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domingo, 31 de março de 2013
domingo, 24 de março de 2013
Essas Assustadoras Mulheres
Não, ela não morde. Só, talvez, se você pedir. |
Eu fui um adolescente tímido. Durante
aqueles anos de espinhas e inseguranças, eu passava minhas férias e boa parte
dos feriados na casa de meus avós em Nova Friburgo. Lá tinha muitos amigos,
alguns moradores da cidade, outros veranistas como eu. Algumas daquelas
amizades perduram até hoje. A Serra do Mar é o cenário da maioria de minhas
lembranças de juventude, inclusive de meu difícil aprendizado na matéria de
relacionamento com o sexo oposto. Frequentemente eu subia e descia a serra de
ônibus. Antecipava, em meus devaneios, entre esperançoso e atemorizado, a
possibilidade de uma bela garota vir a sentar-se bem a meu lado durante a
viagem. Como começar uma conversa? Munia-me sempre de um tubo de drops de
hortelã para o dia em que o Acaso me sorrisse. Diria então: “Quer um drops?” Se
ela negasse e desviasse o olhar para a paisagem, fim da tentativa e, entre decepcionado
e aliviado, eu estaria de volta à minha solidão. Mas, e se ela aceitasse? E se,
além de aceitar ela sorrisse para mim, convidando-me para dar continuidade à
conversa? Não tinha a menor ideia do que diria depois, e a possibilidade da
mudez e do rubor me apavoravam. Para encurtar a angústia do leitor, digo que,
para o bem ou para o mal, aquela garota imaginária nunca se sentou ao meu lado
naquelas viagens.
E assim era a minha atormentada vida
de adolescente tímido. Via, roído de inveja, amigos meus namorarem ou buscarem
compromissos efêmeros e menos sérios. Às vezes, as duas coisas simultaneamente.
Depois de deixarem as namoradas em casa, muitos iam “à caça de umas frangas”,
como dizia um colega de faculdade. A pílula anticoncepcional começava a mudar
radicalmente o comportamento sexual, desvinculando o sexo da gravidez e do
consequente compromisso. O casamento deixava de ser a única oportunidade de um
rapaz ter uma vida sexual regular sem ter que lançar mão das profissionais do
ramo. Amor e sexo podiam, enfim, andar de mãos
dadas antes das responsabilidades inerentes ao casamento e à reprodução. Os rapazes,
entretanto, ainda tinham de deixar suas namoradas em casa antes que as portarias
dos prédios fossem trancadas às 22 horas, como ocorria então. Nove e meia da
noite era a senha para que as moças de família deixassem apressadas os motéis,
e a fila de carros com outros casais que aguardavam nos acessos do lado de fora
começasse finalmente a andar. Muita hipocrisia e muita vista grossa por parte
dos pais, que ainda faziam (ou fingiam) escândalo quando descobriam uma cartela
de pílulas na bolsa da filha, ao mesmo tempo que mal conseguiam disfarçar o
orgulho quando um de seus pimpolhos machos “embuchava” uma menina que “não se
dera o respeito”.
Os tempos são outros. Os motéis,
em sua maioria, fecharam as portas e suas ruínas ao longo das estradas são
monumentos à rápida mudança dos costumes. Os namorados hoje dormem misturados aos
bichos de pelúcia no quarto das garotas e os pais não se incomodam, contanto
que não seja um diferente a cada mês.
Mesmo naquele novo contexto, eu
me via obrigado a atender certos códigos de comportamento. A proximidade de uma
garota que me despertasse atração física impunha, eu imaginava, o atendimento
de expectativas sociais não escritas de desempenhar um papel de
sedução erótica para o qual me sentia totalmente inepto. Depois de muito
sofrimento, desisti. Aquele tipo de comportamento não era próprio de mim, e eu
levei algum tempo para aceitar o que, a princípio, me parecia uma grave
deficiência pessoal: a incapacidade de “chavecar” de forma teatral. Imagino que
nesse ponto um rapaz que não tenha uma clara e inata atração física pelas
mulheres possa cogitar a homossexualidade. Não era o meu caso, felizmente, o
que facilitava muito as coisas. Na realidade, só do que eu precisava era de uma
nova estratégia. Percebi então que, quando conseguia abstrair o apelo erótico,
eu me via capaz de entabular conversa com as garotas. Lembro-me bem de uma
ocasião, saindo à noitinha de uma aula de natação no primeiro ano da faculdade,
ter embarcado no ônibus que me levaria até em casa com uma colega de piscina
com a qual nunca havia conversado. Apesar de ela estar longe de ser feia, as
palavras me saíram fáceis e impensadas, e eu desci do ônibus com a nítida
impressão de que ela me achara um cara simpático. Foi uma libertação: não era
preciso que eu bancasse o macho rude e sexualmente agressivo. Podia ser eu
mesmo e estabelecer minha própria tática, que era, basicamente, a ausência de
qualquer tática. A proximidade de uma mulher interessante não mais me
paralisava. O desfiladeiro para fora do vale da timidez passava pela
transparência e por um sincero interesse na totalidade do ser humano que
existia dentro de cada mulher atraente, agora não mais ameaçadora. Nunca
mais as coisas foram as mesmas. O caminho até o coração e o corpo das garotas
se aplainou de forma quase mágica. Vi, surpreso, que aquela atitude nova era
capaz de acender interesses até onde eu não tivera intenção de despertá-los,
balas perdidas do amor.
