Estava no chuveiro (eu penso com mais clareza tomando banho ou fazendo a barba) e me veio uma imagem. Era um dia frio, a água quente era agradável sem, no entanto, arder na minha pele. Sob aquela água que me molhava a cabeça e o corpo, pensei em fogo, em paixão e em amor.
Quem já acendeu uma lareira provavelmente já se valeu de uma daquelas pastilhas de álcool sólido cor de rosa (a cor é bem apropriada) para por fogo na lenha. Facilitam muito as coisas: acendem com facilidade e ardem intensamente por um período curto, que se espera ser suficiente para acender o fogo definitivo. Logo elas se consomem, vão se apagando, e a gente precisa soprar, abanar, mexer uns gravetos e uns pauzinhos para lá e para cá, para que a lenha, aos poucos, comece a crepitar, estalar, chiar e soltar aquele calor intenso que vai se irradiar para aquecer o ambiente. Há, depois, que se cuidar do fogo para que ele não se apague por descuido: acrescentar mais lenha, juntar o carvão que se espalha, abanar mais um pouco para que ele continue a queimar.
Por vezes, a pastilha se extingue sem que a lenha se acenda, e então buscamos outra, às vezes uma terceira. Mas ninguém se aquece com o fogo da pastilha, embora se possa até queimar o dedo com ela. Por outro lado, dá para acender a lenha sem se valer da pastilha de álcool. É preciso técnica mais apurada, um pouco de palha bem seca ou papel, uns gravetinhos finos, outros um pouquinho maiores e, por fim, a lenha. Depois de acesas, não dá para dizer qual fogueira usou álcool e qual não usou no início do processo. Daí que não acho nenhum absurdo o sistema indiano em que os matrimônios são decididos por pais desapaixonados, com base em critérios, digamos assim, técnicos. Nenhum álcool envolvido.
Meus filhos, que estão saindo da adolescência e são jovens adultos, irritam-se e desdenham de minhas opiniões sobre amor e paixão, o que é bem compreensível em função da idade. Mas, no fundo, também me pergunto se não estaria enganado, se estas conclusões valem apenas para mim, não sendo, em absoluto, uma verdade universal. Pode até ser. O fato é que nunca considerei o apaixonar-se como um fim em si. Ansiava , sim, por um amor que me aquecesse, que me fosse confortável, confiável, duradouro e seguro, na medida em que os amores podem ser seguros. Já estive apaixonado algumas vezes, inclusive em algum momento de meus dois casamentos. Assim como fico temeroso de que a lenha da lareira possa não se manter acesa quando o fogo cor de rosa se extingue, temi pela manutenção do amor depois da paixão. Soprei e abanei bastante, e o fogo cresceu e se manteve forte por um bom tempo no primeiro casamento. Persiste intenso no segundo.
Entendo a paixão como uma força natural, poderosa e arrebatadora, nem boa nem má. Compartilha a natureza dos ventos, que tanto podem impelir um barco para o porto seguro como para os recifes e o naufrágio. Não me iludo sobre o poder que uma paixão pode ter no rumo de uma vida, a minha inclusive. Dizia o sábio Santo Ernulfo que ninguém está livre de um mau passo. Então estou alerta, pois que a paixão em si não é o norte para onde aponto o meu barco. Ela pode vir ainda a me arrastar para longe da rota e do rumo. Ao contrário do amor, ela é amoral e não tem nenhum compromisso com minha felicidade. O compromisso único das paixões é com a felicidade das heranças genéticas, sejam elas dos homens, das rãs ou das minhocas. Dirão, revoltados, os românticos e apaixonados de plantão: "Nada disso! A paixão é a expressão máxima da alma humana!" O que você pensa?
Vou pensar um pouquinho, ok?
ResponderExcluirEnqto isso, deixo Camões aqui para apimentar as opiniões:
"Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.
Amor é brando, é doce e é piedoso;
Quem o contrário diz não seja crido:
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.
Se males faz Amor, em mim se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.
Mas todas suas iras são de amor;
Todos estes seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria."
A grande confusão é tomar a paixão por amor e amor por paixão. Quase sempre chegam juntos, mas um dos dois vai embora sem aviso. O amor se adapta e fica, ou parte atrás da paixão volúvel. Já a paixão, quando se vê abandonada pelo amor, sente-lhe subir um gosto de sangue na boca.
ResponderExcluirVou pensar mais a respeito. Você coloca as coisas com muita pertinência, estou pensando...abrç!
ResponderExcluirComo Dizia o Poeta Vinicius de Moraes...
ResponderExcluirQuem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu
Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não
Nao há mal pior do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão
prefiro queimar muitas vezes... e aproveitar as brasas.
Olá Ralph,
ResponderExcluir*há quanto tempo!
Bela e fácil prosa, em tema difícil e instigante. Mas antes do tema em si, uma divergência de princípios: o 'casamento indiano' a que você se refere, nada tem de amor, ou de paixão: tem de obstruir/terminar com um princípio basilar para a humanidade: a liberdade de escolha. Acredito que é impossível não fazer esse destaque, pois a brutalidade que é a 'não-escolha' carrega, é enorme.
Dito isso e voltando ao assunto, afinal a diferença entre amor e paixão seria apenas quantitativa? A meu juízo longe disso: tem raízes diferentes, o que não impedem que possam co-existir de quando em quando. Ou em momentos mais ou menos duradouros.
Lembro que como médicos certamente vivenciamos isso em nosso percurso: o amor-escolha-compromisso convive harmoniosamente [ou nem tanto...] com a paixão pela arte, compaixão pelo sofrimento e afins.
Grande abraço
Barroca
Amigo Ralph,
ResponderExcluirAinda com duas filhas na fase adolescência --> adultas, tenho me esforçado para ensinar-lhes a diferença entre sexo, amor e paixão.
A juventude atual só enxerga o sexo, às vezes a paixão e rara ou dificilmente o amor.
Esta virando sexo animal por pura necessidade fisiológica.
Recentemente comentei o replay do seriado "Anos Dourados" e elas chegam ao riso.
Às vezes fico até em dúvida se temos ou não razão.
Quanto ao amor, vivo uma chama ainda acesa já se vão 40 anos.
Ao longo desse tempo somente algumas abanadas, vez em quando mais intensas, se fizeram necessárias.
Porém o fruto dessa relação tem sido o elixir de minha sobrvivência, a minha razão de viver.
É um grande prazer poder compartilhar de seus pensamentos.
Forte abs,
Zettel