Vinha eu acompanhando e
saboreando as mudanças sociais dos últimos cinquenta anos no que se refere aos
avanços da posição da mulher na sociedade, acreditando que elas (vocês) vinham
galgando degrau após degrau a escada da igualdade de direitos, quando, de
repente, a trilogia “Cinquenta Tons de Cinza” surge como um fenômeno literário
neste início de milênio. Como assim, senhorita? Como assim, minha senhora?
Há cinquenta e poucos anos,
quando nasci, não existia ainda a pílula anticoncepcional, que veio a
libertar a sexualidade feminina da obrigatoriedade da procriação e desencadeou todo o processo que alterou
completamente o des(equilíbrio) de poder entre os sexos. No Iêmen os pais
continuam vendendo suas filhas de 12 anos em casamento, e no Afeganistão as
adúlteras ainda são apedrejadas. Mas, pelo menos em nosso mundo classe
média-alta ocidental, a situação feminina na sociedade vem evoluindo
aceleradamente, se não na direção à igualdade de papéis (na qual não acredito),
pelo menos na direção da igualdade de direitos (à qual sou plenamente
favorável, e nem poderia deixar de ser). Nossa presidente é mulher e não vejo
nenhuma necessidade de chamá-la de presidenta, pois não será a única nem a
última (acabei de descobrir que o Word não grifou de vermelho a presidenta, o que acaba sendo uma
contradição cromo-político-ortográfica). Temos duas ministras mulheres no STF e
acaba de ser promovida a primeira oficial-general de nossas Forças Armadas. As
mulheres brasileiras têm hoje autonomia sobre a própria natalidade e geram, em
média, menos de dois filhos cada; chefiam sozinhas mais de um terço dos lares e
contribuem financeiramente em três quartos deles. Elas caminham rapidamente em
direção à igualdade salarial e ocupam inúmeros cargos de chefia em todos os escalões.
Fatos.
A dificuldade que muitos homens
esclarecidos demonstram em reconhecer, ou, quem sabe, admitir essas mudanças na
nossa sociedade me causa espanto. Já ouvi homens dizerem, não totalmente como
piada, que, se não fosse pelo órgão sexual, não dariam nem bom dia às mulheres.
Há ainda homens incapazes de se relacionar com uma mulher como apenas dois
seres humanos, sem conotação erótica, como amigos, como companheiros ombro a
ombro no trabalho. Acho isso um espanto. No fundo, enxergo o receio masculino de
que os homens venham a ter seu papel relegado apenas a abrir potes de conserva
e matar baratas.
Eu, particularmente, nunca tive
problemas em ter amizades com mulheres, mas admito que, na minha geração, isso
era uma exceção. E não sei se hoje as coisas estão muito diferentes. Há ainda
quem acredite que homem que é homem tem amigo homem, que mulher em idade
reprodutiva, ou é da família (tabu) ou deve sempre ser olhada como uma
potencial parceira sexual. Não que eu ache que uma amizade intergenérica não
possa nunca vir a assumir tons coloridos. Já cheguei a namorar uma amiga, o que
acabou com a amizade, diga-se de passagem. Tinha e tenho boas, novas e antigas,
amizades com mulheres. Ouvir o ponto de vista feminino sobre determinado
assunto é mais do que apenas a opinião de outra pessoa. Muitas
vezes é como a visão de alguém do outro lado de uma fronteira, de outro planeta
talvez, o que sempre enriquece a conversa e acrescenta ingredientes novos numa
discussão.
E então vem a Sra. E. L. James e
nos apresenta a inocente Anastasia Steele, jovem e inexperiente (nunca tivera
namorado). Uma estudante de Literatura Inglesa completamente iletrada nas artes
do sexo e do amor. A inocente mocinha entrega seu corpo vestido de tênis e
calça jeans aos caprichos sadomasoquistas do misterioso Christian Grey, homem
poderoso e de hábitos sofisticados (além de rico e lindo, claro). Desequilíbrio
maior impossível. Submissão total. Parece que, lá pelo terceiro volume da
trilogia, a mocinha cresce emocionalmente e resgata seu amante-algoz de
sofrimentos íntimos oriundos de seu passado. Mas não é por esse desfecho
edificante, que acaba convergindo para os das novelas de Jane Austen por
caminhos muito (põe muito nisso) distintos, que as mulheres estão lendo o
livro. Claro que não.
As feministas estão possessas.
Andaram até convocando para uma queima pública dos ditos livros diante da editora,
acrescentando mais alguns tons de cinza à trilogia. Particularmente, acho
queimar livro, seja ele qual for, uma prática obscurantista. Mas a bronca delas
é legítima. Como, depois de tantas passeatas, de tantas mártires, de tantos
sutiãs queimados, depois da lei Maria da Penha e da tipificação do assédio
sexual como crime, as maiores beneficiárias das conquistas femininas, as
mulheres letradas e endinheiradas o suficiente para comprarem e lerem um
romance suspiram e gemem imaginando-se na pele da indefesa mocinha voluntariamente
entregue ao macho poderoso e distante emocionalmente? Soa a traição.
Claro, pode ser que as mulheres
estejam apenas se dando o direito de ler um texto picante, que as deixa
excitadas e assumindo isso em público: no metrô, na sala de espera do doutor ou
na praia, e nada além disso. Muito justo, mais um direito conquistado. Mas haverá
algo mais por baixo dessa interpretação simplista? Será que as coisas andaram
rápido demais para elas? Estarão inseguras sem um macho que as respalde na
reunião de condomínio quando o clima esquenta? Não querem tanta igualdade
assim? Não sei a resposta. O que me parece é que, mesmo que hoje elas tenham
conseguido que a sociedade aceite (ou pelo menos admita) que elas troquem
beijos com um desconhecido na balada sem emitir julgamentos de caráter, as mulheres,
ou boa parte delas, não abriram mão do mito do príncipe encantado. Apenas substituíram
o cavalo branco pelo carrão branco do ano. Querem alguém que as proteja, que as
excite, que as trate como rainhas na vida e tenha pegada firme na cama. Alguém
que ganhe tanto ou mais que elas, que assuma as despesas da casa se ela
resolver ficar mais um tempo cuidando do bebê. Alguém que as faça felizes. Não são todas, friso bem, mas acho que ainda é
uma grande parcela. Arrisco dizer que é a maioria. Tudo bem, as coisas caminham
em ritmos diferentes em diferentes partes das sociedades, em diferentes
cabeças. Mas delegar a outro alguém a responsabilidade pela própria felicidade
é e será sempre uma roubada. Seja você homem ou mulher. O que é, para todos os
efeitos práticos, muito diferente de querer compartilhar e multiplicar a
própria felicidade com alguém com qualidades e defeitos.