Daquelas primeiras aventuras e
descobertas, independente do enlevo do apaixonar-se e das pulsões do amor
físico, persiste em mim um profundo respeito e uma enorme curiosidade pelo ser
do sexo oposto, elas que dividem conosco a experiência humana, mas de um ponto
de vista diverso. Como um par de óculos 3D, compreender (na medida em que nos é
possível) a experiência feminina pode acrescentar profundidade, uma nova
dimensão à nossa visão do mundo. E o que nós, homens, não formos capazes de
compreender é a porção de mistério que nos fascina e atrai.
quarta-feira, 13 de março de 2013
Suffolk Beach
(Clique na imagem para ampliar) |
Esta aquarela foi feita a partir de um quadro a óleo de Edward Seago (1910 - 1974), pintor pouco conhecido fora da sua Inglaterra natal, esnobado pelos críticos de arte, mas sempre um favorito do público britânico, inclusive da família real. Nasceu e viveu em Norwich, região plana à beira mar, cheia de pântanos e canais. Pela própria topografia de sua terra, Seago registrou de forma constante e sensível o céu britânico. O que parece ser uma coisa inescapável para pintores nascidos em regiões de relevo plano: vide os muitos paisagistas holandeses, em especial Ruisdael.
Dá para notar pelas últimas postagens que estou em uma fase celeste. Pintar o céu é um exercício onde se pode deixar levar pela intuição e pela emoção, deixando a tinta da aquarela se espalhar por amplas áreas do papel, criando por si só texturas e misturas. Mas é obrigatório aprender com os mestres desse metier, e a cópia é um ótimo exercício. Aqui usei azul cobalto, ultramarine, amarelo cromo, amarelo ocre, violeta e terra de sena queimado para tentar repetir o efeito dramático do original. Inversamente à técnica a óleo usada por Seago, comecei pelos claros, que foram cobertos com uma leve aguada amarela e reservados durante a adição das camadas mais escuras.
quinta-feira, 7 de março de 2013
segunda-feira, 4 de março de 2013
sexta-feira, 1 de março de 2013
O Ódio de Margot
Margot tem ódio de Rogério.
Gostaria de odiá-lo sem culpa, mas, como católica praticante, tem certeza que o
ódio que nutre por Rogério vai levá-la inexoravelmente ao inferno. Convicção
que só serve para aumentar seu ódio por ele, o culpado por sua futura danação.
Margot e Rogério são casados. A bem da verdade, hoje são casados só no papel,
pois não exercem as prerrogativas matrimoniais há muitos anos. Não dividem a
mesma cama nem o mesmo sofá. Raramente dividem a mesa, embora compartilhem o
mesmo teto. Margot faz questão de deixar bem explícito seu rancor, como um animal morto no tapete da sala, mas Rogério parece não perceber, ou finge não
perceber. Não discute, não responde os desaforos, dá palpites na roupa dela e nas
conversas que ela tem ao telefone. O que só aumenta o ódio de Margot.
Mas que barbaridade teria
cometido Rogério, que atitude ignóbil justificaria tamanho ressentimento?, decerto
estará pensando a senhorita, a senhora ou o senhor leitor. O grande pecado de Rogério foi ter-se casado com Margot, ou, melhor dizendo, vice-versa. Não
entendeu? Explico.
