Este conto é finalista do Prêmio UFF de Literatura 2012. O resultado sai amanhã, 17 de dezembro.
Seriam
alguns dias de viagem ente Paragominas e Altamira. Bem no início, eu abastecendo
a carreta num posto à beira da estrada, achegou-se o cabra. Cabeça quadrada,
pescoço curto e forte, os cabelos encaracolados escapando por baixo do boné
encardido, a malinha castigada e um jeito que, descrevendo só assim, poderia
servir para qualquer tipo perigoso, assaltante ou mesmo matador, mas tinha um
quê nos olhos escuros que brilhavam um brilho de inocência quase infantil,
contradizendo as rugas precoces na testa e sobressaindo por entre as pálpebras
apertadas e as sobrancelhas grossas que quase se irmanavam acima do nariz.
Anunciou-se Leovaldo, maranhense, com sua licença, vou para a obra da usina
grande, não for incômodo, concederia a gentileza, eu ajudo, amarro a carga se
soltar, sei trocar pneu, já fui ajudante de caminhão. Nessas estradas temos
precisão de confiar e desconfiar, confiando que o Divino ouça nosso rogo para
saber a hora certa de uma coisa e de outra. Confiei: “Sobe aí, homem.” Tinha
muito chão pela frente e eu andava mesmo desassossegado de cismar sozinho tanto
tempo, o pensamento empacado em umas idéias que eu queria não pensar, mas que
me rodeavam a cabeça feito enxame de mosca incomodativa. Uma prosa bem que me
poderia puxar a atenção de dentro e virá-la para o lado de fora.
De
início, asfalto e trânsito livre, tempo bom, conversa leve e pouca, só
amenidades. De meu lado, só queria ouvir. Ele aos poucos foi soltando a
falação. Ganhara semana de licença para o enterro da mãe. Um segundo derrame
depois de ter sido derrubada na cama durante dois anos pelo primeiro. Nesses
dois anos só lhe restara na boca uma palavra, que ela repetia e a ela se
agarrava como única que lhe restara para se dirigir ao mundo: “tatu, tatu, tatu”. Era tatu para toda serventia: obrigado, até
logo, fome, banheiro, saudade, dor. Só os olhos davam sentidos a cada tatu
daqueles. Seis irmãos. O pai deixara a casa, volto pra buscar, as cartas
rareadas e o silêncio. O mais velho foi ainda a São Paulo, cidade muito grande,
engole um homem sem deixar sinal, voltou sem notícia. Não sabe se tem pai
ainda. Falou das cabras, da vez que apanhou de vara porque deixou uma sumir,
era ainda moleque. Só acharam a carcaça três dias depois, os urubus terminando
a faina começada por maracajá ou suçuarana. A roça de feijão e milho tocada
pelos irmãos mais ele, à mercê da dádiva de São José conquistada a custa de muita
reza e ladainha no mês de março.
De
vez em quando ele cansava de falar, me passava a bola, e tu, homem? Eu falava
de estrada, de carga, de caminhão e de patrão, de causos de estrada, deixando
uma cerca bem fincada no rumo da prosa, daí não passe.
Já
na chegada em Marabá, parada para banho e jantar, cerveja dividida, mais histórias,
eu lhe dando linha na pipa. E ela subia alto no céu das lembranças, onde
algumas se desmancham, fiapo de nuvem, e outras são tempestade, ou sol e lua,
sempre lá. Coisas na história de cada um que passam a fazer parte do que se é,
vão moldando esse barro mole, imprimindo cicatrizes, rugas de choro, de dor e
de perplexidade, mas também algumas de riso, de saudades de venturas antigas, o
que também é uma qualidade de dor.
Lá
pelo fim do segundo dia, a carreta sacolejando já no barro, a chuva caía dando
medo que a estação seca se findava, arriscado amolecer o chão e nos prender na
estrada que nem rato engolido no ventre daquela cobra vermelha riscada na mata.
Conseguimos chegar à margem do Tocantins sem precisão de trator de esteira.
Estacionei na fila da balsa e desliguei o motor. Toquei a imagem de Nossa
Senhora colada em cima do painel, agradecido pela bênção. Só mais dois dias,
Mainha, não me falte ainda. Saltamos, ficamos os dois ali, olhando o mundão de
água, apertando os olhos para enxergar o outro lado e a balsa ainda longe.
Acendi um cigarro virando de costas para o vento e estendi um cigarro, depois o
lume para Leovaldo. Ficamos ali, olhando o nada, o pensamento longe, soprando a
fumaça para cima de quando em
quando. Meu parceiro pareceu desassossegado, coçava muito a
barba rala. Reparei uns fios brancos junto às têmporas.
“A
gente cresce achando que na vida as coisas são assim, o certo ali, o errado lá,
o céu em cima e a terra embaixo, onde é água e onde é chão. O que é de Deus e o
que é do cão. Aí a vida vem e embaralha tudo.”
Puxei
o último trago e atirei longe a guimba. O dito prenunciava, na certeza,
confidência de maior importância. Me aprumei em respeito, procurei esvaziamento
de julgar e virei os olhos para Leovaldo.
“Você
já foi casado?” Ele forçava a cerca. Concluiu com acerto sobre meu estado de
homem sem mulher pela falta de aliança, pelo silêncio, pelo celular sempre
desligado. “Digo assim, mesmo sem casar, já teve mulher, já teve casa montada pra
modo de viver com ela, ter filho com ela, criar junto?”
