1
Procurou no bolso de trás. Achou um papelzinho dobrado e amassado, sobrevivente de duas ou três lavagens. Abriu com cuidado, o número ainda legível. “Me liga.“ Valéria aguardaria até o fim de novembro. Suspirou. Fez uma bolinha com o papel e a atirou no bueiro. Procurou no outro bolso e entrou resoluto no supermercado com a lista de ingredientes para a rabanada.
2
As juntas rígidas, o pelo sem brilho se soltando à medida que eu espalhava o sabão. O cheiro insistente da velhice exigia intervalos menores entre os banhos. E aqueles olhos grandes e amigos, cravados nos meus, suplicando uma explicação para a vida se esvaindo pelo ralo. Eu, o homem da casa, sou naturalmente o incumbido de decidir o quando e o como.
3
Sexta feira. Apertou a campainha da casa dela mais uma vez. Surpreendeu-se, o ritmo cardíaco não se alterava mais. Talvez já fosse hora de considerar esse tal de amor.
4
O caminhão partiu levando os móveis, os brinquedos e a TV. As crianças ela tinha levado na véspera. Ficarem ele e o gato cego na sala oca. Como ele iria se orientar naquele vazio?
Quatro momentos:de procura;de decisão;de desamor e de solidão.
ResponderExcluirA cegueira mútua de um gato e momentânea de um ser que tem que voltar a amar;tomar decisões e se encontrar.
Quatro momentos de um só conto.Linda análise introspectiva.Belo conto de narrativa circular que se completa do início ao fim.Parabéns!Maria Lucia
Excelentes contos mínimos! Domínio de concisão e de economia verbal, conseguindo o máximo de efeitos e potencializando ao extremo o imaginário. O de que mais gostei foi o 2. Abraços, Margareth Mattos.
ResponderExcluir