Margot era noiva de Abelardo. Digo
mais, Margot era louca por Abelardo e em breve casar-se-ia com o objeto de sua
paixão. Abelardo era belo, forte (“um Adônis”, diziam), além de sedutor e atencioso;
tratava-a como princesa e quando a beijava fazia-a agradecer ao Céu por ter nascido mulher. Comentava-se também que
Abelardo não era confiável, para dizer o mínimo. Ou que não valia nada, para
ser mais exato. Margot, de seu lado, fazia-se de desentendida: nunca vira nada
desabonador na conduta de seu noivo e não daria ouvidos a fuxicos de gente
invejosa de sua felicidade. Mas alguém trouxe provas e convenceu a até então feliz
noivinha a dar um flagrante no rapaz. Confrontada com os fatos, Margot, tida
como geniosa, não poderia deixar barato. Abelardo merecia uma lição e ela não
fez por menos: desmanchou o noivado.
Depois ficou esperando pelas
desculpas, ele que se humilhasse a seus pés implorando perdão. Mas o tempo
passava, e nada. Nisso, surge Rogério, colega de trabalho. Margot não era de se
jogar fora, muito pelo contrário, e Rogério começou a cortejá-la
insistentemente, mas foi esnobado pela moça orgulhosa. Um ano se passou,
Rogério ali firme. Até que ela concluiu que talvez não fosse má ideia
começar um namoro só para acender os ciúmes do ex-noivo. Cedeu aos apelos de
Rogério e pensou: agora vai. E nada. Noivar com o outro talvez funcionasse.
Nada ainda. Quando deu por si, estava casada com Rogério.
Bem, dirão vocês, é nisso que dá
o orgulho, ela poderia ter sido feliz ao lado de Abelardo e não foi. Armadilhas
do destino, e a felicidade fugiu-lhe por entre os dedos.
Margot ainda tem notícias de Abelardo. Teria ele se casado e feito outra feliz? Nutriria ainda um secreto amor por Margot? Nada disso. Ele era mesmo um devasso. Teve filhos com mais de uma mulher, mas não se casou com nenhuma. Bebia demais e ainda bebe muito. E fuma. A bebida encharcou sua beleza, que murchou e se esvaiu, diluída em álcool. Está um caco. E pobre.
Margot ainda tem notícias de Abelardo. Teria ele se casado e feito outra feliz? Nutriria ainda um secreto amor por Margot? Nada disso. Ele era mesmo um devasso. Teve filhos com mais de uma mulher, mas não se casou com nenhuma. Bebia demais e ainda bebe muito. E fuma. A bebida encharcou sua beleza, que murchou e se esvaiu, diluída em álcool. Está um caco. E pobre.
Já Rogério, seu
marido, sempre foi fiel. Amealhou um belo patrimônio a custa de muito
trabalho honesto. Margot já pensou em separar-se, mas para isso teria de abrir
mão de sua bela cobertura de frente para o mar. Pior, se depois de separados
Rogério falecesse antes dela (imaginar a morte de Rogério, aliás, é um exercício que a excita
intensamente, mas reforça sua certeza de que irá para os porões de Lúcifer),
perderia a pensão para a sirigaita que certamente ele logo arranjaria. Por
falar nisso, há uns três anos Rogério teve um infarto, mas foi atendido a tempo
e está ótimo, melhor do que antes. Corre na praia diariamente e é tido como um
coroa enxuto.
Mas nada disso vem ao caso, e Margot consome seus dias imaginando formas mais intensas de odiar. Seu ódio adquiriu vida própria, corporificou-se em um mascote gordo, que ela afaga enquanto assiste TV, que ela mima com biscoitos e salgadinhos, que compartilha sua cama e deforma seu colchão. Mais que isso, ele talvez seja o mastro principal do seu circo, em torno do qual ela desempenha sua vida infeliz. Muito complicado, muito desconfortável de mudar. Se o objeto de seu ódio se for antes dela, desconfio, o teto cairá.
Mas nada disso vem ao caso, e Margot consome seus dias imaginando formas mais intensas de odiar. Seu ódio adquiriu vida própria, corporificou-se em um mascote gordo, que ela afaga enquanto assiste TV, que ela mima com biscoitos e salgadinhos, que compartilha sua cama e deforma seu colchão. Mais que isso, ele talvez seja o mastro principal do seu circo, em torno do qual ela desempenha sua vida infeliz. Muito complicado, muito desconfortável de mudar. Se o objeto de seu ódio se for antes dela, desconfio, o teto cairá.
E assim “la nave va”. Eu, daqui, penso nos versos daquela canção: “Meu
amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus”. E que o inferno não é um lugar, é
uma atitude.
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