Páginas arrancadas do
diário que eu não escrevi aos 19
anos.
Hoje, ao pegar o ônibus no Centro
para Icaraí, encontrei com a Ana Cláudia,
uma das meninas mais gatas do colégio. Ela estava sentada e eu de pé. Nunca
tinha falado muito com ela, mas, apesar da minha timidez irritante, começamos a
conversar. Não sei o que deu em mim hoje, pois, apesar de estar conversando com
uma menina linda, não gaguejei e nem fiquei sem saber o que dizer. Acho que ela
nem percebeu que eu normalmente não sou assim. Será que estou mudando,
finalmente? Ainda tive uma sorte enorme, porque a senhora gorda que estava
sentada ao lado dela saltou logo no Ingá. Isso significa que eu pude sentar ao
lado dela, nem acreditei. Ela falou que no dia seguinte estaria indo com os
pais e os irmãos para Marataízes, que é longe à beça, e eu nem sabia que é uma
praia no Espírito Santo. Ela vai passar janeiro e fevereiro lá. Primeiro pensei
que era muito azar, logo agora que tínhamos feito um contato tão legal. Falei
que eu estava indo passar as férias em Friburgo, mas inventei que talvez eu
resolvesse ir acampar em outro lugar. Aí ela falou que seria legal se eu
aparecesse em
Marataízes. Ela me deu o endereço e o telefone da casa de lá
num pedaço de folha do caderno dela.
A essa altura, eu já tinha
passado muito do ponto de ônibus perto de minha casa, mas eu menti dizendo que
ia até a casa de meu amigo Guilherme lá em São Francisco, onde
ela mora também. Saltamos na praia e fomos andando até a casa dela, que eu
queria saber onde era. No portão, nos despedimos, eu fingindo que não estava
nervoso, mas com meu coração acelerado. Saí dali correndo até a casa do
Guilherme, porque eu precisava contar aquilo para alguém. O Álvaro, irmão dele,
disse que ele tinha saído não sabia pra onde. Aí eu peguei outro ônibus até em casa. Acho que vou dar
um jeito de ir até essa tal de Marataízes.
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Decidi ir a Marataízes atrás da Ana Cláudia para conferir qual é.
Acho muito difícil que aquela gata, que eu sei que tem um monte de caras dando
em cima, queira alguma coisa comigo. Será que ela foi simpática só porque é
simpática com todo mundo? Ou será que me achou legal? Só tem um jeito de saber.
Então eu telefonei pro Vilaça e contei a história toda. Liguei pra ele porque
ele é meu amigo, e porque é um amigo que tem uma barraca de camping e nós já
acampamos juntos em Angra dos Reis. Ele topou a idéia, U-HUUUU! Aí eu tive que
inventar uma história que tinha sido o Vilaça que tinha me convidado, que ele
tinha parentes por lá, pra eu descolar uma grana com minha mãe. Ainda bem que
eu ainda não tinha comprado o tênis com o dinheiro que ganhei do meu avô no
aniversário.
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Procurei no Atlas onde fica Marataízes.
Descobri que a cidade mais ou menos grande mais próxima é Cachoeiro do Itapemirim,
e que tem um ônibus que sai meia noite de Niterói pra lá.
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Agora são três horas da manhã,
ainda não chegamos nem a Campos, e nessa poltrona apertada é difícil dormir. O
Vilaça trouxe a barraca, mas só trouxe um colchonete. Nem me avisou que só
tinha achado um. Vou ter que dormir no
chão. Será que vai valer a pena?
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Chegamos a Cachoeiro, terra do
rei Roberto Carlos. Esperamos na rodoviária o primeiro ônibus para Marataízes,
que só saiu duas horas depois e ainda parou um tempão em outra cidade, Itapemirim
(sem Cachoeiro). Saltamos finalmente em Marataízes e saímos perguntando onde
tinha um camping. As praias aqui têm areia escura, diferente das de Niterói.
Aqui é cheio de condomínios de apartamentos, e os condomínios estão cheios de
mineiros. Deu pra saber que eles são mineiros por causa do sotaque e por causa
das placas dos carros. De manhã, um monte de mineiros cor de camarão estavam
pondo a bagagem nos seus carros e fechando os apartamentos. De tarde, chegou
outro lote de mineiros, só que branquelos, descarregando bagagem e ocupando os
condomínios outra vez.
Achamos um camping baratinho e
armamos a barraca embaixo de uma amendoeira. Vai dar pra tomar banho, tomar um
café e partir em busca da Ana Cláudia.
