Era minha primeira semana no
jardim de infância. Eu e meus coleguinhas saíamos de uma atividade qualquer na
sala de artes em direção à nossa própria sala, no final de um longo corredor. A
professora alertou: “Não quero ninguém correndo. Vamos andando sem fazer
barulho para não atrapalhar as outras turmas, crianças!” Foi a senha para que
todos disparassem aos gritos pelo corredor. Todos menos um: eu. (Não me
perguntem porquê eu não corri também, eu não saberia dizer). Pouco depois,
quando estávamos sentados em nossos
lugares, a professora repreendeu a turma e disse: “O único que obedeceu foi o
Ralph.” Imediatamente duas dúzias de pares de olhinhos se voltaram fuzilantes
contra mim. Revendo a cena hoje, concluo que aquela foi a primeira vez em que
me dei conta de que eu estava no lugar errado. Eu não sabia ainda que era um
estrangeiro em meu país.
Já escrevi aqui no blog sobre
pessoas que já nascem estrangeiras. Existem noruegueses, tchecos e britânicos que,
mal desembarcam nas terras de Iracema, se dão conta de que eram exilados sem
saber. Imediatamente aprendem a gíria da vez, sentem-se à vontade de chinelos
em qualquer ambiente, viram fãs de caipirinha e passam a chamar todo mundo de
mermão ou meu rei.
Já outros, nascidos aqui, têm
dificuldades em entender os nossos códigos e costumes. Especificamente, me
irrita a maneira como lidamos com as regras. Todos, brasileiros ou não, ficamos
indignados quando a burocracia emperra quando não se paga propina, irritamo-nos
quando vemos pessoas jogarem latas de cerveja da janela de carros caros
revoltamo-nos ao vermos outras pessoas furarem filas por serem “amigas do rei”.
Mas alguns brasileiros, arriscaria dizer muitos, só manifestam essa indignação
quando não são eles próprios a praticarem ou se beneficiarem dessas mesmas
práticas que abominam no outro.
O fato é que me foi difícil crescer
nessa cultura e me adaptar a seus códigos. Conto aqui umas poucas dentre inúmeras
situações que me foram muito didáticas nesse meu esforço de adaptação.
Fiz residência médica no Hospital
Central da intimorata corporação Policial Militar do Rio de Janeiro, à qual me
adaptei sem nenhuma dificuldade, diga-se de passagem. Morador de Niterói, o
deslocamento até o Estácio, endereço do hospital e um dos berços do samba
carioca, era feito de ônibus a princípio, e depois num Fiat 147 grená já bem
usado, meu primeiro carro. Embora menos frequentes na época, os engarrafamentos
na Ponte Rio-Niterói aconteciam de vez em quando, o que provocava ocasionais
atrasos e consequentes descontos, além de gerar os temidos ofícios chamados de
“Deveis Informar”, nos quais éramos obrigados a justificar as impontualidades. Tudo
muito justo, não fosse o fato de que dois de meus colegas, o Fábio* e a Laura*,
nunca serem penalizados. Não que eles fossem pontuais, muito pelo contrário.
Fábio tinha outro emprego de manhã, no mesmo horário de seu expediente no HCPM,
e nunca era visto depois das dez horas. Já a Laura, uma loura esguia de belos
olhos verdes, nunca chegava antes das dez. Dizíamos até que a intercessão do
expediente dos dois era um conjunto vazio. Achava aquilo muito injusto. Naquela
época, em meus esforços de adaptação, já havia começado a fazer terapia.
Relatei minha indignação ao terapeuta. “Você dá bom dia ao cabo que registra o
ponto?”, perguntou ele. “Sim, claro, sou uma pessoa educada.” “Mas você
pergunta sobre os filhos dele? Sabe quantos são? Sabe os nomes dos filhos dele?
Sabe para qual time ele torce? Dá bombom para ele na Páscoa?” Não, eu não fazia
nada daquilo. Apenas dava bom dia com um sorriso de japonês. A princípio me
recusei a aceitar aquilo como um bom conselho (aliás, talvez aquela tenha sido
a única vez em que meu analista tenha me dado um conselho assim, tão direto). Foi
uma dura lição de como ser brasileiro, mas passei a me esforçar para por em
prática aquelas orientações preciosas e óbvias. Óbvias para os brasileiros que,
parece, que já nascem com elas impressas no DNA. Uma subespécie de homo sapiens mais bem adaptada às terras
de Macunaíma, nosso maior herói. Como disse um repórter esportivo alemão
durante a “Copa das Copas”: no Japão, todos são extremamente educados com você,
mas os brasileiros são mais, eles são todos legais!
Então, estrangeiros, aprendam: no Brasil não é suficiente ser educado, é
essencial ser legal. Admiro sinceramente
essa simpatia do brasileiro, uma coisa que em mim não é inata e que me esforço
para aprender. Não por coincidência, a simpatia e o modo caloroso dos patrícios
foram unanimidade entre os estrangeiros que aqui estiveram durante a Copa. É
uma das coisas da qual todo brasileiro deve se orgulhar.
Mas, colegas gringos, não
confundam ser legal com legalidade,
duas coisas bem diferentes, às vezes, infelizmente, contraditórias. Explico.
