Mikhail era novo na empresa e
aquela seria a primeira vez em que participaria da Reunião Estratégica, como
representante do Departamento Comercial.
Passara os últimos dias e algumas noites levantando dados, montando
planilhas e criando gráficos para fazer bonito diante dos novos colegas e de
seus superiores. “Só se tem uma oportunidade de causar uma boa primeira
impressão”, a frase clichê ressoava na sua cabeça desde que a data da reunião
fora anunciada. No dia D teve cuidados adicionais ao escolher o que vestiria
depois do banho matinal. Depois de pronto, olhou-se no espelho grande do
banheiro: cabelos alinhados, que mandara cortar estrategicamente uma semana
antes, para que não estivessem nem muito grandes nem com aparência de terem
sido cortados especialmente na véspera. Não era bonito de rosto nem tinha porte
atlético, mas sua altura acima da média e o olhar direto e inteligente, como
ele supunha ter, teriam de ser suficientes para fazer boa figura física diante
da plateia. Plateia essa que não se furtaria ao prazer de emitir julgamentos,
diretos ou velados, sobre aquele novo funcionário de médio escalão da empresa.
As cartas certas para ganhar a oportunidade de uma futura promoção tinham de
ser postas na mesa desde o início do jogo.
Dez da manhã, último andar do
prédio. Na antessala do anfiteatro onde se daria a reunião, funcionários e
gerentes tomavam café, conferiam seus relatórios e conversavam assuntos
aleatórios. Alguns menos precavidos esbravejavam discretamente pelo celular com
alguma secretária ou subalterno, reclamando do atraso na entrega de alguma
pasta ou pen drive. Mikhail
esforçava-se mentalmente para ficar à vontade e participar da conversa, sem
demonstrar o quanto ainda se sentia deslocado. Então a porta do elevador se
abriu, o que, casualmente, atraiu o olhar de Mikhail. Por ela saíram dois
diretores e Svetlana. A xícara que Mikhail segurava ficou suspensa no ar em
algum lugar entre seus lábios e o pires que segurava com a mão esquerda. Uma
mulher esguia, cabelos longos parcialmente presos, vestindo um tailleur grená
atravessou a antessala com passos ao mesmo tempo elegantes e decididos e
dirigiu-se para a primeira fila, cadeira do canto esquerdo, do anfiteatro.
Convocados todos para entrar. Mikhail
apalpou pela décima vez o pen drive
no bolso de cima do paletó e abriu mais uma vez a pasta com os relatórios.
Durante as muitas apresentações, teve dificuldade em se ater aos números e gráficos, seu olhar constantemente escapando para a primeira fila à esquerda.
Durante as muitas apresentações, teve dificuldade em se ater aos números e gráficos, seu olhar constantemente escapando para a primeira fila à esquerda.
“Mulherão, não é não?”
“Como?”
Era o Luiz Cláudio, seu colega de
departamento quem lhe falava ao ouvido.
“Como o quê, cara? Até parece que
você não está olhando.”
“Ah, ela.” Não sabia exatamente por
que, mas se viu tentando fingir um ar blasée e desinteressado. “Quem é?”
“Não conhece ainda? É a Svetlana,
assessora do Departamento Jurídico. Dra.
Svetlana. Ah, se eu não fosse noivo...”
“Ah, sim. Já tinha ouvido falar, não
fui apresentado ainda. Realmente, mulherão.”
Mais tarde, no coffee break, Mikhail avaliava
mentalmente seu desempenho. Passara de forma clara informações relevantes
baseadas nas quais, inclusive, arriscara fazer algumas previsões sobre os rumos
futuros do mercado, fato que atraiu o interesse e algumas perguntas adicionais
de um dos diretores. Mas recriminava-se por ter gaguejado um pouco mais que o
habitual e por quase ter perdido o rumo na exposição de um argumento técnico
particularmente complicado. Enquanto esteve de pé diante de todos, viu seu
olhar ser atraído mais de uma vez para a assessora jurídica. O Mulherão.
Svetlana. Aquele belo par de pernas insinuando-se, esbelto e musculoso, por sob a
pasta de relatórios jurídicos o havia desconcentrado por uma ou duas
vezes. O olhar de Svetlana fitara-o fixamente durante toda a exposição,
certamente em sinal de atenção estritamente profissional. Certamente.
Durante o coffee break, tapinhas estalaram em suas costas. “Gostei de sua exposição. Se bem que você poderia ter
enfatizado mais a questão da margem de lucros, como eu tinha lhe falado.” Era o
Carvalho, seu gerente imediato. “Mas, para primeira vez, até que não foi mal, garoto.”
“Que bom que o senhor gostou.”
Varreu a sala com o olhar em
busca de Luiz Cláudio. Encontrou-o ao celular perto dos banheiros e andou até
lá. Ele fechou o aparelho e sorriu: “Mandou bem, Mika!”