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Achamos a casa da Ana Cláudia. Ela tinha acabado de
acordar. Acho que a mãe dela ficou com pena de nós e nos chamou para entrar
tomar café. Comemos pão de forma e bebemos Nescau. Ela tem dois irmãos mais
novos e a mãe dela é muito legal. Depois fomos para a praia. Eu não estava nem
acreditando. Ela, de biquíni, é ainda mais perfeita do eu imaginava. Ela falou,
e as amigas dela, que eu não lembro o nome, confirmaram que no ano passado ela
foi eleita a Garota Verão de Marataízes no concurso do clube da cidade. Deve
ter sido barbada! Apesar de termos ficados juntos a manhã toda, não percebi
nenhum sinal por parte dela de que poderia rolar alguma coisa. Ou talvez seja a
velha timidez que esteja me impedindo de deixar as coisas mais claras.
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Eu e Vilaça fomos almoçar num
restaurante meio botequim. O Vilaça pediu bife com fritas, e eu pedi um PF
porque, senão, o dinheiro não vai dar pra comer até a gente voltar pra Niterói.
De tarde voltamos a casa dela e ficamos jogando buraco. A coisa não está
evoluindo...
À noite, com a merreca que eu
tenho no bolso, não dá pra ficar em bares nem pagar pra entrar em lugar nenhum.
Se bem que aqui não tem quase opção. Só deu pra ficar andando pelo calçadão,
que foi meio destruído por uma ressaca recente. Querer ganhar uma gata daquela,
sem grana e sem carro, precisa de muuuuito charme e bom papo, e eu não tô com
essa bola toda. Enchemos o saco de andar à toa e voltamos pro Camping na maior
escuridão, que aqui quase não tem iluminação pública. Pra piorar, estava
chuviscando, e eu fiquei pensando que amanhã pode amanhecer chovendo. Aí, nem
praia vai ter. Eu trouxe o livro “Ilusões” de Richard Bach, aquele mesmo de
Fernão Capelo Gaivota. Estou achando um dos livros mais legais que eu já li. É
a história de um cara que era um messias, mas que tinha desistido de ensinar
coisas pras pessoas, porque elas não queriam mudar, só queriam que ele fizesse
milagres e mudasse as coisas pra elas. Mas ele encontrou um cara que queria
aprender. Aí ele ensinou a esse cara que ele podia ser tão messias quanto ele.
Que qualquer um podia andar na água ou nadar na terra, ou fazer flutuar uma
chave de boca de 9/16 polegadas. Ou fazer nuvens desaparecerem! No livro
parecia tão fácil, que eu acreditei que era possível. Falei pro Vilaça do
livro, e decidimos que as nuvens não estavam mais lá. Fiquei entre o apavorado
e maravilhado quando olhei pra cima e vi as nuvens se afastando e as estrelas
aparecendo! Daqui pra frente vou acreditar que tudo que eu quero é possível. Na
hora de dormir, enrolei a toalha para fazer um travesseiro e deitei. Aí
descobri que naquele lugar embaixo da amendoeira, onde armamos a barraca,
estava cheio de caroços de amêndoas no meio da grama debaixo do chão da
barraca. Vai ser uma noite longa...
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Depois de alguns dias, quando só
restava grana pra passagem de volta, voltamos pra Niterói. Vilaça acha que eu
sou um otário, que eu tinha que ter ido com mais decisão, que depois de toda
essa viagem eu tinha que ter dado um cheque mate. Eu não tive coragem de dar
porque já sabia, ou achava que sabia, que não ia dar certo. Fiquei pau da vida
com ele porque, quando ele viu que eu não me decidia, começou a dar em cima
dela. Voltamos quase sem nos falar. Mas não me arrependo de nada. Acho que
alarguei meus limites. Às vezes, pode ser mais fácil fazer desaparecer as
nuvens do que conquistar uma garota. Ou não.
Comentário atual: Ainda tentei alguma coisa em relação à Ana Cláudia. Fui
novamente, depois das férias, até a casa dela, e já tinha outro marmanjo por
lá, xavecando ela. Concorrência selvagem! Ela acabou namorando um paulista
estudante de medicina da UFF, um semestre mais atrasado que eu. Ele tinha cara
de italiano e um carro do ano. Possivelmente tinha também outras qualidades que a minha inveja ocultava completamente, talvez não. Acabaram se casando e eles se mudaram para São Paulo. Uns quinze anos
depois (o destino é um brincalhão), ela apareceu uma tarde no meu consultório,
uma linda jovem senhora nos seus trinta e poucos. Ana Cláudia, agora também médica, estava de
volta a Niterói, recém separada. Queria sublocar um horário para se estabelecer
profissionalmente na cidade. Os horários que ela queria não estavam disponíveis.
Nem eu, pois estava casado. Nunca mais a vi nem tive notícias. Até a semana passada
quando, pelo Facebook, descobri que está casada de novo e é professora
universitária. Continua bonita, trinta anos depois.