Como toda grande cidade
turística, Veneza tem seu lado público e seu lado íntimo. O lado público todos
conhecem, de perto ou de longe: a Praça de São Marcos, com seus pombos e sua
Basílica, a Ponte dos Suspiros, o Palácio Ducalle, as gôndolas e o Grande
Canal. Já o lado íntimo é aquele que os moradores conhecem bem e que o turista observador
tenta descobrir no pouco tempo de que dispõe. Num pequeno punhado de dias,
trava um jogo de sedução, para merecer da cidade a revelação de intimidades,
detalhes e mesmo defeitos que normalmente só se mostram nas relações antigas e
sem pressa.
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Veneza não tem árvores.
Melhor dizendo, quase não as tem. Consequentemente, é um grande e monótono
deserto para amantes e observadores de pássaros, uma vez que pássaros precisam
delas para alimento, pouso e abrigo. Não avistei um mísero pardal. A exceção
são os pombos, claro, e uma ou outra gaivota nas grandes rivas que margeiam a laguna. Os pombos são onipresentes. A maior
parte dos possíveis locais de pouso para os incontinentes columbídeos nos
prédios importantes de Veneza são guarnecidos com longos espetos de aço de
ponta afiada. Em meio a toda essa monotonia ornitológica fiz um flagrante
surpreendente: um pombo colorido, em diversos tons de verde, se destacava em
meio às monótonas nuances de preto e branco de seus semelhantes. Intrigado, saí
perguntando a razão daquelas penas tropicais aos demais pombos da praça. Os
pombos arrulhavam com evidente desdém, mas nenhum se dispôs a esclarecer o caso. Uma
gaivota me chamou para um canto da praça e decifrou o mistério: dois anos
antes, num programa de intercâmbio entre as duas cidades carnavalescas, uma
pomba veneziana pousou no Rio de Janeiro. Veio ela, por obra de cupido, a
atrair a simpatia de um papagaio, que se prontificou a apresentar-lhe as muitas
maravilhas cariocas, programa esse que incluía uma passada em seu cafofo com
vista para os Arcos da Lapa. Ah bom.
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Observei com atenção as
janelas das casas de Veneza, fotografando muitas, inclusive. Não vi nenhuma que
fosse guarnecida de ripinhas paralelas e inclinadas. As únicas venezianas que
vi nas janelas eram as de carne e osso.
Quase despercebidos em meio
ao mar de turistas, existem os moradores de Veneza. Os números são
massacrantes: mais de 21 milhões de turistas em 2007 para uma população
residente de 60 mil, e que vem reduzindo-se ano a ano. Os preços exorbitantes
dos imóveis vêm afugentando os venezianos da gema, que resistem em casas
herdadas há muitas gerações. Um pequeno estúdio de 36 m2 vale cerca de 260 mil
euros, mais de um milhão de reais.
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Talvez a melhor coisa a se
fazer em Veneza seja perder-se no labirinto de ruelas, cruzando canais
secundários e terciários, subindo e descendo as centenas de pontezinhas. Não há
automóveis, não há motocicletas nem mesmo bicicletas. Devem ser proibidas pela
legislação local ou simplesmente os possíveis ciclistas são desencorajados pelo
sobe e desce de degraus a cada ponte. Então, tudo é feito por via aquática. A
ambulância, a viatura dos bombeiros, os taxis, os caminhões de mudança e os que
abastecem de mercadorias o comércio da cidade, tudo existe e funciona em versão
flutuante e motorizada. Afastando-se dos principais pontos turísticos,
reparamos nas donas de casa abastecendo-se em mercearias, mães levando e
trazendo suas crianças das escolas, profissionais indo e voltando do trabalho. As
vielas vão se estreitando e em algumas delas pode-se tocar ao mesmo tempo as
paredes dos dois lados da rua. Uma
charmosa favela medieval. Descobrimos por acaso uma oficina pequena de marcenaria
náutica, onde um artesão dava retoques finais em remos de gôndolas. Fabricava também aquelas
assombrosas obras de design que são as peças maciças de madeira onde os remos
se apoiam.
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Não passeamos de gôndola.
Muito caro. Pareceu-me que todas as gôndolas de Veneza haviam sido alugadas por
turistas japoneses.
Ser carteiro em Veneza é uma
proeza. As casas não seguem numeração sequencial ao longo das vias e as vias
têm designações diferentes conforme seu porte. Fondamentas são as ruas que margeiam os canais; rivas são as grandes fondamentas, que geralmente dão para a
laguna; calles são ruas; campo é uma praça e corte é um pátio; rio terra
é um antigo canal aterrado; salizada
é uma rua principal; ruga é uma rua
comercial, enquanto sotoportigo é uma
passagem coberta, por baixo de um imóvel, geralmente ligando duas calles. Vi dois carteiros discutindo
vigorosamente, provavelmente sobre a provável localização de um endereço
postal. Deve ser uma cena comum.
No final de uma tarde,
depois de esperar em vão que a companhia aérea localizasse minha bagagem extraviada
havia já três dias, perguntei ao gerente do hotel onde poderia comprar alguma
roupa para sobreviver até que minha mala fosse entregue (o que só acabou
acontecendo no sexto dia de viagem, quando eu já estava deixando Florença). Ele
indicou-me a área no mapa: um pouco acima da ponte Rialto, na margem oriental
do Grande Canal. Parti do hotel em passo acelerado para o local indicado. Talvez
pelo caminhar decidido, despido da máquina fotográfica e sem mapa na mão,
comecei a ter a ilusão de que era visto pelos passantes como um autêntico veneziano.
Vi-me tentado a acenar aleatoriamente para conhecidos imaginários a destra e a sinistra, gritando alto “Ciao,
Adamo! Ciao, Filomena!” Quando dei por mim, havia
atravessado toda a cidade e estava em algum lugar da margem norte, de frente
para a laguna, num corte tranquilo onde bambini brincavam sob o olhar de suas mamas e nonas. Deliciosamente perdido, quase um anônimo veneziano.
Mais fotos de Veneza:
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De manhãzinha, a Chiesa di Santa Maria della Salute. |
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Equivalente veneziano do carro estacionado na porta de casa. |
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"Favelão medieval" |
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Sol nascente: sob a arcada do Palazzo Ducalle. (fotógrafos madrugam) |
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Clap, clap clap. As luvarias venezianas são tradicionais. |
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Acrescente barulho de pratos e talheres, um cheirinho de comida na panela e um bebê chorando: também mora gente em Veneza. |
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Pausa para um panini. |
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Numa vitrine, baralho ilustrado por Milo Manara, ícone italiano do quadrinho erótico. |
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Estado atual da obra deste artista depois de mais de um mês trabalhando no registro da fachada de seu próprio estudio em pátio (corte) escondido de Veneza. |
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O Grande Canal, com a Ponte Rialto ao fundo. |
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Sem legenda. |
Estás escrevendo cada vez melhor!!Acho que pelo fato de vc não ser muito de "enfiar o pé na jaca",sua memória é melhor que a dos outros e seu conhecimento se torna mais duradouro,suas descrições mais preciosas...Veneza é O LUGAR!!!
ResponderExcluirExcelente... fora a última foto - DELETA! :-)
ResponderExcluirNunca estive em Veneza, mas com seus relatos parece que cresci lá. Muito bom!!!!Samara
ResponderExcluirPrego, Ralph! Relato maravilhoso e fotos sensacionais! A última, então, é impagável!!!
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