“O Carvalho veio me disser que
‘para primeira vez, até que não foi mal’. Que filho da puta.”
“Relaxa, cara, ele deve estar
temendo uma futura concorrência pelo cargo dele. Vai se acostumando que empresa
grande é assim mesmo. Ninguém tem amizade, só interesse. Menos eu, claro, que
sou seu amigo desinteressado. Para provar, vou te fazer um favor, você vai
ficar me devendo essa. Vem comigo.”
Atravessou o recinto arrastando-o
pelo braço. Quando deu por si, Mikhail estava postado diante dela.
“Doutora, este é o novo membro do
Comercial, não sei se já foram apresentados, meu amigo Mikhail.”
“Muito prazer, Mikhail. Svetlana,
do Jurídico.” Estendeu-lhe a mão muito branca sem deixar de bebericar o suco de
laranja.
“O prazer é meu, Dra.”
“Interessante esse seu nome,
‘Mikhail’, de onde ele saiu?”
“Minha mãe era professora de
dança, dava aulas de balé na escola. É Miguel em russo. O nome veio do
Baryshnikov, imagino eu. Ela era fã de balé clássico.”
“E você, gosta de dança?”
“Mais ou menos. Entendo um
pouquinho, tinha muitos livros sobre balé lá em casa, Lago dos Cisnes na
vitrola no domingo, umas duas idas ao Municipal, essas coisas, mas não passa
disso.”
“Que pena. Eu adoro dança, adoro
balé.”
“Nunca pensou em ser dançarina?”
“Pensei, pensei a sério até,
estudei balé desde a infância. Mas, aos quatorze, rompi um ligamento do
tornozelo, fiquei dois meses engessada e perdi o pique. Acabei advogada.”
“Que pena, a Sra. tem porte de
bailarina.” (Que ridículo eu fui, censurou-se internamente, chamei-a de senhora,
vai pensar que eu a acho velha. E ela deve ter ouvido essa de ‘porte de
bailarina’ milhares de vezes).
“É, as pessoas dizem isso, às
vezes. Mas me chame de Svetlana, OK Mikhail?”
“OK, Svetlana.”
“Bem, a reunião já vai recomeçar.
Melhor entrarmos.”
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Durante uma semana, aquele minuto
de conversa foi passado e repassado na cabeça de Mikhail milhares de vezes.
Como o replay de uma jogada na grande área, que os comentaristas de futebol
discutem exaustivamente tentando decidir se foi ou não foi pênalti. Pênalti que
ele, certamente, havia chutado para fora. Sentia-se um idiota, poderia ter dito
que adorava dança, mas o fato é que seu interesse por balé era mesmo
periférico, quase que apenas cultura geral.
Sonhou inúmeras vezes, durante o
banho ou no metrô, a caminho de casa ou do trabalho, com uma segunda
oportunidade, onde só falaria coisas inteligentes e espirituosas, de deixar com
inveja Humphrey Bogart em Casablanca. Imaginou várias vezes ter visto Svetlana nos
corredores dos shoppings, nos cinemas, correndo no Ibirapuera no domingo de
manhã, mas o fato é que nunca conseguiu vê-la fora do ambiente de trabalho.
Pesquisou, fingindo a maneira
mais desinteressada possível, sobre ela na empresa. Surpreendeu-se em descobrir
que aquela beleza que o arrebatara, aquele rosto de camponesa ucraniana,
aqueles olhos cor de mel ligeiramente melancólicos não eram uma unanimidade
entre seus colegas homens, e que ela frequentemente despertava antipatia entre
as mulheres. Inveja, certamente, ele imaginava. Mas Svetlana realmente não era
do tipo comunicativo no trabalho. Teria um namorado, que ninguém nunca vira nem
sabia quem era, e não parecia receptiva às eventuais cantadas mais ou menos
diretas que, não raro, recebia. Mas, aos poucos, Mikhail foi pensando menos e
menos nela, e começou até a lançar uns olhares gulosos para a Adriana, a estagiária
do Marketing morena e gostosinha.
Fora marcada uma nova reunião
entre todos os departamentos. Naquela manhã, Mikhail surpreendeu-se demorando
mais que o habitual na escolha da melhor combinação entre a camisa e a gravata,
decidindo se iria com o terno claro e sapatos marrons ou com terno escuro e
sapatos pretos. Deu-se conta de que ansiava por uma nova oportunidade de
conversar, um pouco que fosse, com Svetlana. Dessa vez, agiria com mais
segurança, com mais firmeza, com mais pegada.