Alguns anos mais tarde eu havia acabado de montar meu próprio consultório
médico, e precisava do alvará para poder começar a funcionar e pleitear
credenciamento junto aos planos de saúde. Um dos muitos documentos exigidos
pela prefeitura para emitir o alvará era o laudo de vistoria do corpo de
bombeiros, que, para ser emitido pela também brava corporação dos soldados do
fogo, exige uma outra série de documentos. Todos foram diligentemente anexados
por mim ao dar entrada no pedido de vistoria. Que não saiu em um mês, nem em
dois, nem em três. Deixava eu o quartel dos bombeiros de Niterói pela terceira
ou quarta vez, desanimado com mais uma alegação de excesso de serviço, de férias
do capitão que faz as vistorias e de outras justificativas dadas pelo sargento
do protocolo, quando encontrei um amigo que tinha duas ou três lojas na cidade.
Desfiei o meu rosário para ele. “Você vai esperar mais de um ano assim, meu
amigo, e não vai conseguir o seu laudo. Vou lhe dar o telefone do capitão
Taborda*, que vai resolver rapidinho o seu problema.” Senti um certo mal estar,
mas, como estava determinado a destrinchar os costumes brasileiros, acabei
cedendo. Confesso que o capitão Taborda, um cara muito simpático, foi
eficiente. Em menos de 48 horas ele veio me entregar o laudo da vistoria em
mãos. Muito legal o Taborda. Claro,
para não fazer desfeita dei um agradinho para ele, como meu amigo brasileiro
havia me instruído a fazer.
Só mais uma. Este mês uma
paciente de primeira vez se irritou porque já estava havia 40 minutos depois da
hora marcada na sala de espera sem ter sido atendida ainda por mim. Confesso que
ela estava coberta de razão. Mas acontece que, apesar de não marcar consultas
em excesso e, salvo em emergências, não fazer “encaixes” na agenda, às vezes
algumas consultas demoram mais do que o previsto e a fila atrasa, o que é sempre
lamentável. Pois bem, a paciente se recusou a continuar esperando e se retirou
cuspindo marimbondos, com toda razão. Ocorre que o marido dela também estava
agendado para uma consulta dali a alguns dias. Ela telefonou na véspera perguntando
se poderia entrar junto com ele para ser atendida também. “Mas se a senhora não
está marcada, isso vai atrasar as consultas posteriores”, justificou minha
secretária. “Mas ninguém precisa saber que eu também vou me consultar”!
Os exemplos poderiam se repetir
ao infinito. Este é o modo de ser dos brasileiros, um povo realmente amável e
legal naquilo que estas palavras têm de melhor, mas também um povo “cordial”, naquele
sentido clássico definido por Sérgio Buarque de Holanda, onde ser cordial significa
dar um jeitinho, livrar um amigo das exigências da lei ou da burocracia, furar
ou deixar furar uma fila, facilitar as coisas para os amigos em detrimento
daqueles que não são “da turma”. O que fatalmente desemboca no suborno, na
corrupção, no nepotismo e na “pizza”. Este modo de ser peculiar talvez seja
herança dos nossos ancestrais (permito-me aqui a liberdade de me incluir como
brasileiro), que omitiam algum ouro dos fiscais da Coroa Portuguesa, para não pagar
“o quinto” do que era extraído das Minas Gerais (hoje a “coroa” brasileira fica
com 38%, e não há indícios de que uma outra Inconfidência esteja para
acontecer); talvez os escravos precisassem enganar feitores e senhores para não
morrerem de tanto trabalhar ou para conseguirem alguma carne melhorzinha que
miúdos, pés e orelhas para misturarem no feijão. Este é um campo de pesquisa a
que inúmeros sociólogos já se dedicaram com afinco sem respostas definitivas. Já
pelo lado bom da mesma moeda, não consigo imaginar que um dia os brasileiros
sejam capazes de tramar o extermínio dos judeus do país ou de lançarem-se
dentro de aviões carregados de explosivos contra navios inimigos.
Eu, de minha parte, estou constrangido,
envergonhado mesmo, confessando as vezes em que agi dessa maneira tão “brasileira”,
no mau sentido. Não creio que este jeitinho seja o melhor modo de construir um
país onde haja felicidade e prosperidade para todos. Sei que muitos brasileiros
também pensam assim. Leio diariamente depoimentos e assisto entrevistas de brasileiros sérios
(chatos, diriam alguns) que lutam para que passemos a ser um país onde os
prazos e os orçamentos sejam cumpridos, onde os criminosos sejam condenados e
paguem suas penas até o fim, onde haja menos burocracia e, consequentemente,
menos espaço para cobrança de propinas; onde o serviço público seja de
qualidade e onde os impostos beneficiem a todos, principalmente os mais
necessitados; onde as exigências valham igualmente para todos e onde o cidadão dê
o exemplo antes de cobrar do vizinho; onde não se jogue lixo nas ruas, mas também haja coleta de lixo em todas as ruas; onde as leis de trânsito sejam cumpridas e as estradas sejam bem sinalizadas e pavimentadas. Temos que lutar para sermos mais “japoneses”
ou “alemães” no que se refere à civilidade e à eficiência, sem perdermos nossa
alegria e cordialidade, no bom sentido. Não é tarefa fácil, mas eu acho
possível.
*Os nomes são fictícios