Quando ela entrou, todo mundo
olhou. Todo mundo é modo de dizer. Aqui em São José dos Ausentes, todo mundo em geral não
passa de meia dúzia. O campo de futebol, quando não serve de pasto para meia
dúzia de ovelhas, só é usado quando vem time de fora. Casados e solteiros não
rola. Vivos contra mortos, teriam que convocar o Borja, que tem uma perna mais
curta, para completar o time dos que ainda não foram. No caso em questão, todo
mundo éramos eu, o Borja e o Palhaço. O Borja nasceu por aqui e, raridade, está
aqui até hoje. Talvez por causa da perna mais curta, que o touro imprensou no
curral. É o gerente do posto e da lanchonete do posto. E o Palhaço é o
frentista. Quando a caravana do circo parou para abastecer, faz uns dez anos,
ele, de porre, foi urinar no banheiro dos fundos e dormiu por lá. Foram embora
e parece que até hoje não deram falta. Nunca vi ele rir. É o único palhaço de
bigodão ruivo que eu conheço. Quanto a mim, não interessa porque eu vim parar
aqui. Eu mesmo já quase estava conseguindo esquecer. Até que aquela mulher
apareceu para atrapalhar meu esquecimento.
Olhei pela vidraça para ver com
que carro ela tinha chegado assim sozinha no meio da noite. Para abastecer, com
certeza. Não sei se por causa da neblina ou por causa da lâmpada queimada do
poste, não vi carro nenhum. Nem moto, nem caminhão, nem montaria. Nem bicicleta
tinha lá fora.
“Banheiro?”, ela disse. O Palhaço
esticou o beiço inferior por debaixo do bigode, apontando o corredor do canto.
Ficamos os três calados, olhando um para a cara do outro, tentando adivinhar se
o outro estava pensando alguma besteira parecida com a que cada um estava
pensando.
O toc-toc das botas de salto que
ela usava, calça justa de jeans por dentro do cano alto, voltando. Continuei
sentado no canto ao lado da geladeira de refrigerantes, com os braços cruzados
por baixo do poncho e equilibrando a cadeira nos dois pés de trás, as costas
contra a parede. O motor da geladeira é meio barulhento, mas emite um
calorzinho bom. Ela sentou-se junto ao balcão e pediu um maço de cigarros para o Borja. Sacou um, pôs na
boca e fez aquela cara de “acende o meu fogo”. Ele puxou o isqueiro dos bêbados
pelo barbante, levou-o o mais perto que pôde da ponta apagada e apertou três
vezes até ele acender. Como o barbante era curto, ela teve que se curvar sobre
o balcão. Eu e o Palhaço trocamos um olhar, imaginando o ângulo de visão que o
Borja teria dos peitos dela.
“Obrigada”, ela disse depois de
uma baforada para o alto.
Fiquei olhando a dona por debaixo
da aba do boné. Ela parecia... Mas não podia ser. Ficou ali, sem pressa,
fumando e olhando o pôster do Internacional por cima da prateleira de bebidas.
Fazia biquinho, soltava a fumaça devagar, com gosto, estufando só um pouquinho
as bochechas queimadas de frio, com uns pelinhos louros bem fininhos. De onde
eu estava não dava para ver os pelinhos louros, mas dava para imaginar
direitinho. Depois amassou a bituca no cinzeiro e levou as mãos à nuca, puxando
um rabo de cavalo comprido de dentro do casaco de couro. Soltou os cabelos
claros do elástico e eles foram se espalhando, se abrindo à medida que ela
balançava a cabeça bem devagar, como as pétalas de uma flor que se abre
naqueles filmes em que passam a imagem bem acelerada, para parecer que a flor
se abriu assim, na cara da gente. Cabelo lustroso, bonito, parecia anúncio de
xampu. Eu já tinha visto cabelos como aqueles, se soltando daquele jeito, há
muito tempo atrás. Depois ela pediu um conhaque. “Frio lá fora”, justificou.
A essa altura, eu já estava
sentindo umas coisas que há muito tempo não sentia. Fiquei olhando para a dona,
até ela sentir aquela sensação na nuca que a gente sente quando estão nos olhando
por detrás. Então ela se virou e me viu. Cravou os olhos em mim e eu fiquei
firme olhando nos olhos dela. Senti um arrepio que foi das costas até a base da
nuca e gotas de suor brotando nas têmporas, por baixo do boné. Instintivamente
conferi a pressão que a bainha da faca de caça fazia na minha perna direita,
por baixo da calça larga. Sem tirar os olhos de mim ela se levantou e veio para
o meu lado.
“Posso?” Arrastou uma cadeira de
plástico azul de uma mesa próxima, que tinha uma estampa de uma marca de
cerveja no tampo, e sentou-se perto de mim. Levantei um pouco a aba do boné
para olhá-la melhor. Devo ter ficado quase um minuto sem piscar.
