformado na ANS e transferido para o Rio.
Meu primeiro casamento tinha acabado
de se desfazer quando recebi o convite para integrar a equipe que teria a missão
de regulamentar a recém-promulgada lei dos planos de saúde. Fiquei em dúvida,
mas algumas pessoas me disseram o equivalente a “sua vida já está toda revirada
mesmo, uma revirada a mais não fará diferença”. Tinha sua lógica. Aceitei.
Primeira tarefa: adequar o guarda
roupa. Era (e voltei a ser) daqueles que só vestem terno e gravata em
casamento. Tive que treinar a dar nó em gravata. Passei a ter dois nós (pasmem!) no
meu repertório: o de duas voltas, para gravatas de tecido fino, e o de uma
volta apenas, para tecidos mais encorpados. Tive que comprar alguns ternos e
camisas, além de gravatas e aprender a combiná-los, coisa que fui conseguindo
aos poucos observando homens que me pareceram elegantes e reportagens de moda masculina nas revistas. Acabei concluindo que
gravatas listradas não têm erro: são sempre sóbrias e corretas. Cheguei a ter
uma atração inusitada por elas. Conferia sempre as vitrines e comprava sempre
que descobria uma que me chamasse a atenção. Fazia questão de fazer um nó gordo
e sem pregas, e não descuidava no comprimento exato, apenas tocando o cinto da
calça.
Embarcava, ainda sonolento, no avião das sete da manhã
toda segunda feira no Galeão, onde, invariavelmente embarcava também o ministro da
Fazenda da vez: primeiro o Gustavo Franco e mais tarde, quando FHC abandonou a
âncora cambial em 1999, o Armínio Fraga. Antes das nove eu já estava a postos no Ministério. Voltava de Brasília no voo das seis da
tarde da quinta, na companhia da bancada federal do Rio: Miro Teixeira (um
gentleman com voz de barítono), Jandira Feghali, Fernando Gabeira, Jair
Bolsonaro (que tinha o passatempo de mau gosto de falar mal da ex-mulher para
quem quisesse ou não quisesse ouvir), Francisco Dornelles e o então ainda gordo
Roberto Jefferson, entre outros literalmente menos votados. Este voo ainda hoje é tradicionalmente
conhecido como “esperança de suplente”. E eu lá.
Aluguei uma quitinete na Asa Norte
com a verba da ajuda de custo. A princípio, uma sensação de solidão
angustiante e opressiva, agravada pela secura de final de inverno no Planalto, que deixa os
gramados queimados e o ar difícil de respirar. Mas, aos poucos fui travando amizade
com os muitos colegas em cargos comissionados no mesmo departamento, vivendo
situação de igual solidão. Acabamos por nos mudarmos todos para um mesmo hotel
antiguinho no Setor Hoteleiro Norte e passamos a compartilhar nossas solidões.
Dali, saíamos para caminhadas matinais no Parque da Cidade, tomávamos café e depois rachávamos o taxi até o Ministério. Na época, eram tolerados
táxis piratas na capital, que cobravam menos pela corrida. Logo descobrimos que
não valia a pena a economia. Os carros eram velhos e mal cuidados. Uma vez, o
motorista cheirava tão mal que fomos todos como cachorros, com a cabeça pra
fora da janela e o nariz ao vento, menos o colega que estava no meio no banco
de trás. Coitado.
Havia a “turma do pão de queijo”,
proveniente das alterosas, que esvaziava literalmente as cestas do quitute que
lhes dava o nome no café do hotel. Dessa turma fazia parte o Faustinho, que
ainda viria a ser diretor da ANS. Havia gente de todo o Brasil trabalhando no departamento, bem poucos de Brasília. Esta é, talvez, a característica mais
marcante da cultura brasiliense: quase todos ali são “estrangeiros”, exilados, e a
maioria, mesmo vindo a residir definitivamente em Brasília, sente-se
desterrado. Os sotaques dos quatro cantos do país se misturam nas salas e corredores da Esplanada. Aos poucos fui me tornando expert em adivinhar a origem de meus colegas e aprendendo gírias e expressões de todo o Brasil.
Estava há, talvez, dois meses por
lá quando caíram as primeiras chuvas, um toró no meio da tarde. A vontade que se tem é de
ir para o meio da rua e ficar chutando e chapinhando nas poças d’água. O clima
e o humor das pessoas melhora como que por decreto. Em cinco dias, se tanto, o
verde ressurge vigoroso nos gramados, os pássaros passam a cantar e os carros a
derrapar e a bater. A poeira fina acumulada, quando molhada, vira sabão. Até serem
lavadas pela continuidade das chuvas, as ruas de Brasília se transformam num enorme rinque de patinação para automóveis. Nas “tesourinhas”, tem sempre um ou mais
carros acidentados. As noites ficam frescas, e , ao contrário do Rio, o clima em Brasília é
ameno no verão. No jardim do hotel havia um pé de dama-da-noite que perfumava
as noites de todo o quarteirão em dezembro.
À noite, o programa dependia do
dia da semana. Nas quartas nos reuníamos no restaurante do hotel, que não
funcionava à noite, mas onde os funcionários nos emprestavam pratos, copos e talheres e ligavam a TV pra assistirmos futebol compartilhando pizza acompanhada de cerveja.
Nos demais dias, começamos, aos poucos, a explorar a vida noturna de Brasília.
(continua)
Olá Ralph:
ResponderExcluirExcelente.
Parabéns pela crônica.
Continue.
Amigo, a cada postagem me deslumbro com tamanha capacidade de observação e facilidade em registrar. Fico no aguardo da continuação.
ResponderExcluirAinda em tempo: Parabéns pelos prêmios recebidos!
Mal posso esperar pela continuação...
ResponderExcluirMuito legal! Seus textos têm sempre uma trajetória bem clara, é legal perceber... este vai do específico pro geral ;-) Beijos!
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