Cumprimentaram-se quase que
formalmente à entrada da reunião, um mau começo. Dessa vez, Mikhail não havia sido o escalado
para falar em nome do departamento, o próprio Carvalho incumbiu-se da tarefa,
numa apresentação burocrática e sem imaginação. Então, a diretoria convocou
Dra. Svetlana para expor a todos o andamento da disputa judicial sobre a
propriedade de uma marca e sobre a nova política de patentes da empresa. Mikhail
ajeitou-se na poltrona e não perdeu uma palavra da exposição, que ele achou
competente e clara. Houve aplausos entusiasmados e olhares de aprovação dos
diretores.
No intervalo, quando desligava o
celular onde acabara de dar orientações para um dos funcionários de seu
departamento, Mikhail viu-se frente a frente com Svetlana.
“Como vai, Mikhail?”
“Bem, e você?” (‘Você’, boa
garoto, dessa vez não pisou na bola.)
“No próximo fim de semana vai
acontecer o festival de dança de Curitiba, você sabe, não?”
“Sim, claro”, mentiu. “O festival
é ótimo, tem grupos do mundo inteiro”, chutou de forma arriscada, mas certeira.
“Você vai?”
“Ah, acho que não vai dar. Vai
ser o casamento da minha irmã, eu não tenho como faltar.” Isso era verdade, infelizmente.
“Que pena. Pensei que talvez a
gente pudesse se encontrar por lá. Mas eu entendo.”
“Puxa, que pena mesmo.”
“Eu vou todo ano, adoro. Este ano
vem o balé da Ópera de Viena, vão dançar Giselle.”
“Nossa, que ótimo. Giselle é
lindo! É Justamente o nome da minha irmã que vai se casar.”
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Mikhail chegou a pensar loucuras,
em inventar uma desculpa para não ir ao casamento da irmã, mas ele era padrinho
e teve que admitir que não havia escapatória. Durante as bodas parecia
distante, chegaram a lhe perguntar se estava passando bem. Bebeu mais do que
deveria e saiu antes do fim da festa.
Poucas semanas depois ouviu
boatos na empresa de que Svetlana fora vista mais de uma vez saindo com um dos
diretores, homem bem mais velho do que ela, casado.
Mikhail passou a folhear livros
sobre balé nas livrarias, chegando a comprar alguns. No fim de semana alugava
vídeos do Lago dos Cisnes, do Quebra Nozes e outros. Aos poucos foi tornando-se
mais entendido no assunto. Fez uma assinatura do Teatro Municipal, aonde ia
sozinho. Uma noite viu-se em lágrimas ao fim de uma apresentação de Giselle.
Matriculou-se em um curso de dança de salão. Descobriu que levava jeito para a
coisa. Passou a frequentar gafieiras com seus novos colegas, a convite dos
professores de dança. Uma vez, em viagem de trabalho ao Rio, conheceu Ritinha na Estudantina. Dançaram juntos a noite inteira. Passaram a se falar com
frequência pelo telefone. Em pouco tempo os dois se alternavam nos fins de
semana entre Rio e São Paulo. Ritinha, uma dentista alegre e desinibida, tinha molas nos
quadris e sabia fazê-lo rir. Em pouco mais de um ano estavam casados, tendo ele,
pouco antes, assumido a gerência da filial do Rio.
Porém, nas vezes em que tinha que
participar das reuniões em São Paulo e via Svetlana, ficava mexido. Acabavam
sempre conversando, frequentemente sobre dança. Mikhail contou-lhe que tinha
até ganho um prêmio na Estudantina dançando bolero com Ritinha. Svetlana
pareceu muito entusiasmada com a notícia. “Veja só, quem acabou tornando-se um
bailarino de verdade!”
Quando voltava para o Rio, ficava
como que enfeitiçado, sentindo-se culpado por não conseguir deixar de pensar em
Svetlana. Isso durava uns três ou quatro dias, acabou se acostumando, depois passava
e ele deixava de pensar nela quase que completamente. Às vezes, aos domingos,
colocava um CD de Tchaikovsky para tocar bem alto e ficava olhando o teto por
um longo tempo.
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Num dia de dezembro, Mikhail
soube da fatalidade. Svetlana, de férias, tinha viajado para Moscou, onde
assistiria o Bolshoi ao vivo, o sonho de toda uma existência. Havia uma
violenta nevasca. O avião da conexão partiu de Paris, mas nunca chegou à
Rússia. O enterro já havia acontecido, mas Mikhail não deixaria de ir à missa
de sétimo dia.
Na igreja ortodoxa, depois da missa,
foi apresentado à mãe da falecida colega. Diante daquela imigrante ucraniana de
pele envelhecida pelo sol tropical e olhos muito azuis agora avermelhados pelas
lágrimas, apresentou-se:
“Sou Mikhail, era colega de sua
filha na empresa. Sinto muitíssimo. Minhas condolências.”
Os olhos sofridos da velha
senhora se acenderam: “Então o senhor é o Mikhail! O “Misha”! Minha filha falava muito do senhor, sempre com muito
carinho.” E segurava com força as mãos de Mikhail entre as suas.
Svetlana...