“Tu continuas bonita, apesar dos
anos. Um pouco mais pálida, mas bonita”, falei. E gostosa, pensei.
“E tu ainda sabes como cortejar
uma mulher."
“Achei que nunca mais ia te ver,
a não ser nos sonhos.”
“Tu sonhas comigo ainda?”
“Só de vez em quando”, menti.
“E essa barba? Usas há muito
tempo?”
“Desde que tu te foste.”
“Até que te caiu bem. E esses
fios brancos, as ruguinhas no canto dos olhos, te dão um ar maduro, bem
charmoso, que tu não tinhas.”
“Ponto para os anos, então. Pelo
menos essa vantagem eles trazem.”
Ficamos em silêncio, olhando para
os joelhos um do outro por um minuto ou dois.
“Por que resolveste vir atrás de
mim agora?”, perguntei erguendo os olhos devagar. "Ou vais dizer que chegaste aqui por acaso, obra do destino?"
“Fiquei te devendo uma
explicação.”
“Será que isso é possível, uma
explicação?”
“Entenda, tu viajavas muito.”
“Eu já era caminhoneiro quando me
conheceste. Ou não era?”
“Eras sim.”
“Tu te lembras daquela coisa de
amá-lo e respeitá-lo na saúde e na doença e etc.? E acho que tinha na presença
e na ausência também.”
“Não tinha não.”
“Mas devia ter, pombas. Respeitar
tinha e tu juraste ali, na frente do padre e de todos, olhando nos meus olhos.”
“Na hora era verdade. Mas a
solidão dói. Doía barbaridade. Quando tu voltavas, a dor cessava um pouco. Não
de todo, porque já antecipava a próxima partida. E quando tu partias, de novo e
de novo, a felicidade ainda persistia por um tempo, por uns dias. E depois a
dor, a saudade, o vazio que tu deixavas, aquele vazio imenso latejando. Não era
tédio, era dor. Uma dor pedindo por teu abraço, por teus beijos. Eu achei que
outro abraço, outro beijo poderia me anestesiar da tua ausência. Pois saiba,
então: não podiam. Não puderam.”
“Mas tinha que ser logo com o
Jurandir? Meu amigo, meu mecânico, meu companheiro de pescaria? Quando me
avisaram do acidente, eu já estava para lá de Belo Horizonte. Não me contaram a
princípio que tu não estavas sozinha no carro. Só depois me disseram que ele
estava também. E só no velório eu soube que a carreta atingiu nosso carro na
saída do Motel Vênus. E eu ainda fiquei quase dois anos pagando por aquele
troféu de corno feito de aço retorcido.”
“Eu fechava os olhos e imaginava
que eras tu.”
“Perdi a mulher, o mecânico, o
companheiro de pescaria, o respeito das pessoas. Tive que passar a levar o
caminhão para consertar lá em Bento Gonçalves. E o que eu ganhei em troca?”
“Eu sempre exigia que se apagasse
a luz.”
“Um par de chifres e cabelos
brancos.”
“Eu nunca deixei de te amar.”
“E por que tu pensas que eu
acreditaria em ti agora?”
“Eu não tenho por que mentir. Não
agora.”
Ela passou suas mãos por baixo da
lã do poncho e segurou meu braço, os dedos finos e frios. Um arrepio me subiu
pelo braço até o pescoço, um arrepio bom e quente. Fui aos poucos relaxando a
musculatura, como numa rendição. Ela deslizou os dedos até os meus e puxou-me
com suavidade, fazendo a cadeira desencostar da parede e os quatro pés pousarem
no chão.
“Você não imagina como foi
difícil te encontrar aqui. Mas nunca desisti.”
Levantei os olhos até os olhos
dela e fiquei olhando aquele azul pálido, as pupilas dilatadas, aquelas gotas que
surgiam nos cantos. O compressor da geladeira deu um tranco e parou de fazer
barulho. Quis ainda exercer algum direito de vingança, dizer algo que a ferisse
profundamente, que nos deixasse quites:
“O Inter também foi campeão
mundial de clubes, viu?”
“Eu vi o pôster.”
“Na final, o Ronaldinho estava no
outro lado, no Barcelona, e perdeu.”
“É mesmo?” Ela não parecia nem um
pouco atingida. Abriu um sorriso. “Seu bobo!” Então me beijou um beijo quente
com seus lábios frios, um leve cheiro de terra como perfume. Depois me segurou
as duas mãos, ergueu-se e me puxou.
“Tem uma lua linda lá fora. Vem.”
Levantei-me e deixei-me guiar.
Senti no rosto o vento gelado quando a porta se abriu. Então olhei para trás,
por cima do ombro, para o bigode ruivo do Palhaço. Tentei decorar aquela forma,
aquela cor. Seria a última vez que eu o veria.