Eu
não disse nada, mas era como se tivesse dito. “Pois é, eu também já tive, ou
tenho, não sei mais. Em
Igarapé Grande, terra de meus pais. A gente se gostava desde
antes de saber o nome do amor. Desde criança. Nunca pensei em outra, não
carecia. E foi para finalmente poder fazer para ela, com ela, um lar, família,
essas coisas, que estudei, fiz supletivo de noite, terminei o segundo grau. Fiz
curso técnico. Comecei na construção civil, me cadastrei para uma vaga na obra da
usina grande. Depois de uns meses me chamaram. Me deu uma alegria misturada com
saudade, mas com fé em ganhar dinheiro, montar casa, me fazer um cabra de
respeito, e não mais um menino aos olhos dela. Quando voltei para enterrar
minha mãe, vinha com uma mistura de sentimento, o luto e uma alegria quase
desrespeitosa, que não combinava com a ocasião. E como foi bom estarmos juntos
de novo, o futuro ali mais perto, quase que dava pra tocar com a mão. Ela
estava carinhosa meio que demais, tive que ralhar pra ela parar com a beijação.
Até no velório ela quis me puxar pros fundos da capela, as comadres reparando.
Dia seguinte me vem o compadre de meu irmão e me diz umas coisas. Que era para
eu abrir o olho, que ficasse por lá ou
levasse Maria da Glória comigo. Que é isso, homem? Me explica, que isso é coisa
séria, que não se pode dizer assim como quem conta uma coisa acontecida nos
antigamente. Exigi nome, dia, detalhe. Agarrei pelo colarinho, quase bati no
cabra enviado do Demo. Tinha um quase sorriso quando me falou, mal conseguia
esconder o gosto que tem um infeliz de ver se quebrar a felicidade alheia.
Saí
desarvorado, sem rumo, até que me vi na casa da minha finada mãezinha. Por obra
do acaso ou de Deus, meu irmão chegou no momento em que eu carregava a garrucha
que fora de meu pai, que encontrei ainda enrolada num pano em cima do armário
do quarto. Eu tinha um gosto de sangue na boca, meus olhos só viam desgraça no
porvir. Não me pergunte quem eu ia matar primeiro, eu só sei que a morte tinha
mando no meu coração. Meu irmão quis saber o que era aquilo, gritava para me
chamar ao juízo, mas eu não ouvia. Ele então se atracou comigo, ‘não quero ver
irmão meu na cadeia’. Caímos os dois e a garrucha disparou. Só então me voltou
a presença e eu parei, meu irmão por cima de mim. A bala furou a camisa dele,
riscou-lhe a pele e foi bater no meio do quadro do Coração de Maria que minha
mãezinha tinha no altar com a vela sempre acesa.”
Um
suor grosso brotava nas têmporas de Leovaldo, o peito arquejando um pouco. Os
olhos perderam-se por um instante, abertos para fora, mas sem visão no
presente. Fiquei ali, mudo, misturando na cabeça a cena contada com cenas de
minha própria lembrança, colocando rostos meus nas personagens dele. Pediu-me outro
cigarro. Deu umas três baforadas, ficou um tempo para se recompor, e continuou.
“Aquilo
me freou os ímpetos, me alargou as vistas, como se me tirassem antolhos. Meu
irmão então me tirou, sem resistência, a garrucha da mão. Eu fiquei ali pelo
chão, tremendo e chorando de soluço que nem criança. Só bem depois me pus de
gatinhas e fui até o altar, sem ousar erguer a vista pro coração furado da
Virgem. Pedi perdão e agradeci pra ela e pra mãezinha, que foram as duas que me
valeram e me livraram de fazer desgraça. Fiquei uns dias atordoado e sem rumo.
Evitei de estar com ela, depois saí escondido da cidade e fui para o rancho de
um primo pensar uns dias. Aí, peguei
minhas tralhas, pus na mala e vim para a estrada, no rumo da usina. Não consigo
parar de pensar. Meus irmãos e primos se dividiram. Uns dizem pra eu esquecer
da Glorinha, que tem muita mulher no mundo. Outros me garantem que foi fraqueza
rápida que ela teve, uns goles a mais de cerveja depois da festa do Santo, que
era um cabra de passagem, foram só uns beijos, e que ela não pára de chorar
desde que eu sumi. Não sei ainda meu rumo. Um homem às vezes descobre que tem
que escolher entre a honra e a felicidade, e que não pode ter as duas. Ainda
não decidi.
Ficamos
ali, olhando o rio e a balsa que surgia agora no horizonte em meio à água do
rio e a água que voltava a cair do céu. Foi ficando tudo misturado no mesmo
cinza: a água, o céu, a outra margem. Tentei engolir o nó que me apertava a
garganta, mas ele ficou ali, teimoso. O desassossego me brotava de novo no
peito, feito tiririca brava que renasce sempre, por mais que a gente arranque. Se
minha mãezinha não tivesse morrido pra me trazer à luz, se eu tivesse tido um
irmão que se atracasse comigo, se a Virgem me valesse na hora que o Tisnado me
fechou o coração. Mas eu só tivera instrução de zelar pela honra.
conto transamazônica prêmio UFF de literatura 2012